56. Retorno a Tédris
Kurdis usava um casaco de pelo de morsolo costurado por Mutu, mas ainda assim, tremia de frio. Os ventos no alto eram gélidos e, além disso, havia o enjoo. Talvez outras pessoas pudessem apreciar a vista maravilhosa do voo nas costas de um dragão, mas não Kurdis. Para ele, aquilo era um pesadelo.
— Ainda falta muito? Será que podemos descer um pouco?
— Aguente um pouco mais, eu preciso aproveitar a corrente de ar e a vantagem da altitude. Se descermos, poderá ser difícil alçar voo novamente carregando seu peso.
Quando deixaram Djadum'kor há algumas horas, Kurdis achou que ia morrer espatifado no fundo do precipício. Arjune'zur saltara da pedra alta para o fundo, ganhando velocidade na queda até abrir suas asas e planar. Aquela sensação de queda livre, mesmo por alguns instantes, deixou Kurdis imediatamente enjoado e trêmulo.
Viajou a maior parte do tempo com os olhos fechados, ou apenas olhando para as escamas no dorso do dragão. Toda vez que olhava para baixo ou para os lados, sentia vertigem.
— Por favor, eu não aguento mais. Não consigo me segurar...
— Muito bem...
Para total surpresa de Kurdis, o dragão executou um breve mergulho e girou bruscamente. Kurdis caiu.
— Eu vou morrer! Aaaah!
O dragão manobrou rapidamente e apanhou Kurdis no meio da queda. Kurdis sentiu as garras de Arjune'zur espetando seu tronco e quadril, quase lhe tirando sangue. Kurdis vomitou uma pequena golfada de pura bile. Já não tinha mais o que expulsar de seu estômago àquela altura.
— Se você não pode se segurar, eu farei isto por você.
— Po... podia ter... me avisado.
— E onde está a diversão nisto?
Agora vejo... Esse maldito tem algum senso de humor, afinal.
Ele estava tenso, os músculos tão rígidos que começavam a doer, mas depois de algum tempo, algo estranho aconteceu. Apesar do frio, enjoo e forte pressão que as garras do dragão faziam em seu corpo, Kurdis relaxou. Só então conseguiu observar a paisagem abaixo. Havia campos verdejantes cortados por rios sinuosos. Rebanhos e plantações. Era uma área civilizada. Avistou uma grande área de mata e além, perto do horizonte, uma grande cidade que crescia em torno de um monte raso.
Só pode ser Tédris! E aquela deve ser a Floresta de Hasham.
A floresta era uma área preservada a menos de um dia de cavalgada da capital. Foi o decreto do Rei Hasham que tornou ilegal derrubar árvores naquela região, há mais de duzentos anos. Hasham gostava de caçar, acompanhava seu avô, desde criança, mas viu, ao longo de sua própria vida, as áreas verdes serem extintas e com elas, os animais que apreciava caçar.
Como se adivinhasse seus pensamentos, Arjune'zur disse: — vou deixá-lo naquela mata. Não será bom para mim, nem para você, se aproximar daquela colmeia humana.
O dragão iniciou sua descida, chegando mais perto da floresta e se aproximando do curso de um rio.
Eu nunca tinha pensado nisso... Não fazia ideia, mas faz sentido! Nunca soube por que esse rio se chamava Gaxur, mas agora que aprendi o idioma dos noruks, compreendo. Gaxur é serpente. As terras em que ficam Kedpir já foram domínio dos noruks... Incrível como o nome de tantos lugares agora passou a fazer sentido. Depois de expulsos de suas terras, restaram apenas a memória do nome de rios, vales e montanhas...
O Rio Gaxur cortava a floresta, havia uma pequena lagoa num local pedregoso de onde escorria uma baixa cachoeira, formando um vau. Foi ali que Arjune'zur decidiu aterrissar. Na verdade, ha poucos metros da água ele soltou Kurdis que se chocou contra a superfície espalhando muita água.
Era um local raso, cheio de seixos lodosos que escorregavam um pouco sob as botas desgastadas de Kurdis.
— Maldição! Que gelo!
O dragão manobrou e se empoleirou nas pedras ao lado da cascatinha.
— Está entregue. Ficarei aqui, por uns dias, caso precise de uma carona de volta até as montanhas.
