2. Futuro improvável

𓅯 Capítulo 2 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Eram dezessete horas da noite anterior quando Lucas viu o seu nome na lista de aprovados em uma das melhores universidades públicas do país. Entrando em uma espécie de torpor, não sentiu nada a princípio; apenas encarou seu nome entre muitos na tela do notebook:

LUCAS EVANS MARTINS  ADMINISTRAÇÃO  APROVADO

Ele não sabia por quanto tempo ficara encarando aquelas letras exageradamente grandes da lista de chamada da universidade. Lucas só se deu conta do que aquilo significava quando desligou o aparelho e foi para a cama — não sem antes conferir seu nome repetidas vezes naquela lista. A verdade era que o rapaz não esperava ser aprovado. Fez a prova de admissão meses atrás ao prometer ao seu pai que tentaria, mas não tinha pretensão alguma de se sair bem. Agora, não havia como fugir. E, ao contrário do que suas emoções desenfreadas tentavam lhe sugerir, não poderia haver outro Lucas Evans Martins.

Qualquer um em seu lugar ficaria feliz com essa oportunidade — qualquer jovem perdido aos vinte e quatro anos que finalmente decidira o que quer fazer da vida. Mas não Lucas. Não com suas limitações, seus medos e, sobretudo, toda aquela pressão para ser alguém. Um alguém que ele não sabia se queria ser. Que alguém Lucas queria ser? Ele não sabia. Pois ele era um fracassado. O cara que não falava. O cara que não tem amigos. O cara que nunca terá uma namorada. Que nunca será independente.

Ele estava cansado daquelas frases repetindo em sua cabeça. Cansado de sentir-se tão preso dentro de si mesmo. E, como se aquele nome na lista tivesse puxado um gatilho, algo o atingiu em cheio naquela noite; tirando-lhe sua serenidade. Lucas não conseguiu dormir. Ficou a noite inteira imaginando como seria voltar a uma sala de aula, interagir com novas pessoas, cumprir com as exigências... Ele sentia-se incapaz de tudo isso. Incapaz de imaginar aquele futuro. Quanto mais Lucas pensava, mais o frio na barriga e o nó na garganta aumentavam. E então, uma ideia atravessou sua mente: ignorar tudo aquilo. Ele fingiria que não vira seu nome na lista, e ele simplesmente não faria matrícula alguma. Contudo, havia o seu pai. Alberto não perdoaria se o filho, o qual criou tantas expectativas, simplesmente abandonasse aquela oportunidade de ouro para ser "alguém na vida, um homem de negócios"; sua frase mais recorrente.

Inquieto, Lucas virava-se na cama incessantemente. Porém, horas mais tarde, desistiu de tentar adormecer e se levantou. Calçou os tênis de caminhada, colocou uma bermuda e uma blusa branca. Pegou os fones de ouvido, seu celular — que, como sempre, estava quase sem bateria — e saiu de casa. Mas aquilo não o ajudou a se sentir melhor, apenas mais mal-humorado e exausto. Por isso, quando voltou para casa e se atirou na cama, não demorou muito para que finalmente adormecesse.

Lucas dormiu tão profundamente que sonhou. Um sonho nebuloso, rápido, mas intenso. Ele se lembrava apenas de estar em uma sala de aula desconhecida, porém, as pessoas ao seu redor eram bem familiares — seus colegas de escola. Ele não viu os rostos com clareza, mas sentiu todos os olhos voltarem-se para ele. Lucas tentou sair correndo para fora daquela sala, mas era como se estivesse preso em uma redoma de vidro. Ele não viu paredes ao seu redor — apenas sentiu-se sufocado, o corpo se chocando contra o vidro invisível.

Subitamente, a voz de sua mãe despertou-lhe do sono repentino:

— Lucas? Está dormindo?

O rapaz abriu os olhos de imediato, o coração batendo forte contra o seu peito. Não era incomum Lucas sonhar com coisas que o deixavam ansioso. Mas ele percebera que, nos últimos tempos, aquilo acontecia com mais frequência. Era como se sua mente estivesse ligado a um dispositivo de alarme, deixando-o naquele ciclo de pensamentos viciosos até enquanto dormia.

— Meu filho...?

Lucas piscou os olhos e se virou para a mãe, sentando-se na cama mais rápido do que pretendia. Atordoado, ele olhou para a mulher à sua frente — que, exceto pela sua elegância natural e a idade (e o bom humor de sempre) era como a versão feminina de Lucas: os cabelos castanhos claros, olhos verde-folha, pele pálida e as finas sobrancelhas marcantes. Usava sua vestimenta de trabalho: calça social e blusa de botões, cuja logomarca de sua pequena empresa ostentava os dizeres Evan's Arquitetura.

