50. Nos ermos

Kurdis caminhava de modo tortuoso. Limpava o suor abundante em sua testa.

Maldita dor de barriga!

Logo que conseguiu sair da torre percebeu estar num lugar ermo e sem muita vida. A região de montanhas geladas tinha um clima desértico, o solo duro composto por pedras suportava apenas pequenos arbustos de caule retorcido, cactos e outros tipos de plantas de folhas pequenas ou abundantes em espinhos.

No final do primeiro dia de caminhada, a fome apertou e decidiu comer alguns pequenos frutos amarelos de um arbusto. O sabor adstringente deixava sua língua seca, mas aquilo ao menos matou sua fome.

Durante a madrugada, vomitou e sofreu de terríveis cólicas. Seu corpo queria expulsar aquele alimento tóxico e passou o dia seguinte precisando parar de tempos em tempos para dar vazão à sua diarreia.

Ele rasgou uma parte de suas vestimentas que protegiam as pernas para se limpar daquela sujeira.

Situação maldita!

Finalmente desceu toda extensão da montanha e no vale rochoso abaixo, achou um pequeno riacho onde se banhou e saciou a sede. Estava fraco e dormiu ali mesmo, sob a sombra de um grande rochedo.

Resolveu seguir o curso do pequeno rio. Havia ocasionais quedas d'água e em um dos poços, viu que havia um cardume de pequenos peixes. Estava sem instrumentos, ainda sofrendo dores abdominais e sentindo o corpo fraquejar. Tentou em vão capturar um peixe.

Maldição! Com tantas magias que conheço, não consigo pescar um mísero peixe!

Desistiu daquilo e desceu por algum tempo até que encontrou algumas pequenas árvores perto de um poço, acima de uma alta cachoeira. Uma delas tinha frutos. Notou que alguns pássaros bicavam as frutas.

— Isso parece linojuço...

Colheu um que estava num galho baixo e experimentou fazendo uma careta.

Horrível!

Sentou ali sob a magra sombra da árvore e ficou observando. Os passarinhos tinham cantos curtos e nervosos. Escutar a barulheira que produziam ao menos era uma distração. Ficou observando-os por um tempo. Tinham penas marrons e peitos brancos. Bicos pretos e finos como agulhas.

Na verdade, eles estão cutucando a fruta em busca de larvas... Suponho que também consiga fazer isso.

Subiu até o meio da árvore, e se pendurou num dos galhos para alcançar um cacho dos frutos. Cortou os frutos com a lâmina da foice e encontrou algumas das pequenas larvas. Elas estouravam em sua boca como pipocas e tinham um sabor mais ameno que os frutos, ainda que o gosto fosse quase o mesmo.

Agora, pelo menos, tenho comida e água.

Resolveu ficar ali por alguns dias para recobrar suas forças. A solidão que vivenciava foi refrescante, a princípio. Ao mesmo tempo, a mente se mantinha ocupada com a preocupação em sobreviver. Passou longas horas observando a paisagem, pequenos peixes, os passarinhos e pensando em seu passado. Havia todo um desconforto naquela situação, rústica, mas ao menos, também, estar longe dos problemas da civilização lhe trazia alguma paz.

Numa noite o céu ficou muito limpo e pode examinar as estrelas. Tentava deduzir a localização da antiga torre.

Aquela parece a constelação do pilão, mas está invertida... Talvez eu esteja em algum ponto ao norte de Kedpir, afinal, sempre havia notícias das expedições para caçar dragões além de Lampita.

Em algumas noites, escutava uivos distantes.

Esses predadores poderão ser um problema!

Usava a lâmina da foice para esculpir alguns cajados, sem saber bem se alguma daquelas madeiras que encontrou daria uma boa condutividade.

No dia seguinte, acordou coberto de picadas de insetos nas pernas, agora desprotegidas, pois o manto rasgado ficara em farrapos.

Não posso ficar aqui a vida toda... Talvez eu esteja num continente inabitado. E se eu nunca mais encontrar outras pessoas?

Tirou as roupas e nadou um pouco na água gelada. Sentia-se fraco. Nadou até o topo da cachoeira e dali, podia avistar a paisagem distante. Ao longe, notou um recanto verde em meio às montanhas.

Parece um bosque. Vou naquela direção.

Ao sair da água, sentiu o corpo tremer. O sol fraco não queria aquecê-lo. Com a foice terminou de esculpir mais cajado para si.

