19. Imagens e palavras

𓅯 Capítulo 19 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Sem saber mais o que fazer com as mãos trêmulas, Lucas enfiou-as nos bolsos da bermuda e fixou os olhos em um pinheiro que crescia ao lado de um dos bancos da praça. Era terça-feira à tarde, o único dia da semana em que Beatriz não estudava ou trabalhava em seus misteriosos projetos fotográficos. Desde o dia anterior, os dois passaram a conversar com frequência — sobre todos os assuntos possíveis; sérios ou fúteis. Era como se fossem amigos há muito tempo. Em uma das conversas virtuais, durante o intervalo de Lucas na faculdade, Beatriz perguntou se ele não desejava ver algumas de suas fotos pessoalmente. O rapaz aceitou, um pouco perplexo. Tentava convencer-se de que Beatriz só estava sendo gentil; que ela na verdade tinha pena dele. No entanto, em nenhum momento houve a típica e insistente pergunta "por que você não fala?". Era como se, para ela, Lucas fosse uma pessoa qualquer; e não o garoto que não falava. E ali, por trás da tela de um celular — e através das palavras escritas — era como se ele conseguisse ser alguém que nunca conseguia alcançar de outra forma.

Suas pernas agitadas balançavam todo o seu corpo, fazendo-o consertar a postura a cada três segundos. Tirou uma das mãos do bolso, olhando o relógio de pulso. Eram 15:03. Eles haviam combinado de se encontrar às 15 horas, mas ele havia se adiantado quinze minutos. E se ela não viesse? E se aquele encontro fosse tão irrelevante, que ela havia se esquecido? Lucas engoliu em seco, temendo aquela possibilidade.

Quando estava prestes a consultar as horas novamente, o rapaz avistou, de esguelha, a silhueta da moça. Lucas respirou fundo e virou-se em sua direção, observando-a caminhar vagarosamente pelo caminho cimentado que estendia-se pelo parque. Beatriz sorriu-lhe, notando de imediato a sua presença à distância. O rapaz tentava, inutilmente, controlar as emoções e as mãos instáveis. Como de hábito, os cabelos escuros da moça estavam presos em um coque alto. Carregava uma pasta sob o braço esquerdo, enquanto o outro, livre, erguia-se em um cumprimento descontraído. Ele fez o mesmo, recolhendo-se rapidamente.

A moça apressou os passos, e Lucas encolheu-se ainda mais no banco.

— Acho que me atrasei — ela constatou, sentando-se ao lado do rapaz. Beatriz vestia uma camisa rosa-bebê e calças jeans. Linda...Ela é tão bonita, Lucas pensou, temendo por um momento que ela lesse seus pensamentos ou sua expressão abobalhada e ansiosa.

Ele desviou o olhar e maneou a cabeça, querendo dizer: não se preocupe com isso, só se passaram três minutos. Três terríveis minutos. Acomodando-se no banco, Beatriz abriu a pasta preta e entregou a Lucas. O rapaz colocou-a delicadamente sobre suas pernas como se carregasse um bebê. Na primeira página, havia uma bela foto de uma paisagem serrana.

— Esse é um dos meus portfólios favoritos — a moça revelou, inclinando-se um pouco. Lucas identificou um cheiro que lembrou-lhe baunilha e amêndoas. — Essa eu tirei na cidade de meus avós. Lá é muito bonito. Gosto de tirar fotos da natureza, como as paisagens.

Eu gosto de pintar paisagens, ele queria dizer. Lucas não havia revelado que gostava de pintar. Ainda temia que a moça lhe achasse sem graça demais ou não muito viril. Seu pai sempre havia dito, quando o assunto era mulheres, que elas não gostavam de homens muito delicados. E Lucas, em sua concepção, não era o homem viril que ele e nem as moças supostamente esperavam. Ele duvidava que Beatriz fosse tão exigente e antiquada, no entanto, o rapaz achava que ainda era cedo demais para expor seus gostos peculiares.

Beatriz passou a página, e Lucas viu mais fotografias exibindo paisagens e locais onde a natureza era abundante — um campo verdejante ali, um canteiro de flores aqui. Não eram fotos comuns que passavam despercebidas a qualquer olhar. Havia algo naquelas fotografias — seja a forma como eram tiradas ou suas cores — que fazia com que Lucas desejasse ficar contemplando cada detalhe. Na próxima páginas, no entanto; contrapondo a beleza das imagens anteriores, cenários onde a interferência humana era visível foram registradas sem a preocupação estética: garrafas de plástico e vidro lançadas à beira de uma lagoa, papéis de balas, latinhas de cerveja e bitucas de cigarro jogados em uma praça arborizada.

