3. O motivo de tudo

𓅯 Capítulo 3 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Seu passado o visitou naquela tarde de sábado. Um Lucas de seis anos de idade invadiu sua mente, levando-o à sala de aula de sua antiga escola. Ele tinha boas lembranças dessa época; pois, apesar do menininho tímido e calado chamar a atenção de todo o colégio, fora acolhido da melhor forma que conseguiram — pelo menos, naqueles tempos. Lucas chegaria à conclusão, anos mais tarde, que a tolerância para com ele ao longo dos anos diminuía. Aos seis anos de idade, não se exigia muito dele. Aos seis anos, achavam apenas curioso o fato do garotinho não falar. Preocupante, mas nada que não pudesse passar despercebido — pois o menino era considerado apenas uma criança tímida.

Ele nunca atrapalhava as aulas. Sempre cumpria as tarefas, ajudava na organização das salas, respeitava os colegas e não tinha nenhuma dificuldade em aprender a ler e a escrever. Seu único problema, segundo os professores, era que Lucas não falava. Bastava ultrapassar a entrada do colégio para que ele se transformasse — do menino sorridente e tagarela para o menino acanhado e mudo.

Ninguém sabia o que se passava com ele. Ninguém compreendia. Nem mesmo Lucas, que não entendia porque não se sentia confortável em falar com as pessoas. Falar com seus colegas, seus professores, ou até mesmo com alguns parentes mais próximos. E quando perguntavam para ele o motivo de sua mudez — como se ele fosse responder — Lucas não sabia como reagir. Não sabia o que responder quando colocavam papel e caneta em suas mãos — um método prático que os colegas, anos depois, encontraram para que ele respondesse às suas perguntas. Papéis estes que sempre ficavam em branco, pois Lucas não respondia. Não sabia o que responder. Não compreendiam que qualquer tipo de comunicação era complicada para ele.

O motivo de tudo isso, entretanto, ele não sabia. Lucas só foi descobrir do que se tratava através de Pedro, seu irmão mais velho. E, quando isso aconteceu, ele tinha vinte anos de idade. Tarde demais para se entender. Tarde demais para procurar por ajuda. Pois, para ele, não havia mais jeito — mesmo que a psicologia e toda a sua família dissessem ao contrário. Você conseguirá superar isso, Pedro dizia. Mas seu irmão era confiante demais. Confiava demais em Lucas. Sempre falava de seu talento para com a pintura e a sua inteligência sublime, mas o rapaz não via nada daquilo em si mesmo. Sempre achava que os elogios eram apenas para agradá-lo, pois sabia que o irmão mais velho o amava.

Pedro sempre o tratou bem. Desde que eram crianças e Lucas ainda não conseguia falar com ele — quando o menino ainda estava se acostumando com a ideia de ter um irmão mais velho e um padrasto. Talvez fosse por aquilo que Lucas se lembrou de sua infância naquela tarde. Ou por causa do monólogo desconfortante do pai no restaurante. Sua mente estava tão confusa que as lembranças se misturam — às vezes ele era um Lucas mais velho, às vezes mais novo. Mas a criança de seis anos sempre voltava: fora a época que ele mais se lembrava, sobretudo na escola. Mais especificamente as sextas-feiras; seu dia preferido da semana. E havia um motivo para isso: aula de artes.

Ele amava quando a professora chegava e dizia às crianças: Façam fila! Lucas primeiro... E ali, era como se o menino fosse igual a todos os seus colegas. Não que ele não fosse igual. Mas ele se sentia semelhante, pertencente àquele lugar. O cheiro de tinta e massas de modelar da sala de artes era estranhamente agradável para ele. Lucas sentia-se confortável e se tornava, de repente, o líder da turma: distribuía lápis e papéis, giz de cera, massas de modelar, tintas e outros materiais — dependendo do que fariam na aula. A professora, percebendo desde o começo a mudança positiva de comportamento do menino naquele ambiente, começou a estimulá-lo; até mesmo tentando fazer com que ele se comunicasse verbalmente. Mas ele nada dizia. Naquela sala em específico, no entanto, ele interagia mais com os colegas e expressava-se através das cores. Lucas gostava principalmente de pintar. A cada pincelada, perdia-se facilmente nas tonalidades policromáticas diante de seus olhos, esquecendo-se dos colegas, da escola e de suas dificuldades diárias. Quase esquecia-se da ansiedade que o impedia de falar.

