25. Uma grande ilusão
𓅯 Capítulo 25 | O Canto dos Pássaros 𓅯
Depois da dor, veio a fúria. Foi difícil se manter calado enquanto andava com passos firmes até a sua casa. Pedro correu para alcançá-lo, pedindo para que o irmão o esperasse. Mas Lucas ignorou-o, irritado. Tinha medo de dizer alguma coisa e seus vizinhos escutarem a sua voz. Agradeço mais uma vez por incluí-lo...agradeço por incluí-lo... Aquela frase ficou reverberando em sua cabeça como um eco irritante. Tudo começou a fazer sentido naquela hora. Deu-se conta porque aquelas pessoas ofereceram suas amizades, o convidaram para as suas festas e para o maldito grupo virtual. Tudo não havia passado de uma farsa.
— Lu, espere! O que aconteceu? — alcançando-o, Pedro passou o braço pelos seus ombros. Lucas se afastou, retirando o braço do irmão de suas costas. — Ei, o que foi? Aconteceu alguma coisa?
Lucas cerrou o maxilar e apressou os passos, subindo os degraus da varanda da casa. Estava prestes a abrir a porta quando Pedro se pôs na frente dele.
— Por favor, me diga o que está acontecendo — ele insistiu. Lucas encarou-o, colérico.
— Só me responda uma coisa — a princípio, a voz de Lucas soou baixa e ameaçadora. Depois, não conseguiu controlar a raiva que crescia dentro dele. — Eles me chamam para essas festas idiotas por que você pediu? Por que eu "preciso disso?"
Pedro ficou calado, o olhar cabisbaixo.
— Responda! — Lucas vociferou, empurrando o irmão contra a parede. Pedro não revidou, apenas continuou fitando-o como se estivesse tentando entender o que se passava dentro do irmão. — Diga a verdade, Pedro. Você não sabe mentir!
— Sim, Lucas. Eu pedi para que eles o incluíssem — Pedro finalmente respondeu, a voz baixa e compassiva. — Eu achei que...achei que seria importante pra você se socializar um pouco. Para fazer amizades. Acho que estava muito sozinho e...
— Então eles me toleravam por sua causa? — Lucas gritava. — Por que ficaram com pena?
— Lucas, por favor...
— Por que você sempre tenta controlar as coisas? — Lucas cerrou os punhos, as lágrimas quentes descendo incontrolavelmente pelas bochechas. — Por que você...
Lucas parou quando percebeu o olhar de Pedro fixar-se de repente atrás dele. O rapaz girou os calcanhares, sentindo um frio cortante atravessar seu corpo quando viu que não estavam a sós. Beatriz estava ali, parada no meio do jardim com o celular de Lucas na mão. A moça estava tão paralisada quanto ele. Atordoada, ela ergueu o celular e abriu a boca para falar algo, mas Lucas já não estava mais ali para ouvir qualquer coisa. Com uma rapidez típica de quem estava tomado pela adrenalina e pelo constrangimento, o rapaz abriu a porta e lançou-se escada acima, quase chocando-se contra Ben no andar de cima.
— Lucas! O que aconteceu? — ele ouviu a voz do padrasto atrás dele, mas Lucas não parou. Trancou-se no quarto, ofegante e zonzo. Ele não podia acreditar no que estava acontecendo.
— Não, não, não — ele cobriu o rosto com as mãos, andando pelo quarto. — Não, isso não, não, não... NÃO!
Tomado por uma fúria incontrolável, Lucas empurrou a cadeira giratória com violência, dirigindo-se em seguida para o quadro preso ao cavalete. Com as mãos cerradas, o rapaz quebrou o quadro inacabado com o próprio punho, chutando as caixas de tinta. Estava com raiva de Pedro, de Beatriz, raiva de si mesmo. Principalmente de si mesmo. Odiava ser aquele Lucas; odiava a forma como ele se vestia, como ele agia; e como ele não agia. Desejava, naquele momento, não estar vivo. Ou melhor; de não ter nascido. Todo o seu ódio e sua cólera por si mesmo implodiu, rompendo pelo seu peito como um explosivo letal.
— Meu filho! Abra! — Miriam bateu à porta, forçando a maçaneta descontroladamente. Ele não respondeu, receando que Beatriz pudesse estar do outro lado da porta também. Mas ela já havia escutado a sua voz. Que diferença faria? — Vou pegar as chaves reservas se não abrir!
