14. Mudanças e estranhezas
☆ Capítulo 14 | O Canto das Estrelas ☆
Alguns dias após aquele desagradável incidente, Lucas implorou à mãe que o levasse para cortar o cabelo. Miriam estranhou o pedido; o filho não era fã de salões de beleza e cabeleireiros em geral. Estranhou ainda mais quando o menino disse que queria cortá-los curtos. Geralmente, Lucas pedia para tirar apenas os excessos, alinhando os fios desgrenhados, mantendo sempre a franja e o caimento de sempre.
— Tem certeza? — Miriam perguntou mais uma vez, já a caminho do salão. — Não mudou de ideia?
— Não — Lucas olhava pela janela do carro. — Quero cortar tudo.
Notando o seu mau humor, Miriam não o questionou mais. No fundo, o menino não estava fazendo aquilo porque desejava um novo corte de cabelo, mas porque estava com raiva. Muita raiva. Depois que a tristeza cessou, uma fúria tão grande tomou conta dele que seria capaz de pegar uma tesoura da cozinha e cortar ele mesmo o cabelo. Concluiu que Yasmin não gostava dele quanto ele gostava dela por causa do seus cabelos longos. Então, ele os cortaria.
E assim foi feito. Sua franja foi-se embora. Sua cabeça estava quase raspada — o que era estranho, pois Lucas nunca permitiu que os cortasse tanto. O menino odiou. Aquilo aumentou a sua raiva ao invés de aliviá-la. Mas quem sabe, agora, Mateus parasse de encher-lhe a paciência e Yasmin o olhasse com outros olhos. Miriam, como sempre, elogiou o filho — mas a mãe sempre o acharia bonito, mesmo que estivesse careca.
A inimizade que o menino tinha com os espelhos aumentou ainda mais. Deu-se conta que Yasmin nunca se interessaria por ele; mesmo com os cabelos cortados. O motivo era simples: Lucas era feio. Feio e mudo. Quem se interessaria por ele? Tarde demais para se arrepender, ao chegar em casa, foi direto para o banho. Ignorou os comentários de Ben, que elogiava o novo corte. Lucas nunca havia se odiado tanto em toda a sua vida.
★★★
Todos os colegas olharam para Lucas quando ele entrou na sala. Estava um pouco atrasado, mas, por sorte, a professora não estava lá. Ignorando-os, sentou-se diante de sua carteira e pegou o caderno da primeira disciplina do dia.
— Você cortou o cabelo! — Júlia virou-se para ele. — Ficou legal... Apesar de gostar do seu cabelo antigo também. Ele era bonito.
Lucas assentiu sem olhar para ela. Apoiou a mão sobre o rosto, abrindo a apostila de Geografia. Pôde ouvir a voz de Yasmin conversando com as colegas a poucos metros dele.
— Você fez o dever de História? — Júlia perguntou baixinho. O menino assentiu novamente. — Você pode...Pode me passar? Poooor favor?
O menino finalmente olhou para ela, que sorria. Ele tirou outro caderno da mochila e entregou à colega, que agradeceu e prometeu que no dia seguinte o presentearia com balas de chocolate. Mateus não falou nada sobre o seu novo corte. Pelo menos, a ação radical de Lucas trouxe efeitos positivos: o menino realmente parou de implicar com ele durante um bom tempo. Até mesmo na educação física, Lucas passou a ter menos medo dele — apesar do episódio da bola na sua cara ter acontecido apenas uma vez, há mais de um ano. O problema era na hora do intervalo, pois Lucas não ficava mais sob a proteção do grupo de Júlia. Então, refugiava-se na biblioteca após lanchar escondido. Levava sempre um caderno, um lápis e uma borracha para desenhar nas mesas espalhadas entre as estantes.
Lucas, que sempre apresentou traços de introversão, passou a ficar cada vez mais retraído; mais sério e isolado de todos. Não era mais a criança que corria no recreio e conseguia sorrir nas brincadeiras. Seu semblante mudou. Ficava o tempo todo com as sobrancelhas franzidas e o maxilar tenso; o que às vezes causava dor em seus dentes. Quando alguém tentava se aproximar dele, o menino fechava ainda mais a cara. A biblioteca tornou-se o seu refúgio. Inicialmente, ia para lá para fugir dos possíveis ataques de Mateus; mas o colega passou a se envolver demais nos jogos de futsal que sempre aconteciam no intervalo.
