9. Que estrago!
Após mais um dia seguindo a tropa inimiga, surgia um impasse. Sob seus pés, o terreno rochoso se estendia, com algumas regiões planas intercaladas por pequenas colinas íngremes. Uma charneca árida crescia entre as fendas das rochas, onde arbustos espinhosos e urzes se erguiam, criando uma paisagem áspera e hostil. Não havia vegetação alta ou espessa que pudesse oferecer esconderijo. Do outro lado da colina rochosa, não muito distante, encontravam-se as tropas kune.
— Qualquer ação agora não valeria o risco — insistiu o guldo Mol'dan, sua voz era profunda e controlada. — O melhor a fazer é observar atentamente e enviar uma cápsula ao general, informando os números e a posição exata dos kunes.
O Capitão Solan, retrucou — Isso é sensato, caro Mol'dan. Mas não podemos vencer essa guerra apenas com sensatez! Eles pararam a marcha e estabeleceram um acampamento. Não podemos permitir que descansem, nem que encontrem qualquer conforto.
— Você está louco, Capitão? O que pensa que vinte soldados e três feiticeiros podem fazer contra mil soldados e sabe-se lá quantos magos? — indagou Mol'dan, suas sobrancelhas espessas franzindo-se preocupadas.
O guldo mais velho era uma figura impressionante, com um corte de cabelo militar e uma barba bem aparada. Mechas de cabelos brancos surgiam acima de suas orelhas e sob o queixo. Apesar da baixa estatura e aparência não belicosa, compensava com agilidade e perspicácia. Mol'dan era um combatente experiente, e sua técnica de escudo volante e sua cornucópia de flechas eram lendárias entre os guldos. Ele não buscava impressionar com explosões e raios, mas sim com a letalidade silenciosa das flechas que disparava. Era conhecido por todos pela alcunha de Arco da Morte.
Solan tinha sede de sangue kune e não se daria por vencido.
— Quantos magos conseguimos contar entre eles, Senhora Estirga? — perguntou o Capitão.
— Pude identificar apenas um — respondeu Estirga, sua expressão séria.
— Isso não significa que não haja mais. Eu aposto que eles têm pelo menos quatro — disse Solan inquieto.
— Um, dois, quatro? Não importa! Podemos fazer um bom estrago. Um assalto ligeiro na madrugada. Matar alguns sentinelas, incendiar algumas barracas... Entramos rápido e saímos rápido. O que me diz, Daman? — indagou, buscando a opinião do restante do grupo.
Kurdis foi pego de surpresa pela pergunta do capitão. Depois de sua experiência com Estirga, sentia que podia conquistar o mundo, mas ainda não estava disposto a se precipitar demais.
— Penso que já é hora de enviar uma cápsula, como Mol'dan deseja, e talvez possamos fazer algum estrago sem chegar perto demais. Um meio termo?
— Fale mais sobre isso, jovem. Exatamente como? — indagou Mol'dan, sua voz grave carregada de curiosidade.
Arriscar minha pele seguindo a imprudência de Solan não está em meus planos, mas é possível aplacar um pouco sua sede pelo sangue kune. E derramar sangue kune é sempre bom.
***
O ataque começou no meio da madrugada. Escolheram o ponto mais vulnerável do acampamento, onde apenas dois sentinelas estavam de guarda. Com a destreza de um guerreiro experiente, Mol'dan disparou sua flecha, que encontrou a garganta do primeiro sentinela, silenciando-o em um instante. Enquanto isso, Estirga utilizou sua telecinese para enroscar uma longa faixa de tecido ao redor da boca e pescoço do segundo sentinela, sufocando-o sem emitir um único som.
A linha de soldados liderados por Solan já estava preparada com seus arcos tensos. Kurdis lançou uma labareda fina e precisa, incendiando as pontas de todas as flechas. Os arqueiros dispararam para o alto, e as flechas incendiárias caíram como estrelas cadentes sobre o acampamento inimigo. A operação foi repetida várias vezes, e o fogo começou a se espalhar rapidamente, criando focos de incêndio em vários pontos do acampamento kune.