Lucas não sabia como a mãe conseguiu abrir a porta do quarto com a outra chave do outro lado, mas ela abriu. Desesperada, os olhos esbugalhados e tão nervosa quanto ele, Miriam disparou:
— Por que estava brigando daquele jeito com o seu irmão? Eu nunca te vi assim! Pedro está com uma cara horrível. O que aconteceu? Por que está agindo dessa forma? Oh, por que quebrou suas coisas? Fique quieto, Lucas!
O rapaz tapou os ouvidos, tremendo dos pés à cabeça. A ponta de seus dedos ficaram entorpecidos.
— Me deixe em paz! — ele gritou. — Por favor, me deixe em paz!
Miriam encolheu-se, dando um passo para trás. Lucas esperou que a mãe gritasse de volta. Apesar de Miriam nunca ter levantado um chinelo para ele, o rapaz podia jurar que apanharia pela primeira vez. No entanto, isso não aconteceu. Não havia raiva em sua expressão ou em sua voz, mas apreensão.
— Querida... — Ben apareceu atrás dela, tocando em seu ombro. — Vamos deixá-lo sozinho um pouco. Todos nós estamos com a cabeça quente e preocupados. Deixe-o...
— Benício, eu não sei que tipo de chá você acabou de beber, mas eu não consigo ignorar o meu filho nessa situação — ela desabafou. — Eu disse que havia algo de errado com ele!
Lucas odiou escutar aquilo. Odiou ouvir aquelas palavras como se ele não estivesse ali, e por ter tirado todos de sua paz diária. Até mesmo Luan, com o rosto sonolento, observou-os de esguelha pelo corredor. Ben acabou convencendo Miriam de deixá-lo sozinho e tomar um chá relaxante, e avisou-o de que mais tarde voltaria para conversar com ele. Antes de fechar a porta, Ben deixou seu celular ao lado da cama. O mesmo aparelho que estava nas mãos de Beatriz, que provavelmente passou para Pedro; que estava chateado demais para devolvê-lo pessoalmente.
A vontade que ele tinha era quebrar aquela porcaria de celular. Quebrá-lo em pedacinhos, descontando toda a ira que ainda sentia. Mas a culpa foi de Lucas — foi ele que esqueceu-o para trás, fazendo com que Beatriz o seguisse desesperada para devolvê-lo. Não, não. Foi culpa de Wallace. O intrometido e inconveniente Wallace e suas mensagens irritantes.
Depois de debater consigo mesmo, culpando os outros (e ele mesmo) daqueles acontecimentos desagradáveis, Lucas jogou-se, exausto, no chão de seu quarto. Sentou-se diante de seu quadro destruído e o cavalete caído sobre o puff cinza, as costas apoiadas na cama. Os punhos de Lucas, avermelhados pelo impacto, começaram a doer. A tristeza substituiu a cólera mas, por algum motivo, o rapaz não conseguia chorar. Algumas lágrimas chegavam a brotar de seus olhos, entretanto, não conseguia colocar para fora tudo o que sentia. O bolo em sua garganta era incômodo. Todas as cenas daquele dia se repetiam em sua tela mental em um replay torturante. Aquele poderia ter sido um dos dias mais felizes de sua vida se não fosse pela sua covardia. Tinha certeza que havia beijado tão mal que Beatriz ainda estaria com náuseas. Já podia imaginar a moça correndo para os braços avantajados de Heitor, pensando: Que péssima escolha! Ele beija mal e sua voz é horrível. Violenta o irmão e se acovarda fácil. Onde eu estava com a cabeça?
Tudo não havia passado de uma grande ilusão. A ilusão que poderia um dia ser normal, com amigos acolhedores que adoram festas temáticas, dedicar-se à faculdade, ter uma namorada inteligente, bonita e que se preocupa com a natureza. Era tudo mentira. Uma fantasia. Achou que seria capaz de ser alguém; mas deu-se conta que aquilo era impossível quando seus planos para a faculdade falharam. Lucas não conseguiu ser alguém que não era, não conseguiu criar e incorporar nenhum personagem que conseguisse conversar com as pessoas e enfrentar seminários. Aquele não era ele.
Mas Lucas também não queria ser daquela forma. Recusava-se a acreditar que aquele era o seu verdadeiro Eu. Aquele Eu que tinha tanto ódio e tanta vergonha de si mesmo que o assustava. Se ele também não era aquele Lucas, quem ele era?