Apesar de Júlia chamá-lo de amigo, Lucas não sentia um verdadeiro sentimento de amizade por ela. A menina não se importava mais em chamá-lo para lanchar no recreio, mas Lucas não ligava mais para aquilo. Preferia ficar sozinho. Em sala de aula, a colega agia da mesma forma de sempre: cumprimentava-o, pedia para copiar alguma atividade, enchia a sua garrafinha quando ela estava vazia, jogavam jogo da velha — mas, conforme o ano terminava, mais Júlia parecia distante.
As notas de Lucas diminuíram consideravelmente naquele ano. Em dezembro, recebeu a notícia que ficara em recuperação em Português e Matemática. Preferia mil vezes enfrentar os números do que aquela professora de Português; que teria que dar atenção exclusiva para ele e para outros quatro colegas (incluindo Mateus) que não foram bem na matéria ministrada por ela. Apenas mais uma tortura do ano.
Seu sofrimento seria compensado no ano seguinte, entretanto. Ele não esperava que as coisas ficassem melhores no 8º ano; mas, como dizia Ben: depois do caos, vem a ordem. Lucas ainda seria o garoto esquisito e impopular da sala e de toda a escola, mas os conflitos que havia enfrentado no 7º ano não mais existiria. Yasmin, sua antiga e ilusória paixão, não estava mais na sua sala. Mateus e um de seus amigos havia repetido de ano. O 8º ano 1 era composto por alunos mais calmos, menos agressivos ao jeito de Lucas e mais preocupados em estudar. Júlia havia ficado no 8º ano 2 — juntamente com Yasmin — o que significava que o menino havia perdido a única pessoa que parecia se importar com ele, mas o menino não ligou muito para aquele fato. Queria ficar sozinho, imerso em seus desenhos, nos quadrinhos que Pedro emprestava-lhe.
As coisas ficaram ainda melhores quando Pedro passou a estudar na mesma escola — mesmo que o irmão estivesse um ano à frente e não ficasse na mesma sala dele. No entanto, Pedro era comunicativo; fazia amizades rápido e logo encaixou-se em um determinado grupo de sua sala. Certa vez, no recreio, o irmão o chamou para apresentá-lo aos seus novos colegas. Pelo menos, Pedro não parecia sentir vergonha dele.
— Esse é o Lucas, meu irmão. Como disse, ele é filho da noiva do meu pai, mas é meu irmão mesmo assim. Moramos juntos! — ele sorriu, passando o braço ao redor do pescoço do mais novo. Pedro estava bem mais alto do que ele agora. Alguns colegas olharam curiosos para ele, e Lucas baixou a cabeça.
— Ele fala com você? — um dos meninos perguntou, ainda analisando Lucas.
— Hã... — Pedro deu uma risada sem graça. Lucas quase deixou cair a sua maçã. — Sim, sim.
— Por que ele não fala, você sabe? — insistiu.
— Não importa — Pedro estava sério agora. Sustentou um olhar duro sobre o outro garoto, deixando claro que aquela pergunta era um tanto inconveniente. Protetor, apertava Lucas sob seu braço. — Quer lanchar com a gente, Lucas?
O menino negou de imediato, desvencilhando dos braços do irmão. Pedro não insistiu. Deixou-o ir, sozinho, até o banquinho que costumava lanchar. Lucas planejava ir à biblioteca para terminar de ler uma das revistas em quadrinhos. No caminho, Eliza o cumprimentou de longe; e Lucas acenou timidamente para ela. Lembrava-se ainda do dia em que a moça ofereceu-se para ajudá-lo; e do bombom com o bilhete que ganhara. Naquela época, o menino achou que Eliza só estava sendo gentil. No entanto, agora mais maduro e depois de tudo o que passara, sabia que ela só havia feito aquilo porque tinha pena dele.
Lucas meditou sobre aquilo por alguns dias. Pensou em Pedro, uma das únicas pessoas que nunca perguntou porque ele não falava. Provavelmente, Ben o aconselhou a não tocar naquele assunto; e que Lucas falaria com ele quando se sentisse confortável. E assim aconteceu — o que antes parecia impossível para Lucas.