Duas décadas mais tarde, aquele fato não havia mudado: o cheiro de tinta e as cores o acalmavam. Tirava-o de sua realidade degradante. Algumas dificuldades continuavam quase as mesmas, mas seus problemas — acompanhando o seu corpo e suas responsabilidades — tornaram-se maiores. Lucas não era mais uma criança de seis anos, mas ainda permanecia em seu silêncio; comunicando-se apenas com seu núcleo familiar. E, ao contrário do que as pessoas pensavam, não se tratava de uma escolha. Por que Lucas simplesmente escolheria não falar? As coisas eram mais complicadas do que pensavam. Apesar disso, o rapaz não as julgava. Às vezes, só se compreende certas situações ao senti-las profundamente em seu íntimo, e ele não desejava aquilo para ninguém. Nem para aqueles que o perseguiam. Nem para aqueles que tentaram machucar seu corpo e seu coração.

Naquele momento, Lucas quase deixou o pincel cair. Seus dedos sujos de tinta branca ainda estavam trêmulos. Ele não entendia porque de repente aquelas lembranças estavam vindo à tona de forma tão intensa, deixando-o ainda mais apreensivo. O rapaz respirou fundo, tentando voltar ao presente. No quadro preso ao cavalete, ele fitou o azul-claro e suas tentativas frustrantes de fazer nuvens. Há tempos ele não pintava, e, apesar de suas habilidades, nada estava saindo como ele queria. A sensação de torpor não o ajudava a concentrar-se na paisagem que ele tentava reproduzir.

— Você deveria pintar mais — a voz grave e baixa do irmão mais velho ressoou pelo silêncio do quarto. Lucas baixou as mãos, apoiando a paleta sobre a mesinha ao lado do cavalete.

Por sobre o ombro, ele olhou para o irmão sorridente na porta do quarto. Lucas tentou sorrir, forçando uma boa recepção. Pedro não morava mais naquela casa, mas ele visitava a família frequentemente e fazia questão de Lucas estar presente; e estar bem. Senão, Pedro fazia de tudo para que o irmão risse, ao menos, de uma piada ruim e repetitiva que ele sempre contava (e que Lucas sempre ria). Naquele dia, Pedro estava mais alegre que o normal — apesar de não superar Ben no quesito avô babão — e Lucas quis sentir o mesmo entusiasmo dele, mas não conseguia.

— Acho que perdi o jeito — Lucas admitiu, observando o irmão se aproximar. Ele havia tirado a barba e colocado tranças curtas, as quais Lucas achava que combinavam muito com ele. Pedro parou ao seu lado, apoiando o braço em seus ombros. Observou o quadro inacabado do irmão: nuvens esparsas, ligeiramente escuras, sobrepostas em tons de azul.

— O que mais vai colocar aqui? — Pedro perguntou. — As nuvens estão legais.

— Não sei. Está vazio. — Lucas murmurou, percebendo que o irmão queria motivá-lo a finalizar aquela arte inacabada.

Pedro bateu a mão de leve em suas costas e sorriu.

— Meus parabéns, Lu — ele disse, e por um instante Lucas achou que ele se referia ao quadro. Ele franziu o cenho e estava prestes a indagá-lo quando Pedro continuou: — Belmontine não é para qualquer um! E olha que sei o que estou falando.

O rapaz riu, apático, lembrando-se de quando o irmão havia conseguido uma vaga na mesma universidade. A diferença é que Pedro sempre quis fazer o que fazia: dar aula para criancinhas.

— Obrigado — Lucas não se esforçou para disfarçar o seu desânimo. Pedro o conhecia mais do que ele mesmo. Ainda envolvendo-o em seu braço, o irmão o fez atravessar o quarto, dando as costas para sua arte estúpida.

— Você não parece muito animado. — Pedro percebeu, conduzindo-o para fora do aposento. — Melissa está lá embaixo. Trouxe bolo de cenoura, o seu preferido. Lembra que a vovó fazia? Minha sogra faz um idêntico.

— Ben comprou abacaxis para a Melissa — Lucas disse baixinho enquanto desciam as escadas. Ele já podia ouvir as vozes animadas e o tilintar de pratos vindos do primeiro andar.

Pedro assentiu, já ciente do fato.

— Benício acabou de receber o título de melhor sogro do ano. — falou. — Acredita que ela já comeu um inteiro?

