54. Emboscada

Com a morte de Mãe Tu'ola, a jovem Mãe Dá assumiu a aldeia sob a supervisão da experiente Kullat. Apesar de ser muito jovem para assumir uma aldeia, foi aprovada pelos demais devido a sua bravura na luta contra os caçadores de dragão.

Kurdis e os noruks machos ficaram encarregados de limpar os crânios

Depois da primeira caçada bem-sucedida, passaram-se alguns meses até que outro grupo de caçadores de dragão foi avistado na região. Os noruks se ocuparam de fazer expedições para contatar as diversas tribos espalhadas em toda região para espalhar a notícia que a profecia da chegada do masu havia se concretizado.

Neste meio tempo, Kurdis aprendeu um pouco sobre o estilo de vida, cultura e idioma dos noruks. Era uma sociedade matriarcal e de leis duras e rígidas. Kurdis estava fora da aldeia quando os batedores chegaram com a notícia do avistamento. Ele foi recebido com muita animação por Mutu, que contou as novidades e lhe disse que Mãe Kullat queria vê-lo. Kurdis foi imediatamente para a tenda dela.

— Ô-masu, jarukos foram vistos ao sul do Lago Ytto! — Kullat comentou enquanto movia os pulsos lentamente para esmagar ervas num pilão de pedra.

— Mutu comentou comigo agora a pouco — disse Kurdis.

— É um eunuco muito linguarudo este Mutu...

— Ele não fez por mal — Kurdis vinha aprendendo a gostar do pequenino.

— Não se preocupe. Não irei puni-lo. Tu'ola não era tolerante com este... Ele era um de seus filhos, afinal.

— Não sabia.

— Estou ensinando Dá a ser mais tolerante com os eunucos. Um dia nós teremos que trabalhar com muitos deles para cumprir nosso propósito. Muitas mães acreditam que os eunucos são desprezíveis, que deveriam ser mortos para redimi-los de sua vergonha e inutilidade.

— É verdade que os escravagistas de Guin'uji castram todos os noruks que são capturados?

Kullat provou um pouco da pasta de ervas que amassava. Cuspiu em seguida. — Infelizmente sim. É um único jeito de evitar que as mães organizem resgates. Como disse, eunucos são considerados desprezíveis.

— Entendo.

— Agora é hora, grande Ô-masu. Vamos organizar mais uma expedição de caça.

***

O grupo de caçadores era maior que o primeiro. Muitas expedições de caça falhavam, mas era raro uma expedição sumir completamente, sem que ao menos um sobrevivente retornasse para contar alguma história. Aquele novo grupo, além de mais numeroso, contava com mais guldos. Kurdis observou a movimentação do grupo por alguns dias. O acampamento deles perto do Lago Ytto não tornava uma aproximação fácil.

Se perdemos o elemento surpresa, vamos perecer.

— Por que essa espera, grande ô-masu? — Mãe Dá andava de um lado para o outro, impaciente.

— Eles têm quatro feiticeiros, Mãe Dá. Os quatro agindo em conjunto podem derrotar-nos facilmente.

Ela bufou. — Vamos ficar aqui só olhando?

— Tenha paciência. Logo eles enviarão batedores, ou então, irão se movimentar.

— Melhor atacarmos essa noite, ô-masu.

— Já pensei nisso, mas ainda assim, é muito arriscado.

A grandalhona o encarou. — Por acaso Ô-masu perdeu a coragem?

— Existe um limite tênue entre coragem e estupidez. Você precisa aprender a ser paciente. Se agirmos no momento certo, a vitória estará do nosso lado.

Dá encolheu os ombros. — Eu não vejo a hora de banhar minha lança no sangue desses malditos jarukos!

— É? Não duvido, mas você se lembra de como Mãe Tu'ola morreu?

— Sim, ô-masu. O feiticeiro jaruko...

— A feiticeira. — Kurdis corrigiu. — Ela tinha um feitiço que a protegia das flechas e pedradas. Mas não se preocupe, eu tenho um plano. Vou atraí-los para a Garganta de Gag'kan.

— Como, ô-masu? — Mãe Dá olhou-o com interesse.

— Com um dragão... Já localizei a fera. Não está longe daqui, vamos subir. Precisamos preparar a emboscada.

