53. Caçadores caçados

— Agora! — Kurdis deu o sinal para os noruks.

Mãe Tu'ola liderou a saraivada de flechas lançadas por oito guerreiras. Quatro homens tombaram imediatamente ante o ataque surpresa. Um deles, era um guldo e teve o peito atravessado pela flecha da própria mãe Tu'ola.

— Emboscada! — gritaram alguns dos caçadores enquanto buscavam cobertura.

Kurdis observou que uma das flechas atingiu o cajado do outro guldo.

Aquilo não foi uma coincidência. Era uma magia de defesa contra projéteis.

Os machos lançaram uma chuva de pedras com suas fundas e estilingues. Uma delas foi atraída para o cajado com precisão. Uma dúzia de outras atingiu os lanceiros, e demais membros da companhia de caça. O ataque dos machos funcionava apenas uma distração, pois nenhuma pedra conseguiu causar maiores danos aos inimigos. O troco veio, os lanceiros tinham dardos de arremesso e meia dúzia de noruks foram atingidos, alguns, recebendo morte instantânea.

As guerreiras fêmeas atiraram suas flechas mais uma vez, mas erraram ou tiveram os ataques defendidos. Lanceiros agora avançavam com seus escudos se aproximando para um embate corpo a corpo. Mãe Tu'ola abandonou o arco e saltou para o patamar mais baixo empunhando sua lança de guerra. Ela avançou com ferocidade sobre um dos lanceiros e cravou a lança em seu peito.

O guldo, ainda ileso, arrancou a flecha cravada em seu cajado e em seguida lançou um relâmpago da ponta de seu cajado que fulminou Mãe Tu'ola. Os lanceiros avançaram, mesmo com muitas baixas entre os caçadores, seus números ainda eram maiores que as quatro guerreiras noruk remanescentes.

Elas possuem grande força bruta, mas alguns caçadores, parecem ser experientes em combates! Possivelmente, alguns deles são veteranos da guerra contra os kunes.

Muitos noruks machos ficaram assustados com o relâmpago que fulminou mãe Tu'ola e se esconderam. As fêmeas hesitaram, por alguns instantes.

Tudo será posto a perder! Preciso intervir!

Kurdis desceu o barranco, mas algumas pedras se soltaram e por pouco ele não rolou morro abaixo. Bateu com a bunda no chão e deslisou por alguns metros até conseguir frear.

Preste atenção, estúpido!

Uma lança voou em sua direção e fincou-se bem no meio de suas pernas, prendendo parte do tecido folgado das calças no chão. Um pouco mais para cima e Kurdis teria a região genital atingida.

— Que merda! — Ele demorou um pouco para rasgar a calça e conseguir se levantar. Fez isso bem a tempo de erguer um escudo e se defender de mais um relâmpago lançado pelo inimigo. Neste momento, com a maior proximidade, ele percebeu que o guldo em questão era uma mulher.

Kurdis lançou três cápsulas de fogo, mas estas foram atraídas pelo cajado da oponente. A mulher girou o objeto com velocidade e as chamas se dissiparam.

— Renegado maldito! — ela gritou.

Kurdis hesitou por um momento.

Essa voz...

A oponente tirou uma pequena adaga da bainha e usou a magia com o cajado para lançar o objeto veloz como uma flecha. O escudo contra magias que Kurdis mantinha era inútil contra um objeto físico. A adaga penetrou em seu ombro, causando dor intensa. Ele perdeu o equilíbrio, teve que se apoiar em um dos joelhos para não cair no chão.

— Hester... não...

— Como sabe meu nome? — Ela não reconhecia aquele mago de pele morena e cabelos brancos. Era um completo estranho. Os olhos de Hester faiscavam e a energia para gerar o relâmpago fluía de seu corpo para a cajado, circulando-o e fazendo o ar estalar à sua volta. Esta prestes a lançar o feitiço em Kurdis quando soou um grito de guerra noruk. Ela olhou para o lado.

Uma guerreira noruk saltou sobre Hester com a lança, mas foi atingida pelo relâmpago que ela havia preparado para lançar em Kurdis. O sacrifício da guerreira salvou a vida de Kurdis.