Lucas balançou a cabeça, prestes a fazer alguma piada para descontrair, mas já estavam na sala. Melissa passou por eles e, ao vê-lo, a cunhada puxou-o para um abraço. Ele tinha a impressão de que seu ventre havia crescido um pouco, mas nada que deixasse claro suas condições de mãe de primeira viagem.

Melissa estava deslumbrante como sempre. Seus cabelos encaracolados estavam soltos sobre os ombros, os olhos esverdeados tão brilhantes quanto duas esmeraldas. Como era previsto, a moça parabenizou-o pela nova vida universitária e estava tão empolgada quanto o namorado com a notícia.

Constatou, mais uma vez, o quanto todos estavam animados. Menos Lucas (e Luan, que aparentemente não se importava com nada que estava acontecendo).

Ele se sentiu um ingrato e um imbecil quando viu a mesa da copa cuidadosamente posta para o lanche da tarde — o que não era um evento normal naquela família, a não ser que houvesse algo especial a comemorar. Lucas pressentiu que tudo aquilo era para ele: os pãezinhos, o bolo de cenoura, o suco, o café e os biscoitos doces e açucarados (que Ben sempre comprava para Lucas quando ele era criança, pois sabia que o menino amava). Todos estavam lá, colocando os últimos utensílios sobre a mesa: sua mãe, seu padrasto e até mesmo Luan. Tudo muito simples, mas por ele. O rapaz sentiu um nó se formar na garganta, pensando mais uma vez se ele merecia aquilo. Se merecia aquelas pessoas. Talvez merecesse o irmão mais novo, que não se importava com nada daquilo. Decerto, ele estava lá pela comida — e quem sabe impelido por Miriam, que dizia ser "falta de comunhão familiar" ao se recusar a se alimentar à mesa com as pessoas que moram na mesma residência.

— Se eu fosse você comia logo, cunhadinho — Melissa disse, sentando-se. — Luan já comeu metade do bolo.

— Eu nem encostei nessa merda — murmurou o rapaz, recusando-se a olhar para a moça. Estava ocupado demais digitando no celular.

— Meu filho, sem palavrões à mesa — advertiu Miriam, posicionando os recipientes sobre a mesa nas medidas adequadas. Depois, olhou para Lucas, que ainda estava de pé observando toda aquela movimentação. — Sente-se, meu amor. Lavou as mãos? Temos que comemorar!

— E mais abacaxis! — Ben veio da cozinha com uma travessa com a fruta cortada. Melissa bateu palmas. Luan enfiou mais biscoitos à boca, ainda concentrado no celular. Lucas coçou a nuca e, um pouco sem graça, juntou-se a eles e mordiscou um pãozinho. No chão, Mozart sentou-se ao lado dele, atento a qualquer sobra que caísse. Beethoven provavelmente dormia, alheio a todo aquele alvoroço.

Todos começaram a conversar, animados, e até mesmo Luan largara o celular para falar com Pedro — que sempre se deu bem com ambos os irmãos. Os assuntos foram diversos: desde a gravidez de Melissa e a curiosidade de se saber o sexo do bebê até até a preguiça do cão Beethoven, que desde que completara quinze anos passava a maior parte do tempo dormindo. Pedro contou, orgulhoso, sobre o avanço de seus alunos na escola em que trabalhava. Ben falou um pouco sobre suas novas composições e sua suspeita de que deveria trocar de óculos. Miriam, sempre muito dedicada ao trabalho, comentou sobre seus próximos projetos. Luan falava de festas e garotas bonitas. Melissa, sobre abacaxis.

E Lucas nada dizia, apenas escutava-os. Quem visse aquela cena, conhecendo o Lucas envolvente e falante quando se reunia com a família, acharia um tanto estranho sua mudança de comportamento. O rapaz estava calado, mas queria falar. Entretanto, a simples presença de Melissa — não que ele tivesse algo contra ela — o impedia. Mas a cunhada já estava acostumada com aquela característica do rapaz e nunca se lamentava por não escutar a voz dele. Ao contrário: a moça conversava como se ele tudo respondesse, recusando-se a ignorá-lo. Então, Lucas tentou não se sentir tão desconfortável com o assunto que acabou surgindo através dela — o que não poderia ser outro a não ser Lucas passou em Administração em Belmontine.

— Ele sempre foi um bom aluno — Miriam falou, olhando de soslaio para Lucas. — Aposto que vai se sair muito bem.

Nem tanto, ele queria responder. Parecia que a mãe havia se esquecido de suas péssimas notas em matemática.

