57. Humildade

Kurdis saiu do Beco das Latrinas abalado, cambaleando, como se estivesse embriagado, alheio a gritaria dos prisioneiros começou nas celas vizinhas de seu falecido pai.

Em pouco tempo, o guldo responsável pela segurança do castelo veio ao local e disparou um alarme que tirou de suas casas, todos os feiticeiros da ordem residentes de Tédris, e mesmo os que visitavam a capital.

A odarina!

Kurdis sentiu um calafrio ao perceber toda rede com tubos de odarina que cruzava os céus de Tédris se iluminar. Além de sustentar a Atalaia Vermelha, aquela matéria invisível servia de canal para comunicações rápidas entre os bruxos. Não havia um local tão conectado em todo o mundo como Tédris.

Eles sabem somar um mais um! E o dois significa que sabem que eu, Kurdis Daman, o rato renegado, está aqui na capital. Afinal, que outro bruxo usaria magia para matar Jan Mussak, um prisioneiro moribundo e esquecido nos calabouços de Or'Ked?

Kurdis apressou o passo, descendo a Ladeira da Discórdia, que àquela hora, estava vazia. Retirou a foice da capa se apertou mais ainda o passo.

Posso não ter o tempo para sacar a foice, caso cruze com algum Maihari.

Algumas ruas e até bairros da cidade, não faziam parte da rede de iluminação pública. Kurdis seguia naquela direção quando viu surgir um grupo armado em uma das esquinas.

Melhor saírem do meu caminho!

Reuniu energia mágica que fez seus olhos brilharem no escuro. Isso fez aqueles guardas ficarem hesitantes. Kurdis continuou avançado, pois recuar, ladeira acima, não era uma opção.

— O renegado! — um deles gritou e caiu fulminado por um dos raios verdes de Kurdis.

Imbecis!

Kurdis fulminou o segundo, mas quando seu raio ia atingir o terceiro entre eles, foi bloqueado por um escudo que se partiu em pedaços. O jovem cavaleiro, parecia ser o líder daquele grupo e caiu para trás rolando com o braço fumegando.

— Renkiou! — um grandalhão gritou.

Renkiou? Já não ouvi esse nome?

Kurdis se distraiu por um instante, lembrando-se dos anos que viveu em Dera.

Sim, Renkiou, era o nome do jovem príncipe, filho do rei Drenkinou.

O grandalhão atirou uma machadinha na direção de Kurdis. A arma zuniu veloz demais para Kurdis se defender, distraído como estava.

A machadinha cravou-se com força no abdome de Kurdis, fazendo cair sentado. Kurdis gemeu e ficou atordoado. Um dos soldados avançou em sua direção, junto ao grandalhão. O soldado baixou a espada mirando na cabeça de Kurdis, mas o golpe foi desviado quando o bruxo atingiu o braço do atacante com a lâmina negra da foice.

A energia vital do soldado fluiu para Kurdis, fechando em parte o ferimento fundo feito pela machadinha.

— Yai'lá'rai!

O grandalhão tinha uma picareta de guerra pronta para desferir um golpe mortal contra Kurdis. A foice continuava fincada no braço do outro soldado sugando sua força vital, então o bruxo bateu o cajado no chão do jeito que pode para provocar uma onda de choque. Não era o ataque mais preciso, mas serviu bem como defesa, lançando o grandalhão estrangeiro para o alto que depois caiu no chão rolando ladeira abaixo.

O soldado finalmente caiu no chão, seco como uma uva-passa e Kurdis ficou de pé, revigorado, pronto para avançar.

Um raio zuniu a partir de um telhado, na lateral da rua. Kurdis conseguiu desviá-lo, por puro reflexo! O raio atingiu a porta de uma loja, provocando um estrondo e partindo-a em mil pedaços.

— Não vai escapar dessa vez, Le'Daman! — uma feiticeira, velha conhecida de Kurdis, saltou volitando de cima do telhado para aterrissar na rua. No trajeto, lançou nada menos que cinco raios em sequência. Kuris brandiu seu cajado convocando uma pequena bolha de deflexão que desviou com sucesso todos eles. Todo espaço ao redor foi atingido pelos raios poderosos numa sequência rápida de luzes e explosões.

Kurdis lançou uma labareda de seu fogo verde e Eriana escapou dando um salto veloz, impulsionado por magia.

— Sai do meu caminho, Eriana! — Kurdis manteve o jato de chamas verdes ativo e perseguiu a feiticeira enquanto ela pulava se esquivando. Uma casa de dois pavimentos na lateral da rua foi atingida e começou a queimar, deixando a rua iluminada pela luz esverdeadas das chamas de Fre'garzam.