— Eu acho que cochilei — ele murmurou.

Acha? — sua mãe riu, dobrando a roupa que Lucas havia jogado de qualquer jeito sobre a cadeira. — Você está com uma cara horrível e cheia de baba. Vá lavar o seu rosto. Daqui a pouco, seu pai passará aqui. Ou não vai almoçar com ele hoje?

O rapaz arregalou os olhos, lembrando-se de que era sábado. Todos os sábados, a não ser que houvesse algum imprevisto no trabalho de Alberto — o que era bastante frequente — eles almoçavam juntos em um restaurante qualquer. Luan também costumava ir aos entediantes encontros pai e filhos até brigarem feio por motivos banais. Desde então, apenas Lucas se dispunha a ir a esses encontros; mas ele admitia que se sentia aliviado quando Alberto tinha seus imprevistos.

Ele olhou para o relógio digital sobre a mesa de cabeceira. Já eram quase dez e meia da manhã.

— Vou. Eu me esqueci. — respondeu, esfregando os olhos e cambaleando em direção ao seu banheiro. — Valeu, Miriam.

Mãe — corrigiu a mulher, franzindo o nariz. — E lave esse cabelo.

O rapaz apenas assentiu, enfiando-se no banheiro. Miriam saiu do quarto, e Lucas pôde escutá-la bater exageradamente na porta do aposento de Luan — que sempre acordava depois das onze da manhã.

O som da voz da mãe advertindo o irmão foi abafado pela água caindo em seu rosto. Ele fechou os olhos, lembrando-se do motivo de seu cansaço mental. Desejou secretamente, mais uma vez, que o pai tivesse mais um imprevisto.

Mas, como nada parecia estar ao seu favor naqueles tempos, seu desejo não foi atendido.

✦✦✦

Alberto chegara quinze minutos mais adiantado. Até às onze e quinze da manhã, Lucas ainda tinha esperança de que o pai ligasse ou mandasse alguma mensagem dizendo que não poderiam almoçar juntos naquele dia — mas, para a sua surpresa, ele ouviu a inconfundível buzina do carro de Alberto mais cedo do que ele esperava. Lucas desceu as escadas rapidamente, deparando-se com o irmão jogado no sofá da sala. Sonolento, o caçula resmungava com uma almofada sobre o rosto. Lucas não compreendeu o que ele dizia, mas sabia que era alguma reclamação sobre o tema acordar cedo. Ignorando-o, o rapaz saiu de casa e viu o carro cinza-escuro do pai estacionado à frente. Respirou fundo, acelerando os passos. Antes que ele abrisse a porta do automóvel, Alberto começou a dizer:

— Meu filho aprovado em Belmontine! — exclamou, animado. Lucas fechou a porta do carro, sem coragem de encará-lo. O pai bateu a mão em seu joelho, parabenizando-o. Ele não estava preparado para aquilo, porém, era esperado que Alberto verificasse por conta própria a lista de aprovados na internet. — Eu sabia que conseguiria! Meus parabéns.

— Obrigado — o rapaz, ainda sem coragem de olhá-lo, tentou dizer da forma mais entusiasmada possível. Mas não conseguiu. No entanto, Alberto não parecia ter notado; ou simplesmente não se importava. Pois ele havia conseguido o que queria: que o filho mais velho fosse aprovado em Administração para seguir seus passos e ser seu sucessor. O quão antiquado aquilo era? Quanto mais Lucas pensava naquela possibilidade, mais ele ficava enojado. Definitivamente ele não queria ser dono de uma pequena empresa de pneus. O rapaz admirava o foco e o empreendimento do pai para com os seus amados pneus, entretanto, aquilo não era para ele. Não porque a empresa estava sempre quebrada, mas porque... Bem, Lucas não era muito fã de pneus.

Alberto deu partida no carro e começou a falar sobre os últimos acontecimentos no trabalho e sua vida amorosa. O rapaz ficou aliviado por ele não ter insistido no assunto faculdade. Enquanto falava, ele olhou de soslaio para o pai, tentando demonstrar interesse. Luan tinha alguns traços dele: os cabelos mais escuros, o nariz protuberante e olhos castanhos. Usava um cavanhaque que combinava com o cabelo lustroso de gel. O único traço que Lucas havia herdado de Alberto, ao seu ver, eram os lábios mais cheios e de tom enrubescido. Entretanto, havia algo que os diferenciava ainda mais, e nada tinha a ver com o físico: Alberto falava demais.