— Eu disse a ele que conseguiria — disse Pedro, orgulhoso. — Apesar das péssimas notas em matemática, Lucas sempre foi muito inteligente.

Lucas riu espontaneamente. Às vezes, era como se o irmão escutasse os pensamentos dele. Se conheciam tão bem que, muitas vezes, era impossível esconder as coisas um do outro. O rapaz ficou se perguntando se Pedro também sabia que Lucas não queria nada daquilo. De seu medo dilacerante, de seus pesadelos relacionados a salas de aula e do fato de que ele não escolheu cursar Administração (e que provavelmente se depararia com a querida matemática).

Tentando ignorar mais uma vez aqueles pensamentos, o rapaz voltou-se para a mãe, que começou a falar da época em que fazia faculdade de Arquitetura. Era possível ver a alegria nostálgica em sua expressão ao relatar o quanto havia sido uma boa experiência para ela. Lucas percebeu de imediato que Miriam queria que o filho sentisse aquela mesma alegria — o que ele achou um tanto ingênuo da parte dela. Ben começou a contar, pela milésima vez, de quando engavetou o diploma de Bacharel em Direito e começou a estudar Música — e que achou que fosse piada quando Pedro disse que faria Pedagogia.

Lucas estava quase aliviado de não ser mais alvo da conversa quando Luan, claramente entediado com aquele assunto, jogou o celular sobre a mesa e balançou a cabeça.

— Mas essa coisa de faculdade, e tal, tem aqueles trabalhos chatos para apresentar. — ele rodou a faca antes de cortar um pedaço do bolo. — Me falaram dessas porcarias. Seminários. Como Lucas vai fazer? Não vai passar nem no primeiro período se não abrir a boca.

Miriam franziu o cenho, desfazendo todo semblante alegre de outrora. Lucas baixou a cabeça de imediato, sentindo-se péssimo.

— Luan! Não há necessidade de falar isso — a mãe falou, irritada.

— Mas é verdade! — Luan estendeu as palmas para cima. — Ele não vai mais para a escola. Não vão mais ignorá-lo. É faculdade, cara.

— Não me chame de cara — Miriam murmurou. — E tire esse celular da mesa!

— Opa, opa, opa — Ben bateu palmas, impedindo mais uma briga inútil entre mãe e filho. — Luan, esse comentário não foi legal. E, querida, você está vermelha. Acalme-se. Lucas, você...

Antes que o padrasto continuasse, Lucas levantou-se abruptamente e seguiu em direção à porta da sala. Se sentiu atordoado demais por um momento para localizar a maçaneta, mas, assim que conseguiu, abriu a porta desajeitadamente e correu para o jardim. Seus olhos ardiam, mas ele não conseguia chorar. O rapaz já estava acostumado com os comentários de mau gosto — sobretudo de Luan — sobre sua mudez, por isso, perguntou-se novamente o motivo de se sentir tão instável naqueles dias. Ele odiava chorar. Odiava se sentir tão fraco.

Lucas andou pelo terreno, a passos rígidos, até se jogar no velho banco do pequeno jardim detrás da casa. A noite já havia chegado. Havia pouca iluminação ali, mas a lua quase totalmente cheia iluminava a grama recém-aparada. O rapaz fitou o jovem pé de limão a sua frente quando viu Pedro se aproximar.

— Luan só quer te irritar. Não ligue para o que ele diz — o irmão disse, sentando-se ao seu lado.

— Eu sei. — Lucas murmurou.

Pedro se ajeitou no banco, suspirando baixinho.

— Você, hum, quer conversar sobre isso? — perguntou com a voz mansa e cautelosa, como se estivesse falando com uma criança. Pedro era bom nisso: era fácil confiar nele. Se Lucas fosse um de seus pequenos alunos, contaria todos os seus segredos. Dos mais bobos aos mais obscuros. Mas, como lembrou a si mesmo mais cedo, ele não era mais uma criança. Teria que lidar com aquilo sozinho.

— Não tenho o que dizer — disse, dando-lhe um sorrisinho sem graça. Pedro assentiu, batendo levemente em seu ombro.

— Certo... — ele concordou, sem insistir. Lucas agradeceu-o mentalmente por isso.

Pedro esticou as pernas, inalando o ar fresco da noite. Apenas as cigarras quebravam o silêncio. Dentro de Lucas, aquela doce quietude nunca era bem-vinda. Sua mente não parava. Mas, como sempre, as palavras não saíam.

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