Não vai dar pra conversar, amiga... Me desculpe!

Kurdis se aproveitou do momento em que a oponente precisou desviar sua atenção para fulminar a noruk e lançou uma labareda larga das chamas verdes de Fre'garzam. Hester tentou resistir à magia, mas logo as chamas a envolveram. Seu grito estridente ecoou alto no vale. Ela rolou no chão agonizando com a dor intensa que o fogo verde provocava.

Kurdis olhou-a morrer com uma expressão amarga em seu rosto.

— Me desculpe, Hester... Se eu soubesse...

Ele grunhiu ao arrancar a adaga cravada no ombro. Lágrimas correram pela sua face, era difícil saber se eram pela dor do ferimento, ou pela dor de ter matado sua antiga colega de classe.

O combate ainda não havia acabado e Kurdis tirou a foice que estava presa às suas costas dentro da capa de couro. Com ela em mãos, sentiu o calafrio gelado espalhar-se por seu corpo. A sede de sangue era enorme. Ele avançou berrando de modo selvagem contra os lanceiros.

Uma lança atravessou sua coxa, mas ignorou completamente a dor. Avançou e matou o oponente fincando a ponta da foice em sua garganta. A foice sombria bebeu o sangue do inimigo e Kurdis sentiu aquela agradável sensação de frescor ao redor de seus ferimentos.

Ele gritou e avançou, agora agindo como um líder no ataque corpo-a-corpo contra os caçadores. Isso animou as guerreiras remanescentes e também trouxe de volta os noruks machos que estavam acovardados. Uma jovem guerreira noruk de nome Dá lutou perto de Kurdis com grande ferocidade. Apesar da pouca idade, ela tinha músculos muito desenvolvidos.

A foice voltou a zunir pelo ar, emitindo um silvo sinistro. Mais e mais vidas foram ceifadas pelo objeto sombrio. Dá e as demais noruks emitiam brados de guerra e matavam os lanceiros inimigos. Pouco tempo depois, o combate se encerrou e Kurdis e tribo noruk saiu vitoriosa.

Kurdis contou as cabeças: vinte e sete. Ainda precisaria de vinte e três para cumprir a cota estabelecida por Arjune'zur. Os noruks feridos foram tratados por Mãe Kullat, que apenas observou o embate à distância. Os que estavam bem, foram instruídos a tirar as cabeças dos inimigos derrotados e levá-las para o monte do rochedo.

Aquele procedimento macabro deixou Kurdis enjoado, mas as decapitações foram apenas uma pequena amostra do que estava por vir. Os noruks se puseram a carnear os cadáveres e quando Mutu informou que haveria um grande banquete, Kurdis curvou-se e vomitou. Mal tinha posto para fora algumas golfadas, viu a jovem Mãe Dá arrancando o coração do peito de um dos lanceiros, apontando-o para o céu e expressando uma espécie de prece. Em seguida, ela mordeu o coração fazendo sangue escorrer pela sua face horrenda. Kurdis curvou-se e voltou a vomitar até esvaziar complemente o estômago.

Recobrando as forças, levantou-se e bateu seu cajado numa pedra.

— Já é o suficiente! Chega! — ele ordenou que parassem de tirar carne dos cadáveres para consumo. Pedia para que Mutu traduzisse suas palavras.

— Juntem madeira! Vamos fazer uma pira para queimar esses corpos.

— Mas Keds-Frey-Frey... É disper... disper... cídio.

— Basta! — Kurdis lançou, como advertência, uma labareda de fogo verde com o cajado. — Diga a eles para buscar madeira!

Os noruks acabaram por obedecer, resmungando.

Mãe Kullat se aproximou.

— O que houve, ô-masu? Está arrependido?

A face de Kurdis era uma máscara de amargura. — Os que estão aqui mortos já pagaram alto com suas vidas. Apenas quero queimar seus corpos para serem bem recebidos por Valis.

— Valis? — a anciã tirou uma meleca do nariz e comeu.

— É a guardiã do túnel para o além-vida. — Kurdis respondeu monotônico, seus olhos vagavam encarando o espaço vazio.