Lucas arqueou as sobrancelhas, surpreso. Beatriz sorriu, apontando para uma das fotos onde os sacos de lixo e despojos desagradáveis espalhavam-se à beira de uma estrada.

— Essa foi a primeira foto que tirei desse tipo. Desde então, passei a me interessar mais pela fotografia ambiental — ela contou, passando mais uma página. Ali, havia duas fotos de uma mesma praia, mas com cenários diferentes. — Aqui, na primeira, manipulei a imagem e tirei toda a sujeira. Também clareei a areia. A ideia é que haja contraste entre os dois cenários e faça com que as pessoas reflitam. O que você acha?

O rapaz começou a balançar a cabeça freneticamente, tão entusiasmado quanto ela. Além de tudo, Beatriz era crítica. Lucas achou que era impossível não ficar mais encantado, mas estava enganado. A moça parecia tão feliz ao mostrar seu trabalho que todos os receios de Lucas desapareceram naquele breve momento.

— Eu sempre achei que as imagens significavam muito mais do que as palavras faladas ou escritas. Não que elas não sejam importantes — Beatriz prosseguiu. — Mas acho que não geram tanto impacto quanto às formas. As pessoas preferem se horrorizar com as imagens do que com artigos que expõem a falta de vergonha humana.

Lucas concordou, fazendo uma expressão apática e preguiçosa. Beatriz riu.

— Sim. As pessoas têm preguiça de ler. Mas eu não quero parecer chata com isso — ela passou mais algumas páginas, revelando novamente belas paisagens; gramas recém-cortadas, campos floridos ordenados e árvores aparadas. Mais interferência humana, mas totalmente contrárias àquelas vistas anteriormente. Era tão bonito. — É só algo que eu...gostei de fazer.

O rapaz passou as páginas devagar, analisando cada fotografia com atenção. Ele não precisava fingir que estava interessado para agradá-la — ele realmente estava interessado em tudo aquilo. Internamente, ele dizia: Esse ângulo ficou ótimo. É como se estivéssemos vendo debaixo. Uau, que cor bonita. Um pôr-do-sol multicolor! De repente, o rapaz sentiu um aperto na garganta. Lucas queria dizer tantas coisas. Nunca sentiu tanta vontade de falar. Queria dizer a ela o quanto aquele trabalho era incrível. O quanto ela era inteligente e talentosa. Queria contar-lhe sobre os quadros que costumava pintar quando ainda sentia-se inspirado. Queria dizer tantas coisas...

Diante daquela impossibilidade, sua mente foi invadida por pensamentos daninhos; arruinando o momento. Ele não conseguia entender porquê estava sentindo tudo aquilo — aquela súbita angústia, aquele desejo imensurável de abrir a boca e falar. Mas seu corpo, sua mente ansiosa e seu maxilar exageradamente cerrado o proibia de emitir qualquer som. Todo o seu ser entrou em alerta, como se apenas o desejo de falar o colocasse em um perigo iminente.

Lucas forçou um sorriso e fechou a pasta ao chegar na última página.

— Gostou? — Beatriz perguntou. O rapaz maneou a cabeça em sinal positivo; sem conseguir olhar para ela. Ao devolver a pasta, temeu que ela percebesse suas mãos inquietas.

O silêncio que se seguiu nos segundos seguintes foi agoniante para ele. Se Lucas pudesse encolher-se dentro de si mesmo, como uma tartaruga, ele assim faria. Seu coração disparava incessantemente, deixando-o sem fôlego. Estava ciente de que o motivo não era a moça ao seu lado, e sim o medo irracional que apossou dele. O bem-estar inicial desapareceu e ele teve vontade de chorar como uma criança. Porém, ele reprimiu qualquer lágrima que ameaçasse cair diante da garota que gostava.

— Você está bem, Lucas? — a moça perguntou, o dócil timbre de voz manifestando preocupação. O rapaz baixou a cabeça com dificuldade, sentindo-se paralisado. — Quer caminhar um pouco?