Seu raciocínio foi interrompido pelo aroma familiar de canela e açúcar. Ele reconheceu os passos mansos do padrasto, mas seu olhar permaneceu vagando pelas suas coisas dispersas pelo chão. Seus pincéis haviam se espalhado por todo o aposento.
Ben sentou ao seu lado no chão, equilibrando uma travessa de metal em uma das mãos. Lucas olhou para a travessa. Bolinhos de chuva deliciosamente cobertos por açúcar e canela formavam um rosto feliz na travessa redonda.
— Infelizmente, hoje não está chovendo, mas o meu desejo foi maior que a condensação de vapor de água na atmosfera. Estava um pouco frio, mas esquentei no forno. — ele ergueu a travessa na direção de Lucas.
O rapaz não estava com a mínima vontade de comer, mas era impossível resistir aos bolinhos de chuva de Ben; ou qualquer coisa que ele fizesse. Lucas pegou um bolinho, sujando os dedos de açúcar. O cheiro que emanava — sobretudo a canela — o lembrou mais uma vez de seus tempos de criança. Por que tantas memórias de seu passado estavam voltando nos últimos dias?
Com os maxilares doloridos e com dificuldade de engolir, ele comeu o bolinho aos poucos.
— Muitas coisas acontecendo, não é, meu filho? — Ben disse, complacente. Lucas não respondeu. Sua cabeça, apoiada na cama, pendia para o lado; e seus dedos sujos de açúcar e canela repousavam sobre as pernas estendidas.
O padrasto suspirou baixinho.
— Por favor, não fique com raiva de sua mãe. — ele continuou, a voz serena. — Miriam é exageradamente preocupada com a nossa família, e é só assim que ela consegue agir. Mesmo que não seja a forma adequada... Ela quer muito ajudá-lo.
— Eu sei — a voz de Lucas mal saía de sua garganta.
— Há algo que possamos fazer por você? — Ben perguntou, cruzando as pernas. — Sem ser bolinhos de chuva? — ele riu, talvez desejando fazê-lo rir também. Mas não deu certo.
— Não. Não há nada — Lucas respondeu, apático. Não há nada que vocês possam fazer, ele continuou mentalmente. Não há solução alguma para mim, sou um peso morto nessa família.
Alimentar aqueles pensamentos só o fez se sentir pior. Mas eles apenas vinham, misturando-se aos acontecimentos recentes. E ele deixou. Estava cansado de lutar contra sua própria mente; e o pior: concordando com ela, como um servo submisso ao seu senhor. Naquele momento, ao lado de Ben e diante da desordem de seu aposento, Lucas sentiu-se vazio. Nada mais fazia sentido para ele. Nenhuma explicação seria o suficiente. Nada parecia certo — em consequência, o seu exterior encontrava-se na mesma situação. Puro caos.
O tempo havia parado. Não conseguia ver um futuro para si mesmo, não almejava por nada. O passado o sufocava e sua mente o torturava a cada segundo. Como ele conseguiria explicar tudo aquilo para Ben ou para qualquer pessoa sem parecer um ingrato, um dramático? Como explicaria tudo o que estava sentindo para quem quer que fosse? Alguém o compreenderia? Lucas duvidava que alguém pudesse entendê-lo.
Por outro lado, havia alguns meses que Lucas pressentia que precisava mudar algo. Tudo indicava que sua vida, seus comportamentos e seu interior estavam errados. Ele não sabia se errado era a palavra correta. A verdade é que ele não conseguia definir muito bem o que sentia — só sabia que tinha que começar de algum lugar dentro dele. Recomeçar. Mas por onde? Viu-se pedindo silenciosamente por respostas; um sinal claro que o indicasse o que ele poderia fazer.
Ben passou o braço em torno dele, reconfortando-o, e a cabeça de Lucas descansou em seu ombro instintivamente. Sua respiração estava entrecortada, pesada, como se seus jovens pulmões já tivessem se esforçado o suficiente naquele dia. Ele fitou a travessa açucarada no colo de Ben, o rosto feliz encarando-o como se zombasse dele. Você nunca será feliz e delicioso como eu!, o rosto parecia dizer-lhe.
Ironicamente, foram os bolinhos de chuva de Ben que lhe deram a resposta que pedira. Talvez ele devesse começar pelo passado.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top