17. Sonho lúcido

𓅯 Capítulo 17 | O Canto dos Pássaros 𓅯

Naquela noite, Lucas sonhou com Beatriz. Mas, diferentemente dos sonhos que costumava ter — sempre temendo que alguém escutasse a sua voz — o rapaz se ouviu e sentiu que conversava com ela. Sem estranhamento, sem ansiedade. Fora tão real que à princípio ele não desconfiou que fosse apenas um sonho. No entanto, essa sensação não durou por muito tempo, pois logo descobriu que estava sonhando. Era outro fato incomum: Lucas não costumava ter sonhos tão lúcidos.

Ele se lembrava claramente sobre o que conversavam e o lugar ao qual estavam — embaixo da grande árvore do parque, observando o amanhecer. Eles falavam sobre o futuro, mas não de forma ansiosa ou melancólica. Beatriz lhe falava sobre Fotografia, sobre o que aprendera e o que pretendia fazer profissionalmente. Lucas contou-lhe sobre como aprendera a desenhar e a pintar. Falaram também sobre o passado: como foram suas infâncias, suas dificuldades e alegrias. O rapaz sentia sua mão sobre a dela, tão palpável que ele podia sentir a maciez de sua pele. Naquele mundo dos sonhos, Lucas estava tão feliz, tão livre e tão esperançoso — e foi nesse exato momento que ele soube que estava de fato sonhando.

Ao despertar naquela manhã de sábado, Lucas sentiu-se eufórico. O monstro que não o deixava conversar com a garota a qual estava definitivamente apaixonado ainda existia, mas aquele sonho deixou-o tão cheio de energia que foi necessário fazer algo para aliviar toda aquela carga que pulsava em seu corpo. Então, às sete da manhã, o rapaz saltou da cama e se pôs a correr pelas ruas do condomínio; as músicas clássicas sendo substituídas por canções românticas e alegres. Fora impossível passar em frente à casa 10 e não desacelerar os passos, procurando algum indício da presença da moça que conversara em seus devaneios noturnos. Desejou que ela estivesse ali, com sua camiseta e calça legging, admitindo que estava muito ociosa e precisava se exercitar um pouco — e com ele, pois ela gostava de sua presença. Obrigada pela companhia, Beatriz havia lhe dito na noite anterior.

Às vezes, ele pensava se aquela noite não fora um delírio de sua mente. Se não fora mais um sonho que tivera e não soube distinguir. Ele seria capaz de sentar-se em frente aos arbustos que cercavam a casa 10, esperando Beatriz atravessar o jardim com um sorriso em sua direção. Conversariam embaixo da árvore sobre o futuro, o passado e o presente. Lucas poderia tocá-la, como tanto desejou no momento em que estava ao seu lado — e como em seu sonho. Mas ele não faria aquilo, pois sabia que era loucura demais esperar tal atitude dela. Era provável que Beatriz ainda estivesse dormindo, ou quem sabe tomando café da manhã, sem ao menos se lembrar da existência dele. Por isso, Lucas retomou a caminhada em largos passos em direção ao parque. Correndo, dera algumas voltas na praça até seus pulmões pedirem clemência. Depois, o rapaz voltou para a casa, com o corpo aquecido e o estômago implorando por comida.

— O que é isso? Foi assaltado? — Lucas deu um pulo quando escutou a voz de Luan. Sua boca estava recheada de biscoitos.

— Não — respondeu, fitando-o da sala. O irmão tomou um longo gole de achocolatado. — E você, acordando cedo?

Luan deu de ombros, colocando o copo sobre a bancada.

— Tenho algumas coisas para resolver — disse, enfiando mais biscoitos à boca. Farelos brancos caíam em sua camisa preta.

— Não vai almoçar com Alberto?

— Diga a ele que tenho coisas a resolver — ele franziu o nariz, deixando claro o seu desinteresse em se encontrar com o pai. Lucas deu de ombros, e o irmão passou pela porta da sala sem falar para onde iria.

Na noite anterior, em uma ligação — logo após Lucas voltar para casa praticamente flutuando — Alberto havia insistido para que ele convencesse Luan de almoçar com eles naquele sábado. O rapaz achara estranho, pois o pai já havia dito que não pressionaria mais o filho mais novo a se encontrar com ele. No entanto, pelo tom de voz de Alberto, Lucas percebeu que talvez fosse algo importante. Mas ainda estava tão envolvido com o que havia acontecido naquela noite que ele apenas mandou o recado para Luan e não pensou mais naquilo. Só pensava em Beatriz. Só pensava em como faria para vê-la novamente; torcendo para que houvesse uma nova oportunidade logo.

O tempo correu rápido pela manhã. Às onze em ponto, ele esperava o pai na varanda da casa, atento a qualquer movimento na rua e nas casas vizinhas. O carro de Alberto se aproximou, buzinando duas vezes.

— E Luan...? — o pai perguntou assim que Lucas se sentou no banco passageiro.

— Ele disse que tinha algo importante para resolver — respondeu, tentando encaixar o cinto de segurança no seu devido lugar. Na décima tentativa, ele desistiu. Alberto ajudou-o, pressionando o cinto com violência. Lucas pensou em sugerir ao pai de tentar trocar aquele carro.

— Hum — ele acelerou, evidentemente decepcionado com a ausência de Luan. — Ok.

Aquilo estava realmente estranho. Alberto nunca pareceu se importar muito com o desinteresse do mais novo. A mente de Lucas começou a ser invadida por pensamentos catastróficos.

— Está acontecendo alguma coisa? — o rapaz perguntou. — Você está...doente?

Alberto soltou uma gargalhada estrondosa, superando o som do motor do carro.

