27. Caos e destino

𓅯 Capítulo 27 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Miriam, com um avental grande demais para sua estatura, andava freneticamente pela cozinha. O cheiro de arroz preenchia a casa, o que fez com que Lucas se sentisse ainda mais enjoado. A panela de pressão emitia um som agudo e irritante, e laranjas estavam espalhadas pelo balcão ao lado de um espremedor de frutas barulhento. Enquanto isso, a mãe conferia o arroz a cada dez segundos, enquanto uma pobre laranja dançava sobre o espremedor.

— Filho! Bom dia — Miriam olhou para ele por cima do ombro, encaixando a tampa na panela. — Poderia pegar o tempero no armário de cima? Ben acha que tenho a altura dele!

Lucas foi até ela, pegando a vasilha de tempero no armário acima da pia. O som da panela de pressão o deixava atordoado. O rapaz preferia quando o padrasto cozinhava; mas, nos dias de folga de Miriam, ela fazia questão de cozinhar para a família e espalhar o caos culinário.

Afastando-se da cozinha, Lucas se pôs diante da janela da sala. Era possível ver a casa 10 dali. Desejou poder ver Beatriz, por mais que aquilo doesse. Sabia que ela provavelmente estava na faculdade, preocupada demais com sua própria vida pessoal e acadêmica para lembrar de Lucas. Era provável, também, que sentava-se ao lado de Heitor, estudando e fazendo trabalhos juntos. Odiava imaginá-los tão próximos. Odiava alimentar aquelas cenas, aqueles pensamentos e sentimentos tão nocivos.

O espremedor de frutas foi desligado, e a panela de pressão diminuiu seu ruído. Lucas sentiu as mãos de Miriam em suas costas, acariciando-o, e o rapaz percebeu que fungava. Seus lábios tremiam, mas ele engoliu o choro.

— Meu amor... — Miriam virou-o, envolvendo Lucas nos braços como se ele fosse uma criança que acabara de ralar os joelhos. Ele a abraçou de volta, e foi difícil segurar a vontade de chorar novamente. — Vai ficar tudo bem. Você não está sozinho... Não sei o que está acontecendo exatamente, e não vou pressioná-lo a falar. Mas...eu sei que está acontecendo algo, e que está doendo muito.

Miriam afastou-se um pouco dele, segurando o rosto do filho com as palmas; enxugando algumas lágrimas teimosas. Lucas não disse nada, apenas manteve os olhos fechados, sentindo algo dentro dele se revigorar com aquele toque. Ele tentou acreditar nela. Tentou acreditar que tudo ficaria bem e que toda aquela agonia um dia desapareceria.

De repente, a porta da sala foi aberta e Ben passou por ela carregando caixas com compras. Anunciou à esposa que as cebolas estavam na promoção, mas a mulher estava atenta ao filho caçula que vinha atrás do marido. Luan fechou a porta, carregando algumas sacolas, e Miriam cruzou os braços.

— Luan! Onde você estava? — ela questionou-o, séria.

— Ele estava vindo a pé e eu lhe dei uma carona. — falou Ben. — Acho que estava comprando pão.

— Pão! Não acoberte Luan, Benício — Miriam advertiu. — Ele saiu de casa à noite, eu ouvi. Luan, eu já pedi para que você avise aonde está indo e que horas vai voltar! O que estava fazendo fora de casa de madrugada? Por que não atendeu às minhas ligações?

Luan bufou, deixando as sacolas sobre o balcão que separava a cozinha da sala.

— Fui para a casa de uns amigos. O clima aqui estava pesado — ele respondeu sem rodeios. — Ao que parece, essa é uma família de surtados. E eu precisava tomar um ar.

— Luan! — Míriam gritou. — Não há surtados aqui! Você não pode simplesmente sair de casa sem avisar e ignorar o que está acontecendo. Pare de ser tão egoísta! Você está de castigo. Ben, retire aquela porcaria de videogame do quarto.

Luan revirou os olhos. Ele odiava ser tratado como uma criança. Lucas podia adivinhar seu próximo argumento clássico: Eu já tenho 22 anos! Já posso cuidar da minha própria vida. Mas, ao invés disso, Luan gritou:

— Para de me encher o saco. Benício não vai tirar nada do meu quarto!

— Alerta vermelho! Alerta vermelho! — Ben começou a dizer, dirigindo-se rapidamente à sala conforme mãe e filho discutiam. Sentou-se em frente ao piano, estalou os dedos e começou a tocar uma música. Lucas logo identificou que se tratava de O Silêncio de Beethoven, de Ernesto Cortazar; mas ele sabia que o padrasto havia composto uma música chamada Cala a Boca, cujo objetivo (segundo ele mesmo) era "apaziguar os conflitos familiares". No entanto, as belas e lastimosas notas de O Silêncio de Beethoven fizeram efeito.

