61. Os degoladores
Kurdis retornou à Floresta de Hasham para se encontrar com Hymur. O sol, coberto pela neblina matinal, ainda não lançava seus raios sobre a floresta. Era possível olhar para a esfera leitosa atrás da neblina. Aparentava ser uma terceira lua. A clareira tinha plantas pequenas cobertas pelo orvalho esbranquiçado. Mas quando Kurdis chegou a poucos passos do grande dragão negro, notou que todo orvalho ao seu redor havia evaporado, pois emanava dele um calorzinho agradável.
— Os jovens scotenks estão ficando impacientes, Daman! — bradou o velho dragão de escamas negras.
— Peço que os ensine o valor da paciência, grande Hymur.
Hymur bufou em resposta. O ar se encheu de fumaça cinzenta, Kurdis cobriu o rosto com um lenço e tossiu.
— Tenho boas notícias...
— Estou ouvindo.
— Consegui identificar a origem do feitiço que desnorteia o voo dos dragões nos arredores de Jaffe. E acredito que conseguirei suspendê-lo.
— Por que não o fez ainda? — o dragão, inquieto, cavucou o solo coma as unhas.
— Porque quando o fizer, não sei por quanto tempo conseguirei manter a suspensão. Precisaremos combinar nossas ações, para podermos promover o cranten sobre Jaffe.
— Compreendo. Isso será quando?
— Os feiticeiros que mantém a proteção se revezam na Torre de Yrzin Tar. É a mais alta torre da cidade que os populares chamam de Torre Amarela. Tenho observado o movimento deles, suas trocas de turno, as vulnerabilidades. Eliminei dois deles semana passada. Isso os forçou a alterar os turnos.
— Quando vamos atacar?
Kurdis deu um passo atrás. — É preciso ter cautela. Estou agindo sob disfarce, apenas durante a noite. Se eu for rápido demais, poderão me descobrir. Por isso, reforço: peça paciência aos scotenks!
— Muito bem, Daman. Conseguirei mais um tempo, uma lua, talvez...
Kurdis curvou-se diante de Hymur. — Ótimo! É todo tempo de que preciso!
***
As luas brilhavam no céu iluminando a noite da grande cidade de Jaffe. Estavam prestes a se cruzar no céu, a maior com seu brilho branco e intenso halo, acompanhada da outra, rosada. Kurdis observou as luas, lembrando-se das estranhas noções dos deravos a respeito delas. A rosada, para eles, era uma dançarina apaixonada em busca de um amor inatingível. A prateada, era o faroleiro, preso a sua eterna responsabilidade de orientar os navegantes, sem tempo para se entregar a paixões, sempre frio, pontual, entregando seus serviços. Kurdis observava a lenta aproximação entre os corpos celestes, lembrando-se de Djista. Lembranças amargas. Era a isso que se resumia sua vida, atualmente.
Outro dia, conseguiu a confirmação de que Murdis Hur teria morrido no cranten de Tedris. E após ter usado a foice para vingar-se de Jorem, sua existência parecia um pouco sem sentido.
Glauvorax estava certo. Sou apenas um peão nas mãos dos arcanos sombrios. Um instrumento. E já não posso evitar dar o próximo passo. Em breve, arrasarei essa cidade, e por último, cairá a escola de Valta. Será o fim dos Maihari. Ser o instrumento da ascensão dos dragões e queda dos feiticeiros, é minha sina.
Além de perseguir e matar os feiticeiros que sustentavam a proteção na torre, Kurdis vinha tentando descobrir em que mãos caíram a Vortumbra.
Certamente o trabalho desse degolador é coisa da espada sombria. Será sorte, ou o destino conspirando a meu favor? Certamente a ação dele está desviando um pouco da atenção que poderia estar toda sobre mim...
Recordava-se da melhor oportunidade que teve, há alguns dias. Seguia um dos magos que seria a sua segunda vítima quando escutou música e muitas vozes animadas saindo de uma casa noturna. Havia algumas pessoas se movimentando na rua paralela, pode ouvir vozes semi embriagadas, então, sentira uma onda de gelo emanando do local.
Será possível? Só pode ser a lâmina sanguinária! Será que o outro degolador de Jaffe também atuará nesta noite? Quem estará portando a lâmina de Gtu? Decerto, ela foi abatida na batalha e algum soldado a apanhou. O coitado não faz ideia da maldição que é portar essas lâminas...
Kurdis parara por um instante, curioso, tentando ouvir o que as vozes diziam, mas a música e conversação vindos da taverna impedia. A sensação gelada se afastou e ele redobrou o passo para alcançar o mago que vinha perseguindo e estava prestes a degolar.
Outra noite eu mato essa curiosidade, pois não posso perder a chance de abater mais um mago.
