Era quase manhã quando o silêncio da madrugada novamente se partiu. Cida abriu os olhos no mesmo instante em que os urros de dor e medo começaram outra vez, e então soube que a decisão que havia tomado dias atrás se cumpriria o mais cedo que pensara. 

    Colocou os pés no chão e descobriu-se da proteção de sua manta, o frio da noite a assediou em seguida, enchendo sua pele de um intenso arrepio.  Agarrou o terço que dormia ao lado da cama, porém não fez menção de que iria rezar; aquele não seria um dia comum, pois estava disposta a enfrentar o assombro. Levou a mão para acender a vela e, dessa forma, dar sentido às sombras que a cercavam no quarto. Mas não. Conteve-se ao perceber que luz nenhuma a ajudaria, muito menos a barraria do que estava acontecendo. 

    O urro se repetiu. Abafado. Distante. 

    Cida sentiu a mão tremer e o suor brotar na testa, mesmo que o frio lhe afagasse a nuca. Apesar disso, pôs-se de pé e cobriu o corpo franzino com o grande pijama branco, que quase se arrastava pelo chão como um véu. Os braços finos alcançaram o cesto de costura, apanhando o material necessário para o confronto. 

    A porta pesada de madeira do quarto foi aberta da forma mais discreta que conseguiu. De forma alguma, podia chamar a atenção do ser demoníaco que vagava do lado de fora. O corredor, por sua vez, continuava como em qualquer madrugada: o chão de madeira velha e escura parecia se perder em meio ao negrume da noite, as paredes revestidas por pedras brilhava de forma inconstante com as luzes das velas, dispostas de duas em duas a cada cinco metros. As janelas se encontravam fechadas, mas ela sabia que a última hora do incandescer das estrelas consumia a área externa. 

    O urro voltou a se fazer presente, preenchendo o ar com baforadas de pura agonia. Vinha de mais a frente, ela percebeu. Não estava tão longe assim. 

    O primeiro passo para fora do quarto foi o mais difícil de ser dado, o corpo parecendo se recusar a sair da falsa proteção, contudo sabia que a única armadura necessária estava enlaçada entre seus dedos. O terço era a certeza da guarda de Deus, para onde quer que fosse, diante do tudo que tivesse que enfrentar. Andou, então, a passos lentos, constantemente a apoiar o corpo nas paredes gélidas. E, a medida que caminhava, não só os urros altos podiam ser escutados; aos poucos, os curtos sons de pavor, os pedidos de socorro iam saltando sobre seus ouvidos; o ser demoníaco se alimentava de mais uma vítima no convento. 

    Por mais que soubesse da urgência do que acontecia, não tinha condições de aumentar a velocidade das passadas. Continuou o trajeto, lenta, porém constantemente. A mão do terço tremia cada vez mais. A outra, entretanto, segurava o instrumento com firmeza entre as vestes volumosas. 

    Quantas mais ouviam atentamente o que acontecia, atrás das paredes e escondidas de baixo dos lençóis? 

    Enfim, chegou onde precisava estar. Aproximou-se da porta entreaberta, espiando sorrateiramente pela fresta. Não dava para ver nada dali, infelizmente; apenas o tremeluzir das sombras sobre a iluminação das chamas, embaladas pelo som baixo de dor e o barulho característico da besta. O coração se apertou no peito, os olhos se esqueceram como piscar, a respiração pareceu sem importância. De repente, pensou em desistir, dar meia-volta lhe pareceu a melhor opção, mas logo notou que aquelas eram as vontades dos seres obscuros, tentando impedí-la de prosseguir com a missão. 

    Empurrou vagarosamente o bloco de madeira, escancarando a cena de horror para quem quisesse ver. Irmã Alice chorava, fitando a imagem de Nossa Senhora e rezando baixinho. O corpo inteiramente desnudo sobre a cama, enquanto o ser asqueroso se colocava sobre ela, agarrando suas carnes enquanto se movimentava de forma sinusosa sobre seu ventre; movimentos repetitivos, sons profanos de prazer. 

    Irmã Alice urrou novamente de dor, implorando para que suas preces fossem ouvidas, ao passo que o demônio cobria sua boca sem cessar os movimentos. O corpo peludo, as pernas finas, a barriga volumosa. O suor, o cheiro, o toque rançoso… As lembranças saltaram na mente de Cida. 

    Segurando o terço com toda a força que seus braços frágeis podiam ter, ela se aproximou sem que fosse percebida. E quando estava perto o bastante para sentir novamente o cheiro inebriante do pecado, levantou com as duas mãos o instrumento que guardava. A tesoura do seu cesto de costura cintilou diante da luz, segundos antes de ser cravada nas costas da besta, que gritou de dor. 

    Irmã Alice se desvencilhou das garras, e caiu ao lado da cama, sem forças para ir mais longe, ao passo que a besta se contorcia sobre os lençóis, empapando os tecidos brancos de sangue. Gritou de dor, confuso, até que os olhos encontraram os olhos vidrados que o encaravam. 

    — Irmã Cida? — Padre Olavo falou, sentindo os pulmões fraquejarem. 

    — Meu Deus… — Irmã Alice continuava a rezar, caída nua sobre o chão de madeira. 

    Cida, por sua vez, conseguiu somente fitar o ser infernal sagrar cada vez mais. O ar lhe faltando, a vista se perdendo, o membro rijo se tornando eternamente flácido. 

     Até que o corpo cessou sobre a cama, e a tez branca do homem se tornou ainda mais branca com a falta de vida. Irmã Cida se sentou ao lado de Irmã Alice, colocando-a deitada em seu colo e acariciando seus cabelos grisalhos. Permitiu-se, então, chorar, como se finalmente pudesse colocar para fora todo aquela angústia resguardada. Choraram ambas, juntas. Sozinhas. Choraram até que não mais houvessem lágrimas. Até que restasse apenas o silêncio da madrugada. 

    Apenas o silêncio… 

    E, então, um barulho emergiu do nada, vindo de além das paredes de pedra, do chão frio de madeira e das portas pesadas do convento. Vinha de fora, ela percebeu. Dos pés de manga, ou de mexerica, talvez. Bem-te-vis cantavam, anunciando a aurora que chegava mansa. Um canto alto, vivo, e de repente as sombras não pareceram mais tão ameaçadoras, nem a luz da vela pareceu fraca demais. 

    Cantavam. Anunciando o novo dia que se iniciava, os raios de sol que apareceriam no horizonte em breve. Cantavam, trazendo esperança. Cantavam, e, por isso, Cida conseguiu sorrir. 

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