— Minhas coisas, se não se importa.
— Ah, sim. — o dragão inclinou o pescoço deixando-o baixo, onde Kurdis podia alcançá-lo. Dali, o feiticeiro tirou a bolsa onde estavam amarrados seu cajado e a foice.
***
Kurdis aparentava ser um mendigo, no máximo, um andarilho. Pessoas comuns o ignoravam, prontamente, desviando-se de seu caminho. Porém, cruzar o caminho com algum feiticeiro ou feiticeira da ordem, poderia ser desastroso.
Olhos bem abertos! Atenção plena!
Apesar de ter se molhado nas águas do Gaxur, seu cheiro não estava melhor do que costumava ser entre os noruks. Seus cabelos brancos ajudavam a fazer as pessoas acreditarem que era apenas um velho andarilho. Desde que entrou nas ruas de Tédris, passou a andar curvado e apoiando-se no cajado rústico que fazia papel de bengala, mesmo que pudesse andar perfeitamente ereto.
Lembrando-se de algumas peripécias de sua infância, quando fugia de casa para brincar com as crianças das ruas, traçou seu caminho pelos becos mais estreitos e sujos, evitando as avenidas e ruas limpas por os Maihari poderiam circular.
Kurdis se aproximou do Castelo Or'Ked que se erguia majestoso no cume de Tédris. Seu pai estaria preso em alguma parte dos calabouços. Kurdis observou o portão bem guardado por meia dúzia de soldados e as dúvidas começaram a povoar sua mente. A memória da voz de Carc'limar voltou a assombrar seus pensamentos.
"Acha mesmo que a essa altura, seu pai ainda pode ser salvo? Preso há quase vinte anos? O melhor que pode acontecer a ele a essa altura é a morte, Daman."
Será que ele está certo? Devo matar meu próprio pai? Devo abreviar seu sofrimento?
Kurdis se recordou dos momentos em que esteve presente na mente do pai. Reviu a cena humilhante em que Murdis gargalhava e urinava sobre ele, preso, fraco, indefeso.
Em sua imaginação, Kurdis havia pensado em vingar-se, queimar a casa de Murdis Hûr, humilhar o Príncipe Jorem, fazê-lo implorar por sua vida, mas agora, ali, diante dos portões da fortaleza, não sabia bem o que fazer. Apenas sentia uma raiva crescente. Imaginou aqueles guardas agonizando consumidos pelo fogo verde. Sentiu as mãos formigando, antecipando a conjuração da magia, estava bem perto de concretizar aquela visão.
Tenha calma! Ordene os pensamentos! Não posso ceder a esses impulsos! Eu não estou pensando direito. Se eu atacar agora, atrairei a ordem. Preciso encontrar outro jeito de entrar...
Kurdis desceu a ladeira e pegou a Rua Ferros que seguia paralela às muralhas do castelo e ia direto até a mansão dos Hûr. Sentou-se ao lado de uma nogueira imensa que levantava as pedras do calçamento com suas raízes.
Que fome!
Tirou um pedaço de carne duro de carne seca de sua mochila e ficou ali, mordiscando. Ao contrário de sua expectativa, não viu o maldito Murdis entrar ou sair da casa. A noite caia e continuava sem saber exatamente o que fazer.
Duas pessoas subiam a rua e Kurdis reconheceu imediatamente Urda, a bruxa careca, de pele negra e manchada.
Irmã Urda! Estou frito. Se eu levantar e correr, ela vai me perseguir...
Enquanto Kurdis pensava no que fazer, a dupla se aproximou, subindo a Ladeira das Velhas. E então crispou os punhos ao reconhecer quem vinha a seu lado. O homem era alto e pançudo, com a barba amarrada num par de tranças grisalhas. Urda era quase tão alta quanto Murdis, e não parecia ter envelhecido um dia sequer, desde a última vez que Kurdis esteve com ela.
O desgraçado falava alto, mas Kurdis não conseguia prestar atenção em suas palavras. Suas orelhas ficaram quentes e vermelhas. Ambos olharam rapidamente para Kurdis, sem dar atenção, afinal, parecia ser apenas um mendigo recostado nas raízes imensas da nogueira, na esquina acima. Então, Murdis empurrou o portão de ferro e deu passagem para a bruxa.