—...Cristina é uma mulher muito agradável. Bonita, gentil e trabalhadora. Fomos ontem àquele novo restaurante, na avenida. Agora esqueci o nome. Mas a comida é ótima! Sabe qual é, meu filho? O restaurante novo? — ele falava conforme dirigia. Mas Lucas não havia escutado nada. Às vezes, o pai o deixava desorientado. — Lucas? Está me escutando?

— Oi. Desculpe. Restaurante? Cristiana? — ele balançou de leve a cabeça, tentando se lembrar qual era o nome da última mulher que ele contara que saíra. O rapaz não se lembrava (pois eram muitas), mas tinha certeza de que não era a mesma. Lucas não era muito interessado pela vida amorosa do pai.

Cristina — ele corrigiu. — Estava perguntando se você sabe o nome do restaurante novo.

— Eu não sei. Que tal, hã, irmos lá? — Lucas sugeriu, ainda sem ânimo. Ele só queria sua cama. Queria dormir até que sua cara se fundisse ao travesseiro. Mas Alberto pareceu considerar a ideia, pois mudou de rota.

— Por que todo esse mau humor? Não está feliz por ter passado na faculdade? — o pai perguntou, olhando-o de esguelha. Lucas se controlou para não fechar ainda mais a cara. Ele sabia que Alberto não ia esquecer aquilo tão cedo. Porém, não queria culpá-lo por sua satisfação. Fora ele quem pagara o cursinho para que Lucas estudasse e, assim, fizesse a prova. Seu dinheiro não havia sido em vão, afinal.

O rapaz ficou muito enjoado de repente.

— Não, eu estou feliz. Muito feliz. — Lucas resmungou, apertando os dedos contra a calça jeans. Ele duvidava que havia convencido Alberto de sua falsa alegria. Estava literalmente na cara que ele não estava nada feliz.

— Que bom — Alberto sorriu, já avistando o restaurante. — Você vai gostar, te garanto. E, quem sabe, você finalmente arranje uma namorada. Deve ter muitas gatinhas na universidade! Mas... — ele fez uma pausa, e Lucas cerrou os olhos. Ele pressentiu as próximas falas. As brincadeiras de sempre. — ...você precisa conversar com suas futuras pretendentes. Senão, como vai paquerar?

Lucas sentiu seu enjoo aumentar. Alberto riu, sabendo que aquilo deixaria o filho sem graça. Mal sabia ele que aquilo não o só o envergonhava, mas também o deixava arrasado. Sem energia alguma para entrar na brincadeira ou rebater, ele não respondeu. E, mesmo se quisesse, não poderia; pois temia que aquele aperto na garganta se transformasse em lágrimas. E ele não podia chorar. Nunca podia.

O resto daquela manhã não melhorou muito o seu dia. Logo quando chegaram ao restaurante — um belo lugar cercado de árvores e um parquinho rústico para as crianças — Lucas teve o ímpeto de sair correndo. Mas, por mais que quisesse fazer aquilo, ele não conseguiria; pois sentiu-se paralisado pela súbita ansiedade que o dominou.

Havia tempos que ele não sentia aquela sensação. E não era uma boa sensação.

Logo à entrada, ele avistou um conhecido rosto do seu antigo colega de classe. Talvez não o reconhecesse pela feição transformada e mais madura, mas Lucas — que era um ótimo observador — sabia identificar um rosto conhecido rapidamente. E o rapaz o reconheceu: Bernardo, o garoto quieto e inteligente, que nunca foi maldoso com ele — mas que, com certeza, também se perguntava porque Lucas não falava, já que não era mudo.

Alberto só percebeu que Lucas não estava acompanhando-o quando, ao escolher uma das mesas próximas à varanda, olhou para os lados e não viu o filho. Quando notou, por fim, o olhar assustado e ansioso de Lucas, arqueou as sobrancelhas e fez um gesto rápido para que se aproximasse.

Forçando seus membros inferiores, Lucas andou rapidamente em direção ao pai e sentou-se de frente para ele, as mãos já trêmulas e úmidas. Acalme-se, ele não vai te reconhecer, disse para si mesmo, mas a situação piorava a cada segundo. O rapaz não queria ter uma crise em meio àquela gente só porque um antigo colega estava no mesmo ambiente que ele. Aquela reação poderia ser algo incompreensível — e até exageradamente dramática — para muitas pessoas, mas só pelo fato de ter que falar com a presença de alguém que o conhecia, já lhe causava perturbações demais.

Um garçom se aproximou, dando-lhes boas-vindas e perguntando o que desejavam. Lucas, novamente, quase não escutou a voz do homem. Quando sentia-se tenso demais, era como se tudo estivesse distante — as vozes, as pessoas, o ambiente. Alberto pediu uma bebida e olhou para o filho.