Estirga e Mol'dan se juntaram a Kurdis, posicionando seus cajados ao lado do dele, emprestando sua energia para amplificar o poder das chamas. Com um golpe decisivo no chão, Kurdis liberou uma torrente de fagulhas de energia mágica, que serpentearam rente ao solo, avançando até alcançar o acampamento inimigo. O momento seguinte foi como um espetáculo mágico, clarões de luz sucederam-se em rápida sucessão, iluminando todo o local. O que antes eram pequenos focos de chamas, aparentemente controláveis, converteram-se em um imenso incêndio, uma erupção flamejante que se ergueu a mais de cinco metros de altura.
Os soldados kunes, envoltos em labaredas intensas, corriam desesperados, gritando em agonia, como tochas humanas. O Capitão Solan assistia à cena com a boca aberta e os olhos vidrados.
— Vamos, Capitão! — exclamou Kurdis, chamando a atenção de Solan para o próximo passo do plano.
Kurdis puxou Solan pelo ombro, instigando-o a se juntar ao grupo de soldados que já corria colina acima, porém, Mol'dan permanecia na dianteira, mantendo sua postura. Seu arco disparava sucessivas flechas, que pareciam se materializar toda vez que ele esticava a corda. Os kunes envoltos em chamas, que se aproximavam daquela direção, encontravam uma misericórdia rápida e certeira nas flechas de Mol'dan, que atingiam seus peitos ou cabeças, abreviando seus sofrimentos e libertando-os das chamas danosas.
Solan recobrou o raciocínio e gritou.
— Vamos, Mol'dan. Retirada!
— Eu... — flecha! — já... — flecha! — vou! — flecha!
Mol'dan parecia estar em um estado de transe, respondendo com calma e precisão, embora cada vez mais recuasse, dando pequenos passos atrás a cada novo disparo. Mas a situação mudou drasticamente quando uma bola de chamas, com o tamanho de uma pessoa, saltou do meio da parede de fogo e seguiu uma parábola, avançando por vinte metros além das fronteiras do acampamento.
A bola de chamas aterrissou suavemente a uns quinze metros de Mol'dan, e o fogo se dissipou revelando a silhueta escura de uma pessoa, certamente um guldo kune. O homem gritou com um sotaque carregado:
— Desglachados! Vou esmigalar toldos vocheis!
Mol'dan rapidamente direcionou sua flecha contra a garganta do feiticeiro kune, mas algo estranho aconteceu. A ponta da flecha produziu uma faísca no ar e, inexplicavelmente, desviou-se de seu alvo, errando o disparo.
O bruxo kune bateu o pé no chão, provocando um tremor intenso no terreno rochoso, que desequilibrou Mol'dan, Kurdis e Estirga. A terra emitiu um gemido cheio de estalos, e dois pilares de rocha foram projetados para fora do solo como aríetes, prontos para esmagar Mol'dan.
Devido ao tremor, Mol'dan não conseguiu executar bem a acrobacia para escapar do ataque. As rochas se chocaram com força, prendendo e esmagando a perna esquerda do guldo. Seu grito de dor se fundiu ao coro de agonia de dezenas de soldados kunes afetados pelo incêndio que ainda assolava o acampamento.
— Mol'dan! — Estirga correu em sua direção, preocupada, para prestar auxílio.
Kurdis, por sua vez, fez seu cajado flutuar e girar acima de sua cabeça, fechando os olhos em concentração.
Que situação! Não tenho alternativa! Vou precisar ativar o gancho!
O cajado continuou a girar, cada vez mais rápido, esticando o cordão invisível que estava ligado ao embrulho deixado no acampamento deles, atrás da colina rochosa.
— Leceba a fúlia de Gong Tian!
O feiticeiro kune lançou meia dúzia de pedregulhos em direção a Estirga. A feiticeira bateu o cajado no chão, ativando sua telecinese para defletir os ataques. No entanto, o chão logo cedeu sob o impacto, sugando o cajado com força. Estirga segurou-o com firmeza, mas ainda assim ele desceu queimando suas mãos pelo atrito. Ela gemeu com a dor que veio um instante depois.