Certo dia, Pedro e Lucas pegaram suas bicicletas e saíram para passear pelo bairro. O dia estava fresco e agradável; viam-se poucos carros e as árvores sombreavam a rua de terra. Ainda pensativo, o menino quebrou o silêncio entre eles, questionando o mais velho:
— Pedro... — Lucas chamou-o baixinho, sentindo a garganta seca. — As pessoas me acham estranho?
Pedro olhou para ele de imediato.
— Por que acha isso? — perguntou, mantendo o ritmo da pedalada.
— Você sabe — Lucas olhava para frente, sério.
— Hum... Bem, quem não é um pouco estranho às vezes? Todo mundo tem suas esquisitices. Não acho que seja algo ruim! — Pedro refletiu. — É só...o nosso jeito. Algumas pessoas podem te achar estranho, assim como tem gente que me acha estranho. Acham o meu pai estranho, acham Luan estranho, acham Miriam estranha. Mas isso é problema das pessoas que acham isso... Pessoas estas que também tem suas esquisitices!
— Mas vocês não são tão estranhos quanto eu! — Lucas sentiu o peito pesar um pouco. Pedro soava cada vez mais como o pai. Não porque o imitava; mas porque eram cópias quase idênticas.
— Está falando sobre... Você não falar? — Pedro perguntou em tom afável. Era a primeira vez que ele mencionava sobre aquilo com Lucas. — Isso nunca importou pra mim, sabia? Eu sempre gostei de você. Desde o dia em que nos conhecemos naquela praça. Eu só queria fazer amizade e brincar.
— Mas você é você — o menino insistiu, um pouco rude demais. — Está se desviando do assunto. Seus colegas me acham estranho?
— Eu não sei. Eles nunca me falaram — Pedro admitiu. Eles pararam suas bicicletas em uma rua sem saída. Uma pequena praça abandonada estava coberta de galhos e ervas daninhas. Pedro olhou para o enorme pinheiro no centro e respirou fundo. — Se te acham estranho, o problema é deles. Eles não te conhecem.
— Meus colegas me conhecem e me acham estranho — Lucas apoiou a bicicleta no tronco de uma das árvores. Aquela praça seria um ótimo cenário para as aventuras de Pedro; mas era longe de casa demais para crianças tão jovens.
Agora, eles já não eram tão jovens assim. Ben e Miriam o permitiam ir mais longe, contando que estivessem sempre juntos e se protegendo.
— Te conhecem mesmo? — o outro menino perguntou. — Eles te falaram que você é estranho?
— Estou quase todos os dias com eles.
— Isso não quer dizer nada, Lucas.
— Você parece o seu pai falando.
— Por que está tão nervoso?
Lucas parou no meio da praça, calando-se. Olhou para os próprios pés; encarando algumas pinhas secas espalhadas pelo cimento. Amassou uma delas com a sola dos tênis violentamente. Nunca havia contado ao irmão sobre Yasmin, sobre Mateus, sobre a implicância temporária da professora de português. Não queria que ninguém da sua família soubesse daquelas coisas — mesmo que considerasse Pedro o seu melhor amigo; ele também era o seu irmão. Preferia guardar aquelas bobagens para si mesmo.
— Por que eu sou estranho — Lucas finalmente disse, sentindo-se uma criança de seis anos. Observou Pedro de soslaio colhendo algumas pinhas, analisando-as uma por uma.
— Somos todos estranhos! — ele ergueu uma pinha de repente. — Veja, até uma pinha é estranha!
— Não estou brincando, Pedro! — a voz de Lucas ecoou por toda a praça em ruínas.
— Nem eu, Sir Lucas Estranho! — ele jogou a pinha na direção do mais novo, que agarrou-a com a mão. — Vamos, precisamos colher essas pinhas mágicas antes do Natal. A rainha ficará brava se a decoração não estiver pronta em breve!
Lucas revirou os olhos, mas obedeceu ao comando do mais velho. Pegou as pinhas mais bonitas que viu, arrependendo-se de imediato de ter amassado com os pés uma delas. Pedro começou a cantar sobre pinhas e sobre como elas eram esquisitas, mas tão bonitas e tão úteis.
O menino deu-se conta que o irmão era tão estranho quanto ele.
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