Ele assentiu, sentindo o pescoço rígido e a boca seca. Evitando seu olhar, Lucas se pôs ao seu lado e acompanhou-a, levemente atordoado. Caminharam juntos pelo parque arborizado por alguns minutos, em silêncio, e aos poucos a apreensão que se apossou dele desapareceu. Beatriz, apesar da agitação que lhe causava pela sua paixão desenfreada, emanava tranquilidade e acalento.

Naquela tarde, Lucas chegou à conclusão que não a merecia.

✦✦✦

Hoje, 17: 13 p.m:

Lucas Evans: Oi. Desculpe por agir estranho

Lucas Evans: Acho que estou estressado com a faculdade

Hoje, 17: 16 p.m:

Beatriz: Tudo bem, não se preocupe com isso. Vc está melhor?

O rapaz soltou um suspiro de alívio. Ainda envergonhado por ter agido como um idiota, Lucas não hesitou ao enviar-lhe uma mensagem quando chegou em casa. É claro que seu comportamento nada tinha a ver com a faculdade — ou talvez fosse um conjunto de coisas as quais ele ainda não sabia definir.

Lucas Evans: Estou bem. Obrigado

Lucas Evans: Gostei muito das suas fotos. Vc tem talento

Lucas Evans: e a crítica é ótima 😀

Beatriz: muito obrigada. É ótimo que tenha se interessado

Beatriz: eu percebi algo...

Beatriz: algo em seu olhar. Vc é artista?

Lucas riu para si mesmo. A moça era tão observadora quanto ele.

Lucas Evans: Não sou um grande artista. Mas eu gosto de pintar quadros às vezes

Beatriz: Quadros? Que incrível, Lucas. Já pensou em expor?

Lucas Evans: Não, nunca. Não sou bom o suficiente pra isso

Lucas Evans: É só um hobby

Beatriz: aposto que é bom sim

Beatriz: Fotografia também era um hobby pra mim

Beatriz: Gostaria de ver um dos seus quadros um dia

Lucas: tudo bem...

Beatriz: algo caiu lá embaixo. Aposto que Bianca derrubou mais um prato

Beatriz: vou socorrê-la, volto já

Lucas Evans: acho que ouvi algo daqui 🙂

O rapaz não gostou nada da súbita interrupção; porém, estava um pouco mais aliviado após aquela conversa. Estava surpreso consigo mesmo; pois não costumava conversar tanto virtualmente. Muito menos concordar em mostrar seus quadros e desenhos. Beatriz, no entanto, o deixava tão confortável quanto era possível para alguém que ele estava gostando. Lucas gostava disso. Ele só não gostava da pressão que ele sentia dentro de si quando se tratava dela. O rapaz tinha medo. Medo de se machucar e machucá-la de alguma forma com o seu jeito de ser.

Ele sentia um enorme desejo de agradá-la. De ser alguém que ela pudesse sentir que estava segura para mostrar seus trabalhos e demonstrar seus sentimentos mais íntimos. De ser alguém que, mesmo sem nada dizer, poderia escutar sua história de vida e segurar sua mão. Como no sonho que tivera.

Lucas olhou para o cavalete no canto do quarto e saltou da cama. Atento a qualquer notificação do celular em seu bolso, sentou-se no banco diante do cavalete. O quadro inacabado, retratando um céu azul e nuvens espessas, ainda estava ali. Ele o retirou do cavalete, colocando-o junto com outros quadros excluídos de seu projeto artístico particular. De uma de suas caixas, retirou uma tela branca; um pouco maior que uma folha de caderno. Com um lápis, ele começou a fazer um esboço. Em sua tela mental, já visualizava claramente o que queria transmitir à tela.

Imagens e palavras vinham em sua mente enquanto a ponta do lápis deslizava pelo quadro branco, reproduzindo as primeiras linhas. Seus dedos pareciam ter vida própria. Imerso na tela, ele visualizou em sua mente o formato da grande árvore do parque e a posição das árvores menores que compunham o espaço. Viu perfeitamente a posição dos pinheiros e as serras ao longe. O caminho que levava aos escorregadores e balanços. O céu azul e amarelo.

Há tempos Lucas não se sentia tão inspirado. Aquilo foi o suficiente para que ele se sentisse um pouco melhor; como no tempo em que ele não se importava tanto com o que estava por vir — ele só se preocupava em terminar seus desenhos e suas pinturas, recusando-se a desistir de qualquer uma das obras que achasse que valeria à pena. Mesmo que fosse difícil. Mesmo que às vezes ele não acreditasse em si o suficiente.

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