***

Kurdis realizou a jornada de Min'Tai e contactou um jovem scotenk de escamas negras. A mente praticamente selvagem do animal deu a Kurdis a vantagem de que precisava. Conseguiu assumir o controle de sua mente e o conduziu para as proximidades do Lago Ytto. Naturalmente, a criatura foi avistada pelo grupo de caça e logo, Kurdis o fez voar na montanha acima, na direção da Garganta de Gag'Kan.

Kurdis caiu de lado. Estava coberto de suor. Sua cabeça doía e sentiu náuseas.

— Tudo bem, ô-masu?

— Sim... Me ajude a ficar de pé...

Um pouco além da garganta, morro acima, o dragão deitou-se, cansado, igualmente enjoado.

Kurdis caminhou até a borda do penhasco, em seu flanco esquerdo, e observou a movimentação do grupo de caçadores.

— Deu certo! Eles estão vindo! Preparem-se! E desta vez, eu quero três flechas para cada um dos guldos.

Tiveram que esperar algum tempo até que o grupo de caçadores avançar e se aproximar da garganta. Havia o triplo de arqueiras que Kullat e Dá conseguiram recrutar de outras tribos. Elas estavam em posição, aguardando o sinal. Além das arqueiras noruk, os machos tinham pedregulhos prontos para empurrar garganta adentro.

Kurdis viu que os quatro guldos logo estariam em alcance. O velho lhe parecia familiar, mas daquela distância não podia ter certeza. Outro, mais jovem, usava um gorro que segurava uma farta cabeleira loira. Vestia um manto castanho com uma larga faixa verde cobrindo o abdome avantajado, assobiava enquanto jogava uma moeda para o alto e brincava de cara ou coroa.

— Coroa de novo! A sorte está comigo!

— Quieto, irmão Flick! — o feiticeiro mais velho ao seu lado o repreendeu. Era careca, mas tinha longas barbas brancas. Usava calças de couro apertadas e uma jaqueta beje adornada com fitas prateadas. Se apoiava num longo cajado de madeira esculpido com motivos geométricos espiralados.

— Me deixe em paz, Mestre Vulkeen!

Vulkeen? O que um velho professor como ele estaria fazendo numa dessas caçadas? Será que foi demitido?

— Você está tirando minha concentração. Eu farejo magia. Fiquem atentos, pode haver um rato renegado por aqui...

— Deixe de ser paranoico, Mestre Vulken! — Flick, o loiro, retrucou. — Todos sabem que os ratos fogem para Dera ou pra Zanzídia...

Rato renegado? Ah, é assim que os Maihari tratam os seus. Eu me lembro. Não passamos de ratos a serem pisoteados. Só mais alguns passos... Mais alguns passos, seus desgraçados.

Kurdis segurava o colar com o apito que imitava uma ave da região. Ele soou o apito dando o sinal para atacarem. Em instantes, uma chuva de flechas, lanças e pedras desceu pelos dois flancos da garganta. Todo grupo de caça estava ali abaixo, vulnerável. Seria um massacre!

— Embosc... argh! — um dos lanceiros teve um flecha atravessada no peito e tombou.

Dois guldos caíram atingidos por mais de uma flecha. O terceiro, o velho Vulken, recebeu uma flechada na coxa e conseguiu erguer um escudo mágico para se defender dos demais projéteis, fossem flechas, lanças ou pedras. O quarto guldo, Flick, tinha atirado a moeda ao alto, logo antes do apito soar. A moeda lhe escapou dos dedos e caiu no chão. Quando se abaixou para pegar, quatro flechas que o atingiram na cabeça e no torso passaram direto.

Mas que droga! Dois escaparam!

— Maldição! — Vulkeen deixou escapar ao arrancar a flecha da coxa sem tocá-la. Uma faixa prateada voou da jaqueta para a perna, fazendo um curativo ligeiro.

Três noruks machos, usando uma alavanca, fizeram um pedregulho rolar na direção de Vulkeen. O guldo ergueu seu cajado e capturou a rocha no ar.

— Tomem isso, seus selvagens desgraçados!

A rocha voou de volta ao topo da garganta esmagando dois deles. Enquanto isso, Flick lançou um raio que se espalhou, atingindo três guerreiras na beira do precipício, no flanco direito, e que recarregavam seus arcos. As três gritaram e caíram fulminadas, uma delas, rolando e quicando até o fundo da garganta.

Kurdis estava à esquerda e lançou uma bola de fogo contra Flick, esperando atingi-lo pelas costas. Vulkeen desviou a magia, fazendo-a atingir um arbusto logo atrás de Flick.

— Eu disse! — Vulkeen gargalhou — Um rato!