— Voche caiu na minia almadila, ri ri ri! — zombou Gong Tian. Ao mesmo tempo que caçoava, bateu os pés lançando um pedregulho grande que zuniu e atingiu-a no peito, fazendo soar um forte baque. A armadura de Estirga absorveu parte do impacto, mas ainda assim ela foi atirada para trás e rolou até parar numa pose torta e sem os sentidos.
Kurdis segurou o impulso de gritar o nome de Estirga e chamar atenção para si.
Estirga! Maldito seja! Quero ouvir suas risadas quando eu estiver com a foice!
— Morra! — A cena era caótica e desesperadora. O Capitão Solan, impetuoso e sedento por vingança, avançou correndo com sua espada, disposto a golpear o bruxo Gong Tian.
Solan? Não seu tolo!
Porém, antes que pudesse atacar, a cabeça do capitão foi brutalmente esmagada por um tiro certeiro de pedregulho lançado por Gong Tian. A morte de Solan, ainda que trágica, ao menos serviu como uma distração momentânea para o grupo.
Gong Tian gargalhou de modo irritante.
Kurdis finalmente concluiu o feitiço de gancho, e a foice negra chegou a suas mãos. Enquanto isso, Mol'dan gritava de dor, pendurado entre as rochas pela perna esmagada, fora do campo de visão de Gong Tian.
O bruxo kune saltou para cima de uma rocha para melhor visualizar Mol'dan, enquanto diversos soldados kunes se aproximavam do acampamento para auxiliá-lo. A situação estava ficando cada vez mais complicada.
Kurdis avançou com agilidade e leveza, seus pés tocando o chão de forma silenciosa, como as patas de um shuna.
Maldito! O canalizador dele está nos tamancos de madeira!
— Vou esmigalar voche como um insheto! Ri, ri, ri... — Gong Tian ergueu o pé para disparar o feitiço, mas antes de descer, Kurdis o alcançou com a lâmina da foice negra.
— Ai, ai, ai!
O bruxo Gong Tian teve seu pé direito decepado e caiu para trás, do alto do rochedo que esmagava a perna de Mol'dan. Ele tentou se erguer e proferiu xingamentos em sua própria língua, mas antes que pudesse entender de onde veio o ataque, Kurdis o silenciou rapidamente, girando a foice e cortando sua cabeça de forma implacável.
Os soldados kunes se aproximavam, e a situação estava se tornando ainda mais tensa. Kurdis olhou para Estirga, caída próxima a ele, e viu Mol'dan lutando para se apoiar com os braços no chão, pendurado pela perna esmagada no ponto de colisão entre as rochas.
— Daman... corte... corte a minha... perna — sussurrou Mol'dan, seus olhos revelando a dor e a determinação.
Kurdis baixou a foice cortando a perna do bruxo bem abaixo do joelho. O guldo quase não tinha forças para gritar, mas depois de um breve grito sofrido, conseguiu murmurar.
— Cauterize...
Kurdis acionou o gancho, trazendo de volta o cajado que havia deixado cerca de vinte metros atrás para manusear a foice com as duas mãos. O cajado voou rapidamente até sua mão direita, e ele o tocou no chão, produzindo um jato de chamas intensas em um tom azulado no coto da perna de Mol'dan.
O guldo, tomado pela agonia da dor, não resistiu e perdeu os sentidos.
Enquanto isso, os soldados kunes cercaram Kurdis, mas ele não se deixou abater. Deixando o cajado cair no chão, empunhou a foice negra com ambas as mãos, preparando-se para enfrentá-los.
Os soldados de Kedpir, seguindo o plano previamente traçado, já estavam quase no alto da colina, distantes demais para oferecer auxílio imediato.
Kurdis avançou contra o primeiro soldado, aproveitando-se do alcance maior da longa foice. O soldado tentou se defender, mas foi em vão. A lâmina atravessou seu escudo e cortou-o ao meio do tronco. O soldado gemeu de dor e caiu no chão, mortalmente ferido.
Outro soldado, então, atacou Kurdis por sua esquerda com uma espada, mas o guldo sentiu apenas um beliscão. Era um ferimento feio, mas ao invés de gritar e dobrar o corpo, Kurdis girou a foice, cortando-lhe a cabeça com um movimento preciso e rápido.