— Doente! Não que eu saiba, meu filho — ele respondeu, incrédulo. — Não posso desejar uma convivência saudável com meus filhos?

— Hã, claro. — Lucas balançou a cabeça. — Pode. Eu só...

— Como está indo na faculdade? Já fez muitos amigos? — Alberto disparou. — Está gostando do curso?

— É, estou — Lucas assentiu, disfarçando a incerteza. — O cara do restaurante, Bernardo, também estuda lá. Mas não somos amigos. E tem o Wallace...

— Wallace? — o pai esperou que ele continuasse.

Lucas balançou os ombros.

— Sim, ele é calouro. É só um colega. — falou. — E sobre o curso...acho que não curto muito a parte da matemática.

— Se quiser, posso lhe pagar algumas aulas particulares.

Lucas maneou a cabeça em sinal negativo de imediato. O carro quase morreu ao dobrar a esquina, e um pequeno restaurante rústico entrou no seu campo de visão.

— Você já gastou o suficiente comigo. Eu me viro. — disse, incapaz de admitir que não sabia se conseguiria passar do primeiro período.

— Certo — Alberto parou no estacionamento do restaurante. — Podíamos ter ido ao restaurante onde o seu colega trabalha, mas aquele lugar é para a classe alta. Sinto muito.

— Eu não gosto muito de lá mesmo — Lucas murmurou, aliviado pela escolha do pai por outro local. — Os restaurantes populares têm as comidas mais apetitosas. E batata frita à preço justo.

Alberto riu. Eles entraram no restaurante — que, para o alívio de Lucas, não estava tão cheio.

— Você está diferente — o pai constatou, observando o filho de esguelha. — Está mesmo gostando da faculdade?

Lucas escolheu uma mesa próxima à janela, evitando o olhar do pai.

— Estou — ele mordeu o lábio inferior. — Estou gostando muito.

Lucas se sentou, balançando as pernas. Atrás dele, um casal com dois filhos almoçava enquanto conversavam entre si. Alberto verificou o cardápio do dia, observando os preços. Coçou a cabeça coberta de gel, alisando o cavanhaque em seguida. Lucas conhecia aquele gesto: o pai estava querendo dizer-lhe algo.

— Sobre o que queria conversar? — o rapaz perguntou baixinho, inclinando-se em direção ao pai. Aquele suspense estava deixando-o ainda mais ansioso.

— Bem — ele fechou o cardápio, apoiando as mãos sobre a mesa. — É uma pena que Luan não quis almoçar com a gente, pois o convite é para ambos. Não importa. Você diz para ele depois. Na verdade, preciso dizer duas coisas...

— Pai — Lucas estava com os nervos à flor da pele. — Fale logo.

— Tudo bem, tudo bem — Alberto balançou a cabeça. — Veja, eu já fiz essa proposta a Luan, mas ele recusou e...você sabe, trocamos ofensas. Mas não fiz a você porque achei que não aceitaria e sabia que estava se dedicando aos estudos. De qualquer forma, agora que é um universitário, pensei que seria interessante você estagiar na minha empresa. Quatro horas por dia, de segunda à sexta. O que acha?

— Você dispensou os funcionários, não é? — Lucas questionou-o, já sabendo a resposta.

Alberto suspirou.

— O que acontece, meu filho, é que estou quebrando. Se eu não fizer isso, terei que fechar a loja. Achei que seria uma boa oportunidade para você. Porém, terá que se esforçar um pouco mais para ser menos...tímido.

Lucas só percebeu que estava mordendo a língua quando sentiu o gosto de sangue na boca. Ele queria recusar, dizendo-lhe que não conseguiria ser o que o pai queria que ele fosse. Que não entendia nada sobre carros, sobre pneus e estava totalmente desinteressado pela faculdade. Mas, apesar da irritação que crescia em seu peito naquele momento, Lucas respirou fundo e disse:

— Eu vou pensar sobre isso.

O pai concordou. Um garçom foi até eles, e Alberto pediu o prato do dia e dois copos de suco de laranja. Lucas ficou apreensivo só de se imaginar trabalhando na loja de Alberto. Atendendo telefonemas. Recepcionando pessoas. Será que o pai não percebia que ele era incapaz de fazer aquelas coisas?

— A segunda coisa é que estive planejando uma viagem à praia, nas férias de julho. — Alberto prosseguiu. — Gostaria de que você e Luan fossem comigo. Podemos passar um tempo juntos, em família. Fecharei a loja por uma semana. Sei que será inverno, mas...veja, estou olhando um ótimo apartamento de frente para o mar. É mais barato quando há menos demanda.

Lucas arqueou as sobrancelhas. Alberto estava surpreendendo-o naquele dia. Em nenhum momento havia sacado o celular do bolso para olhar mensagens ou atender ligações. Não havia consultado as horas no relógio de pulso. Não fez cálculos para averiguar se o preço da batata frita era justo. Até mesmo o fato de ter admitido que estava com problemas financeiros era inédito — e ainda sim, queria fazer uma viagem com os filhos.

Por algum motivo, ele não conseguiu dizer não. Mesmo que fosse aproveitar a praia no inverno. Mesmo que ele ficasse longe de casa por uma semana e que fosse uma péssima viagem — a qual Luan provavelmente não aceitaria.

As batatas fritas chegaram junto com o prato do dia alguns minutos depois. Alberto sorriu, satisfeito, enfiando duas batatas na boca. Pela primeira vez, Lucas notara que seus olhos estavam fundos, como se não estivesse descansado durante a noite. O rapaz também ouviu o celular vibrar no bolso do pai, mas ele o ignorou totalmente.

Lucas bebericou o suco, encarando as batatas. As coisas estavam realmente estranhas.

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