Enquanto isso, uns poucos lanceiros e batedores que tinham escapado do primeiro assalto, buscavam cobertura. Um deles, com um arco, abateu uma guerreia no alto do flanco esquerdo, perto de Kurdis.

Mas que droga!

Vulkeen lançou um raio amarelado que subiu zunindo e certeiro contra Kurdis. O raio atravessou seu braço deixando um buraco fumegante do tamanho de uma moeda. Kurdis caiu para trás, gritando de dor. O velho, extremamente magro, mas também gozando de plena forma física, usou sua magia para dar um salto imenso. Ele superou os mais de dez metros e caiu no topo da garganta. Uma guerreira saltou sobre ele com a lança em riste, mas foi simplesmente atirada para baixo com um gesto das mãos enrugadas de Vulkeen.

— Andou se bandeando com os noruks, não é mesmo? — A bota de Vulkeen tinha pequenas tachas pontudas na sola para maior aderência no terreno montanhoso. Ele pisou na barriga de Kurdis com força, lacerando a sua pele e tirando sangue.

— Quem é você, ratinho? Eu deveria conhecer todos os ex-alunos da academia!

Kurdis tentou convocar uma magia em sua defesa, mas Vulkeen tocou seu cajado fazendo-o zunir para longe.

— Está disfarçado! Posso ver! — Vukeen ergueu uma muralha de fogo dos dois lados, afastando outros noruks momentaneamente.

— Velho desgraçado... — Kurdis deixou escapar.

— Ah! Então é você! Nunca me esqueço da voz de um aluno. Sempre soube que você não era material Maihari, Daman! Lorran protegeu você, oh sim! Mas isso foi um erro!

— Você não sabe de nada...

— Não sei de nada? Ora, respeite meus séculos de experiência, seu fedelho! Eu disse ao conselho, que nada de bom poderia vir do filho de Jan Mussak! Um comerciantezinho corrupto! Você é tão corrupto quanto seu pai... Merecia definhar na masmorra real, assim como ele! Você matou minha netinha, não foi? — Vulkeen arrastou o pé para baixo, rasgando o ventre de Daman até chegar em sua virilha. Daman gritou ao ter seus genitais esmagados e arranhados pela sola espinhosa. Ele não conseguiria responder nada sob tanta dor, então Vulkeen tirou o pé da virilha e aplicou pressão menor sobre a coxa.

— Neta? Não sei do que está falando...

— Hester! Foi sua colega! Como pôde matá-la, seu rato corrupto?

— Eu não sabia... Eu juro, Mestre Vulkeen, eu não sabia que era a Hester...

Os lábios do velho ficaram crispados, suas sobrancelhas brancas e fartas, se juntaram. Seu olhar faiscava com puro ódio.

— Socorro, Mestre Vulkeen! — Flick gritou ao ser trespassado por um dardo. Ele estava cercado, dos dois lados, por um bando de noruks macho e algumas fêmeas.

Vulkeen inclinou-se para trás e lançou uma chuva de chamas sobre os noruks.

É minha única chance!

Kurdis tirou a foice da capa e conseguiu ferir a perna de Vulkeen. Nada mais que um arranhão. O velho mago sentiu a mordida gelada da foice Da'akuvacula.

O sangue que manchou a calça do guldo começou a borbulhar, e em seguida, faiscar. Vulkeen largou o cajado e segurou a perna.

— Não! Não agora! Maldição!

Com se fosse um vaso de cerâmica rachado, a perna de Vulkeen começou a emitir fagulhas. A magia acumulada em seus ossos, carne e sangue por séculos estava entrando em colapso. O efeito se espalhava lentamente, subindo da perna para o torso.

Exploda, seu maldito!

— Não! Tudo menos isso! — o corpo de Vulkeen queimava de dentro para fora e ele agonizava. Kurdis fincou a lâmina na barriga de Vulkeen. A foice bebeu o sangue e Kurdis sentiu-se anestesiado, seus ferimentos, fechando num ritmo milagroso. Conseguiu, assim, ficar de pé.

Ele vai explodir a qualquer momento...

Kurdis estampou um sorriso sádico no rosto e colocou a sola do pé na virilha do velho.

— Adeus, velhinho!

Empurrou com força. Vulkeen rolou para dentro da garganta, deixando um rastro de faíscas que jorravam de seu corpo com maior intensidade. Ainda no ar, seu corpo explodiu de desfazendo em mil pedaços.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top