O ferimento de Kurdis parou de sangrar e começou a cicatrizar rapidamente, alimentado pela energia fluindo da foice negra para o seu corpo. Ele sentiu uma sensação revitalizante, enquanto a foice o fortalecia com cada inimigo que tombava perante ela.
O soldado seguinte atravessou a ponta de sua lança no abdome do guldo e chegou perto o bastante para ter sua vida ceifada pela foice negra. Ignorando a lança espetada, Kurdis atacou e matou mais dois soldados, ganhando algum espaço para arrancar a lança da barriga. A dor era pequena e logo foi substituída por uma sensação de formigamento.
Novos soldados se aproximavam, mas Kurdis não perdeu a compostura. Puxou de volta o cajado, sentindo que sua força mágica estava plena novamente.
Além de me curar, a foice está recarregando minhas forças! Isso é incrível!
Kurdis arrastou o cajado no chão, desenhando um semicírculo à frente, e instantaneamente ergueu-se uma parede de fogo entre ele, Estirga e Mol'dan, e os soldados que ainda avançavam.
Levitação nunca foi o meu forte, mas vamos lá!
Kurdis tocou Mol'dan com a ponta de seu cajado fazendo flutuar um metro acima do solo.
Uau! Olha pra isso? Eu esperava no máximo deixá-lo leve o suficiente para arrastá-lo!
Um novo ataque se aproximava, uma lança passou perigosamente perto de Kurdis e cravou-se no chão logo atrás. A proximidade do perigo o fez se apressar. Ele avançou até Estirga e a tocou com o cajado, fazendo-a flutuar na mesma altura que Mol'dan.
A corrida subindo a colina seria exaustiva, mas Kurdis sentia um poder inesperado o impulsionando. Ele conduziu Estirga e Mol'dan, que flutuavam ao seu lado, usando os fios prateados do gancho que havia lançado com maestria. O gancho era um feitiço que dominava.
O que há com meu fôlego? Como posso estar suportando correr tanto assim? Sim, é foice! Só pode ser isso!
Cada vez mais convencido de sua conexão com a arma mágica, ele acelerou o passo, deixando os kunes perseguidores para trás.
Flechas choviam ao redor deles, mas a adrenalina da batalha ofuscava a dor e as feridas. Uma flecha encontrou seu alvo no ombro de Kurdis, mas ele mal a sentiu, tão determinado estava em alcançar a segurança no alto da colina.
Finalmente, chegaram ao topo, onde encontraram os soldados de Solan formando uma linha de defesa. Começaram a disparar flechas contra os kunes. Quando vários foram abatidos, recuaram gritando maldições contra o inimigo.
— Pela graça de São Guides, guldo Daman! O senhor foi extraordinário! — elogiou Rolok, ainda incrédulo com a coragem do jovem feiticeiro.
— Dê as graças a esta Santa Foice, Rolok! — respondeu Kurdis, sorrindo ao observar o acampamento inimigo queimando ao longe.
— Dê as graças a esta Santa Foice, Rolok!
— E o capitão? — indagou outro.
— Infelizmente o bruxo kune o matou. Uma pena.
Houve um momento de silêncio entre eles, no qual os gritos de dor e confusão podiam ser ouvidos lá de baixo. Do alto, Kurdis pode ver que o fogo havia se alastrado, tomando todo o acampamento do inimigo.
Por Lorran... Que estrago!
Kurdis sentiu um comichão vindo da mão que segurava a foice e sorriu sentindo imensa satisfação ao observar o acampamento queimando e os gritos que ainda vinham de lá. Mas então, teve uma ideia.
— Rolok, vou precisar de um favor seu — disse Kurdis, olhando para o soldado mais experiente.
— É claro, senhor Daman — respondeu Rolok, pronto para ajudar. Ele tinha um físico robusto, mesmo não sendo mais tão jovem. Em seu rosto, além de pequenas cicatrizes, viam-se algumas marcas de idade. Tinha uma faixa de cabelos brancos espetados nas laterais da cabeça e no topo a calva pronunciada.
— Vamos logo buscar os cavalos e nos afastar daqui. Você é o soldado mais graduado, certo?
— Sou triário.
— Vamos, me ajude aqui com os feridos. Vou lhe contar os detalhes no caminho.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top