— E você? O que vai querer beber? — perguntou. O rapaz engoliu em seco, olhando de soslaio para o ex-colega que transitava pelo restaurante. Lucas tinha certeza que ele havia notado a sua presença. Tinha certeza de que olharia para ele no momento em que Lucas abrisse a boca. Ele escutaria a sua voz.

O rapaz encarou os olhos do pai; como fazia quando era criança. Quando isso acontecia, Alberto sabia que teria que responder por ele. E ele sempre respondia. Mas Lucas não era mais criança. Ele já era um adulto, e o pai já não tinha a mesma paciência.

Alberto bufou e virou-se para o garçom.

— Um suco de laranja, por favor — disse. — Vamos resolver o almoço depois. Obrigado.

O garçom anotou o pedido e saiu. Sem coragem de olhar para o pai, mais uma vez, Lucas baixou o rosto e fitou os próprios dedos jogados sobre as pernas. Um torturante silêncio se instalou por alguns segundos, até que Alberto se manifestou:

— Até quando vai continuar com essa bobagem, Lucas?

Ele parecia realmente irritado. O coração de Lucas começou a bater mais forte, e ele olhou para a varanda para observar a rua. Queria muito responder, mas não conseguia. Não podia. E, como se não bastasse aquela situação constrangedora, ele sentiu uma mão pousar levemente em seu ombro. O rapaz se virou rápido, defrontando-se com os olhos castanhos e a barba escura de Bernardo. Pela primeira vez percebeu que o rapaz estava com o uniforme do restaurante. Era um maître.

— E aí, Lucas. Tudo bem? — perguntou com um sorriso. Era evidente que ele só queria ser gentil, e não deixar Lucas ainda mais inibido. Ainda assim, ele conseguiu balançar a cabeça em sinal positivo, arriscando um sorrisinho sem graça. Depois, o ex-colega cumprimentou Alberto, e o rapaz e surpreendeu ao perceber que eles pareciam se conhecer.

Aquele fato não o ajudou a se sentir melhor.

— Você o conhece? — o pai indagou, olhando para o filho. Lucas ficou calado, dessa vez fitando o guardanapo sobre a mesa.

— Fomos colegas no ensino médio. — Bernardo respondeu, e Lucas pôde sentir o seu olhar sobre ele. — Bom te ver, cara. Faz um bom tempo.

Lucas balançou a cabeça, concordando. Alberto arqueou a sobrancelha, evidentemente surpreso.

— Quanta coincidência! — ele exclamou, analisando o filho. — Ah, é por isso que você ficou calado. É gente boa, esse rapaz. Não tem que ficar com essa falta de educação. Sabia que ele é filho dos donos do restaurante?

Lucas sentiu o rosto esquentar e balançou a cabeça em sinal negativo. Ótimo. Ele nunca poderia ir àquele restaurante sem ter a sensação de que iria explodir de ansiedade. Na verdade, ele não poderia ir a lugar algum onde houvesse pessoas de seu passado. Pessoas que o conheciam pela sua misteriosa mudez. O problema não era Bernardo — ele nunca fez nada contra Lucas — o problema era ele mesmo. Sua bobagem e falta de educação, como havia dito Alberto.

Constrangido, ele não conseguia olhar para o outro rapaz e muito menos para o pai. Queria apenas fugir daquele lugar. Fugir de si mesmo. Eram aquelas pequenas coisas que mexiam, dia após dia, com suas inseguranças. Como ele conseguiria conversar com seus novos colegas na faculdade, se mal conseguia falar com o pai na presença de um antigo colega?

Bernardo afastou-se para atender outros clientes, despedindo-se dos dois e desejando-lhes um bom apetite. Lucas podia sentir o olhar opressivo do pai sobre ele, desaprovando sua atitude aparentemente infantil. Ele esperou ouvir um sermão, mas Alberto permaneceu calado.

Quando a comida chegou vinte minutos depois — uma bela lasanha, a comida favorita de Lucas — ele estava sem fome alguma. Mesmo assim, ele se forçou a se alimentar; mas a comida mal passava pela sua garganta.

Os dois almoçaram em silêncio. Mais uma vez, Lucas sentiu que seria para sempre uma decepção para ele. Não só para o pai, como para sua mãe e toda a sua família. Mas agora, ele tinha a chance de mudar isso indo para a faculdade. De abrir a boca para pessoas desconhecidas e simplesmente falar. Falar tudo o que estava preso em sua garganta. Falar que seu nome era Lucas. Dar bom-dia ao porteiro. Conversar com os colegas. Ter uma vida normal. Se sentir normal.

Falar. Um verbo tão fácil... Mas não para ele.

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