Kullat colocou a mão nas costas, por causa da dor e perguntou: — E o que há no além-vida, para os jarukos?

— O salão do julgamento.

— E quem é esse juiz, ô-masu?

— Rom, aquele que tudo vê. — respondeu Kurdis, de modo mecânico.

Kullat acenou para Kurdis, chamando sua atenção. Ele olhou para ela, mas seguia de algum modo atordoado. Assim que ele a olhou nos olhos, ela indagou: — E o que é esse julgamento de Rom?

— Ele julga se a alma está pronta para o descanso eterno, ou se será mandada de volta para renascer.

Kullat balançou a cabeça afirmativamente. — Interessante... Para nós, norukos, a morte não tem essa perspectiva de descanso. No além, Ak'shalur, coloca todos a trabalhar no abismo da noite eterna para apaziguar a fome do devorador, Go'ram. No além, trocamos de sexo e no intervalo do giro da roda eterna, fazemos filhos. Os filhos que nascem e morrem no abismo atravessam o véu para renascer aqui na terra do dia e da noite. Seus corpos são dados a Go'ram enquanto suas almas ascendem para romper o véu. Mas a fome de Go'ram é sem fim, e um dia irá comer Hy'lok, o sol, e Kis'ke, a terra, e todos seus filhos, jarukos, norukos, plantas e animais. Ninguém será poupado.

Kurdis prestava atenção nas palavras fascinado, mas ao final da narrativa de Kullat pressionou os lábios numa expressão amarga. — É uma perspectiva terrível.

— É por isso que temos que lutar! Veja! — ela indicou no céu uma das luas. — Tuk'nu, filho de Go'ram persegue Hy'lok no céu. Um dia ele vai conseguir entregar Hy'lok para Go'ram devorar e será o fim dos tempos. Quando era jovem, eu vi com meus próprios olhos Tuk'nu sugar o fogo de Hy'lok. Nessas ocasiões, é preciso fazer um sacrifício a Frey'Garra'Zam. Somente ele pode dissuadir Tuk'nu de capturar o sol.

"Até lá, nossa tarefa é apaziguar a fome de Go'ram dos dois lados do véu. Se quiser saber minha opinião, Frey'Garra'Zam ficará mais satisfeito se deixar os corpos dos jarukos embaixo da terra para serem consumidos por seus filhos, os vermes."

Kurdis encolheu os ombros. — Muito bem, diga eles para parar de coletar madeira e começar a cavar. Para alguns jarukos, essa também é uma boa maneira de tratar seus mortos. Com tantas fés, deuses, histórias do além-vida, quem sou eu para definir qual será a verdadeira, e qual serão as falsas? Na verdade, Mãe Kullat, eu sempre desconfiei das histórias contadas pelos sacerdotes. — Ele fez uma pausa e indagou em tom irônico — Já ouviu a história de como o Santo Guides nadou num rio de lava?

— Ô-masu é um jaruko confuso! Como ô-masu pode duvidar do poder e da vontade dos deuses? Se ele próprio convoca as chamas verdes de Frey'Garra'Zam? Como ô-masu duvida, sendo aquele que usa a unha de um demônio para engrossar o próprio sangue? Por que você pode fazer coisas que muitos jarukos e norukos não podem, e o santo de suas histórias, não?

Kurdis ficou olhando os noruks trabalhando e pensando sobre as palavras de Mãe Kullat.

Fre'garzam, Goltram e até mesmo Skat'challur parecem fazer parte das crenças dos noruks. Go'ram e Ak'shalur... A semelhança é grande demais para ser apenas coincidência. Curioso. Curioso como em Kedpir essas divindades são praticamente ignoradas, ao mesmo tempo, são cultuadas pelos Wux'shien da Kunéria. Há também os acadêmicos de Dera e da antiga Zanzídia com suas teorias sobre os arcanos das luzes e das sombras. Quem sabe um dia eu poderei descobrir a verdade por trás dessas histórias... Bem, por hora, preciso cumprir meu acordo com Arjune'zur. Hoje, a duras penas, conseguimos vinte e sete cabeças. Amanhã, será um novo dia.

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