O som alto e potente do piano se sobrepunha às vozes alteradas, e Luan desistiu de afrontar a mãe. Irritado, o rapaz marchou escada acima com os passos firmes, e Miriam encarou Ben da cozinha. Mas o marido continuou tocando, inabalável, e ela se voltou para as laranjas. Beethoven (o cão) deu um latido rouco que mal chegava do outro lado da casa, e a campainha tocou.

— Essa casa está uma loucura! — Miriam exclamou, largando as frutas para ir à porta. Ben parou de tocar. O coração de Lucas deu um pulo de repente. E se fosse Beatriz? Ele estava prestes a sair correndo para o quarto quando a mãe abriu a porta e recebeu o rapaz responsável pela distribuição de encomendas do condomínio.

Lucas soltou um suspiro de alívio.

— Encomenda para você, Benício — Miriam anunciou.

— Provavelmente são as minhas perucas — Ben tentou falar sério.

— Perucas! Só porque falei que estava ficando careca?

O rapaz deixou os pais destilarem seus argumentos românticos pela sala e foi para o quarto, cansado demais para ouvir ou fazer qualquer coisa. Arrependeu-se por um momento ter saído da cama. Ouvir aquela discussão entre Miriam e Luan deu-lhe a sensação de que ele era o motivo de todo o caos na família. A mãe estava com os nervos à flor da pele. Luan saíra de casa por causa das crises nervosas de Lucas. Benício tentava conciliar as coisas, mas o rapaz sabia que ele ficava triste quando aconteciam brigas. Mesmo sorrindo, alegando firmemente que a musicoterapia acalmava os ânimos mais exaltados, no fundo ficava chateado. E Lucas sabia que ele era o culpado de tudo aquilo.

Jogando-se na cama, o rapaz soltou todo o ar dos pulmões e pegou o celular. Finalmente, após quase um dia, visualizou as mensagens de Wallace:

Domingo, 20:04 p.m:

Wall: OI!

Wall: OOOOOI

Wall: LUUUCAS

Wall: tá vivo?

Wall: eeeeei

Wall: te vejo na segunda?

Hoje, 8:32 am:

Wall: Cara, cadê vc?

Wall: tá matando aula, é?

Wall: aconteceu alguma coisa?

Wall: TÁ VIVO?

Wall: vc não morreu não, né? 🙁

Wall: vc tá sabendo do seminário para o final do semestre??

Lucas Evans: Oi, Wall. Não fui para a aula hoje, mas vou amanhã.

Lucas largou o aparelho, deixando-o longe de suas mãos. Olhou para a pilha de cadernos e artigos ainda não lidos sobre sua escrivaninha. Ele não estava com a mínima vontade de estudar ou de ir para a faculdade no dia seguinte. Mas ele precisava ir. Ele precisava fazer algo que não fosse ficar na cama alimentando pensamentos destrutivos e repetitivos, com o coração partido e chateado por tudo o que estava acontecendo. Estava cansado e temia ter outras crises. Ele precisava fazer alguma coisa.

Mal tinha forças para levantar os braços, mas ele se esforçou para organizar o seu quarto. A bagunça que havia feito na noite anterior ainda estava lá. A primeira coisa que fez foi colocar o cavalete de pé e organizar as tintas dentro da caixa. Separou o quadro quebrado para jogar no lixo. Organizou a escrivaninha, arrumou a cama. Sentiu-se 1% melhor, mas não era o suficiente. Ainda sentia o caos ao seu redor. Talvez devesse arrumar as estantes, jogar alguns papéis da gaveta no lixo. Mas ele estava tão cansado.

Frustrado, Lucas encarou mais uma vez os artigos sob o estojo azul-marinho. Pensou em Wall, no campus da Universidade de Belmontine e tentou não se lembrar da sensação ruim que tivera quando estava na sala. Ele precisava sair de casa. Precisava sair um pouco daquele condomínio, onde a todo momento havia a possibilidade de deparar-se com Beatriz em sua porta ou sua janela; que dava para a rua principal. Ele não podia se encontrar com ela. Não... Não depois da noite anterior.

Lucas decidiu que continuaria indo à faculdade e se dedicaria ao máximo. Queria esquecer de tudo o que havia acontecido. Queria abafar toda aquela dor; apagar Beatriz de sua mente e toda a paixão que sentia. Desejou voltar ao momento em que pisara em Belmontine pela primeira vez; quando conhecera o tagarela e jovem Wallace. Queria ter tido coragem de conversar com ele; como havia planejado inicialmente. Queria não ter levado o lixo naquela manhã de segunda-feira, e não ter aceitado o convite amigável de seus vizinhos. Mas era tarde demais. O destino o empurrou por um caminho longo e torturante, e não havia como voltar atrás.

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