Não posso atacá-lo com ela por perto! Maldição!
Algo como um sussurro subiu pela espinha de Kurdis, não era como quando a intrometida voz de Carc'limar soava em sua mente. Era mais como uma intuição gélida. "Hoje não é o dia de Murdis Hûr queimar. O hálito da destruição cairá sobre Tédris trazendo sua vingança, mas apenas se você não for capturado."
Aquela ira explosiva se dissipou da mente de Kurdis. Suas orelhas que queimavam, agora ficaram geladas.
O que foi isso?
Kurdis sentiu algo pinicando sua pele, era uma grande mosca-varejeira. Ele a espantou com um gesto e ela ficou zunindo diante dele.
"Venha comigo..." veio um sussurro sutil na forma de um zumbido.
Sob a penumbra, não podia enxergar o inseto em detalhes, mas por um instante, enquanto pairava no ar, Kurdis podia jurar que viu narinas e uma boca com dentinhos serrilhados abaixo do par de olhos multifacetados.
Kurdis se levantou e seguiu a mosca de volta a Rua dos Ferros. Seguiu por ali, até o Beco das Latrinas. Era uma reentrância fétida na muralha do castelo onde lixo e dejetos eram jogados lá do alto. Aquela prega, sem saída, tinha uns dez metros de profundidade, também era conhecida como o Traseiro de Or'Ked. Uma vez, quando Kurdis era criança, meteu-se a brincar com garotos mais velhos, que logo viram a oportunidade de humilhar aquele que vestia as melhores roupas, vivia num palacete e falava certinho. Arrastaram-no até o Traseiro e o atiraram no meio dos lixo e dejetos. Além de ter de lidar com a sujeira, por si só, ainda ouviu um sermão de seu pai, quando chegou em casa imundo.
Kurdis sacudiu a cabeça tentando fazer aquelas memórias desaparecerem. Ainda pensando no episódio, cobriu a boca e nariz e entrou ali. O local estava infestado de moscas, baratas e ratos.
A bunda da mosca cintilava levemente durante o voo, de forma que Kurdis conseguiu segui-la até um basculante gradeado de apenas dois palmos de altura que ficava no nível do piso.
O zumbido da mosca soou alegremente. "Mas que cantinho aconchegante! Ah, o mundo poderia estar cheio de lugares assim, tão agradáveis..."
A mosca dançou sobre o gradeado. Havia uma dúzia daquelas grades em ambos lados do beco. Eram os respiradouros das celas do calabouço, cavado ali, sob aquela porção da muralha externa.
O gradeado que estava ali estava coberto de ferrugem e cedeu com facilidade quando Kurdis usou seu cajado como alavanca para fazê-lo se soltar das pedras. O fedor daquele lugar deixara aqueles gradeados sem manutenção por décadas.
Kurdis se ajoelhou e inclinou-se, tendo que virar a cabeça de lado e encolher os ombros para espiar pelo basculante. Lá dentro estava um breu e ele fez uma luz aparecer na ponta de seu cajado. No fundo, viu um velho com longos cabelos e barbas grisalhas, usando farrapos, imundo, magro como um cão faminto.
— Jan Mussak! — ele chamou.
O velho se moveu e despertou, apertou os olhos e os protegeu com a frágil e trêmula mão esquelética.
Sua voz era fraca, vacilante e rouca. Ele estava fraco como um gatinho recém-nascido, mas encontrou alguma alegria ao dizer: — Oh, é a luz de Valis! Finalmente chegou minha hora!
O velho exibiu um sorriso desdentado. Seu rosto cheio de rugas formava sombras fundas se esticavam para completar o sorriso. Estava aliviado, aquela luz branca e forte, no alto da cela, era a primeira coisa boa que lhe acontecia há muitos e muitos anos. Ele sinceramente esperava que aquele fosse o momento de sua morte. O momento de descansar nos braços de Valis.
— Oh, Valis. Me leva! Me leva!
Kurdis não esperava ver seu pai tão magro, tão fraco, tão derrotado. Seus olhos se encheram de lágrimas e seu estômago afundou.
Perdoe-me pai.
Então ele apontou seu cajado para seu pai e lançou um potente raio verde que o fulminou em instantes.
— Que Valis o conduza, meu pai...
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