***
Kurdis estava sentado em um telhado, recostado na chaminé da qual emanava calor residual e um fio de fumaça. A casa de dois andares ficava na esquina da praça, cujo jardim enfeitava a área frontal da torre. Esperava, hora após hora, deixando os pensamentos flutuar. Kurdis olhou uma movimentação vinda do fim da praça. Um grupo de pessoas se aproximava lentamente. Voltou a pensar na outra lâmina escura enquanto aguardava um pouco mais. Mais cedo, antes e subir ali, escutou uma conversa na estalagem enquanto jantava.
— Cuidado, Clodan, senão o degolador noturno vai te pegar!
— Em que cidade você vive, seu maluco? Já prenderam o degolador há dias! E, além disso, o desgraçado fez sua última vítima em pena luz do dia.
— Sério? Quem foi a pobre alma?
— Um pai de família, rapaz trabalhador... O assassino foi preso por guardas que estavam perto do local. Dizem que o homem não apresentou resistência, apenas se entregou, chorando...
— Que história absurda, Clodan!
— O pior de tudo foi ouvir o Roger defender o desgraçado.
— Como assim, Clodan. O Roger perdeu o juízo?
— É que ele conhece um dos carcereiros. Segundo ele, o homem não era um assassino, apenas teve o azar de colocar as mãos numa espada demoníaca. Foi o demônio que vivia na espada negra que andou matando as pessoas.
— Eles vão soltar o cara?
— Pelo contrário, amanhã será sua execução. Como não sabia disso, Met?
— Não te falei? Acabei de chegar de Valta.
— Ah, entendi!
Deixou as memórias de lado, para observar atentamente a mulher subindo a ladeira escoltada por quatro guardas da cidade. Se dirigiram para a torre.
Só pode ser ela!
A luz dourada escapou dos portões da torre amarela. O mago que finalizava seu turno saiu. Via-se em sua silhueta o traje pesado e largo, a cabeça protegida pelo capuz. Os quatro soldados se posicionaram, aguardando, em alerta, a breve conversa que ocorreu entre os dois feiticeiros. O mago encapuzado fez uma vênia para a mulher e ela finalmente entrou pelo portão.
Então ela é a superior, Reilena... Isso é bom...
Kurdis usava sapatilhas de tecido e seus pés mal produziram ruído quando deslisou do telhado para volitar até o solo. Ele seguiu os guardas, de longe, enquanto subiam o morro. Finalmente, pode observar, de um canto escuro da rua, os guardas se despedindo do feiticeiro que entrou pelo portão da mansão de três pavimentos. Pouco tempo depois, viu uma luz surgir em uma das janelas do segundo piso. Um par de guardas desceu a ladeira de volta, deixando o outro de guarda no portão da mansão.
Aumentaram a segurança... Mas não importa. Hoje a Akuvacula vai beber sangue de mago.
Kurdis escalou os muros de um sobrado como um gato e saltou do telhado flutuando suavemente sobre a rua. Observou os guardas conversando, abaixo de si. Pela janela, viu o mago colocar o candelabro sobre uma mesinha ao lado de sua cama. Estava despido de sua capa, caminhava arrastando os pés. Estava exausto após seu turno mantendo o feitiço que atrapalhava o voo dos dragões.
O mago sentou-se na cama e se inclinou para soprar a chama da vela. O quarto logo ficou coberto de breu. Kurdis flutuou até a janela e observou. Com um pouco da luminosidade do luar, pode ver os contornos do mago deitado sobre a cama e logo, escutou seus roncos.
Morrer dormindo e nem saber o que aconteceu. Há uma morte melhor do que esta?
Usando sua magia, fez o ferrolho interno que fechava a janela deslisar e em seguida, a janela se abriu, suavemente para fora. O casarão tinha pé direito muito alto, e as portas e janelas acompanhavam essa estatura, de modo que Kurdis entrou por ela como se fosse uma porta.
Kurdis ergueu a foice observando a lâmina negra absorvendo toda luminosidade do ambiente.
O ângulo da lâmina em relação à haste é perfeito. Uma lâmina feita para decepamentos limpos! É mesmo uma obra de arte! Menos um guardião para Jaffe!
Kurdis baixou a lâmina que chiou ao tocar a carne do feiticeiro. A onda gelada encheu o corpo de Kurdis não apenas da energia vital do mago, mas também da magia que ele havia acumulado em seus ossos, ao longo dos anos.
Eu não esperava que fosse assim, tão poderoso! Será que este era Bashir? O vice-líder do círculo de Jaffe? Sendo assim, a mulher que está na torre agora só pode ser Reilena! Ah, sim! Chegou a hora. Estou energizado e assim que Reilena terminar seu turno, amanhã pela manhã, farei o ataque direto! Sim, vou avisar Hymur! Amanhã, ao meio-dia!. Será a hora de Jaffe sucumbir ao cranten!
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