Concentrado em pegar Eriana, Kurdis não viu quando o grandalhão se levantou, pegou uma das pedras soltas do calçamento e lançou com força em sua direção. A pedrada pegou de raspão em sua cabeça, mas ainda assim, o deixou zonzo. Se tivesse acertado precisamente, seu crânio estaria teria sido esmagado.

— Boa, Motoku! — Eriana se aproveitou daquele momento e lançou uma labareda de chamas contra Kurdis. As chamas atingiram seu flanco esquerdo, colocando fogo nas roupas e queimando diretamente sua orelha, cabelos e lateral da face.

— Arrgh!

Kurdis bateu o cajado no chão, fazendo subir uma rajada potente de vento que apagou as chamas. Eriana continuou seu ataque e Kurdis mal conseguiu se defender. Sua face ardia, os olhos lacrimejavam, não conseguia enxergar direito.

Seu eu não vejo direito, vamos igualar as coisas!

Kurdis bateu o cajado no chão convocando uma espessa nuvem de fumaça densa e escura. Colocou ali todos seus esforços e a nuvem cresceu e cresceu, tomando toda a dimensão de um quarteirão.

— Você não vai escapar, Daman!

— Pode ser que sim, pode ser que não! — Kurdis respondeu preparando-se para atacar Eriana.

— Ali, Urda, Gikan! O renegado está ali!

Mais feiticeiros? Eu mal estou dando conta de uma, não terei a menor chance de enfrentar um grupo.

Kurdis deixou Eriana de lado e moveu-se lentamente, ladeira abaixo. A imensa nuvem de fumaça era pesada e fria, escorria morro abaixo. Kurdis aproveitou-se disso para seguir dentro dela, cada vez mais perto da saída. Seus olhos trabalhavam bem naquele tipo de escuridão. Se pudesse, agradeceria aos Wux'shien por aumentarem tanto seus conhecimentos, especialmente nas artes sombrias, um tanto desconhecidas pelos feiticeiros de sua antiga ordem.

Seguiu para a Floresta de Hasham, com uma boa quantidade de guldos em seu encalço, não fosse pela presença de Arjune'zur, seria encontrado e morto. Mas antes de saírem dali, o dragão queria matar sua curiosidade.

— E então, Daman? Conseguiu salvar seu pai?

Kurdis olhou para as escamas escuras do dragão que reluziam suavemente sob a luz do luar.

— Condenei seu corpo, mas talvez, tenha salvado sua alma... Quanto a isso, somente vou saber quando eu chegar no pós-vida.

— Há! — Arjune'zur bufou, deixando escapar uma pequena nuvem de fumaça. — Suas fantasias a esse respeito são divertidas.

— Divertidas? — Kurdis ergueu a sobrancelha que lhe restava no lado direito da face, a outra, fora consumida pelas chamas de Eriana.

O dragão dobrou o pescoço e colocou a face perto de Kurdis. Um de seus grandes olhos refletindo o luar e examinando os ferimentos no rosto do homem.

— Ah, sim, essa noção de que podem ir para algum tipo de paraíso, ou inferno, por exemplo.

Kurdis fez um gesto, mostrando a bolsa e a correia para Arjune'zur. O dragão entendeu e moveu o pescoço para baixo, deixando-o ao alcance do mago.

— É? E como é a pós-vida dos dragões?

Kurdis voltou a amarrar a bolsa, foice e cajado na parte baixa do pescoço de Arjune'zur.

— Não vou discuti-la com você, humano. Mas saiba, todas essas histórias em que vocês acreditam foram criadas por nossos ancestrais para fazê-los se comportar de um modo agradável a nós. Não passam de um sistema de controle. Mas acho divertido ver como tudo isso ainda persiste no sistema de crenças do seu povo.

— Uma verdade sobre os dragões não mudou desde os tempos antigos.

— É? — Arjune'zur aproximou a face imensa do corpo de Kurdis, encarando-o, olhos nos olhos.

— Sim, vocês são tão grandes quanto são convencidos de sua superioridade. E mesmo após terem sido derrotados pelos pequenos humanos, vocês não aprenderam nenhuma lição de humildade.

Arjune'zur bufou em cima de Kurdis, cobrindo-o de fumaça quente. Kurdis tossiu, sentiu a pele queimada arder, mas não reclamou.

— Suba de uma vez, e não me venha falar de humildade! Nenhum dragão nos tempos antigos aceitaria carregar um humano por aí... Considere isto humildade suficiente! E esteja grato!

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