Não consigo me adaptar à maneira dos kunes de fazer magia. Canalizar pelos pés é bem mais difícil que pelas mãos.

Colocou mais alguns gravetos secos no local da sua fogueira e usou o novo cajado. A condutividade daquele quinto cajado foi a melhor até então! Produziu uma labareda forte pela primeira vez em dias.

Isso sim!

Voltar a fazer magia com fluidez lhe trouxe uma nova ideia. Conseguiu, com a foice, pegar alguns frutos que estavam bem no alto da árvore, em pontos que não conseguia mais escalar. Pegou esses frutos, retirou todas as larvas e colocou-as sobre uma pedra lisa, perto do poço.

Ficou a poucos passos da pedra, imóvel, aguardando. Àquela altura, os passarinhos ariscos já estavam habituados à sua presença.

Logo alguns vieram pegar o banquete. Kurdis lançou uma labareda forte com o cajado e derrubou três deles. Os demais, voaram assustados.

— Aí sim!

Depenou os bichinhos chamuscados, que se mostraram bem magros e menores do que aparentavam emplumados. Teve que fazer uma pequena cirurgia com a ponta da foice para tirar as tripas. Usou sua magia do fogo para assar as avezinhas. Os ossos eram tão pequenos que teve que triturá-los com os dentes.

Ao menos uma refeição decente! Isso deve me ajudar a ter mais forças para prosseguir. Não passei por tanta coisa para morrer aqui, sozinho...

Procurou um caminho menos íngreme para descer, se afastando um pouco do rio, mas logo mais, voltou a encontrá-lo e seguir o curso. Agora com um cajado quase decente em mãos, sentia-se mais confiante.

Acho que estou pronto para enfrentar perigos e me defender de eventuais predadores.

***

Aqueles primeiros dias nos ermos, foram porta de entrada em um novo mundo. Saber magia e o pouco treinamento militar que recebeu o ajudavam na sobrevivência, mas não chegaram a deixar as coisas fáceis para Kurdis. O novo mundo de Kurdis envolvia aprender a sobreviver numa região desconhecida e conviver com um sentimento crescente de solidão.

Ao mesmo tempo, a natureza proporcionava momentos de contemplação. Avistou por mais de uma vez dragões caçando naquela região. Conforme avançava, saindo de terrenos inférteis, encontrava bosques, rios e lagos. Um lago, era tão grande, que pensou ser um mar. Teve que contorná-lo para seguir em direção ao sul.

Já naquela região, o clima estava chuvoso. Havia rebanhos de muskutes selvagens e outros animas de maior porte que serviam de caça para os dragões, shunas e morsolos. Teve um encontro quase fatal com um morsolo ao atravessar um bosque entre um cânion. Já caminhava há dias sob constante garoa.

A criatura quadrúpede era imensa, surgiu de um buraco urrando e surpreendendo Kurdis.

Mas o quê?

O morsolo ficou sob fortes patas traseiras para atacá-lo, alcançando cerca de três metros de altura. Tinha densos pelos negros, muita gordura corporal e garras afiadas.

Kurdis alvejou-o com uma labareda de chamas, mas aquele local era muito úmido e os pelos molhados do animal impediram que ele se queimasse. O morsolo avançou, as garras poderosas atingiram o braço do mago, deixando quatro cortes paralelos e profundos.

Estou frito!

Certamente sangraria até a morte como consequência daquele ferimento. A criatura, faminta, estava determinada a tê-lo como presa. Antes que pudesse finalizar seu intento, foi atingida por um golpe mortal da foice sombria. A lâmina bebeu o sangue do imenso animal e fez os cortes no braço de Kurdis cicatrizarem.

Por todos os santos! Essa foi por pouco!

Aquele embate lhe rendeu alguns dias de fartas refeições, mesmo desperdiçando a maioria de sua carne.

Depois de algum tempo se deslocando, estava claro que a torre antiga devia ficar em uma região do extremo norte. Tinha esperanças de que, seguindo na direção sul, pudesse chegar em Kedpir, ou qualquer outro reino. Por vezes a ideia de nunca mais ver pessoas, de estar em um continente desabitado, o assombrava.

Se a solidão o assombrava, sua sorte, ou azar, estava prestes a mudar. Quanto mais ao sul chegava, mais as constelações no céu se tornavam familiares. Aqueles imensos lagos estavam localizados entre duas altas cordilheiras. E agora, Kurdis sabia que precisaria superar a região montanhosa antes de retornar à civilização.

A pedrada acertou a têmpora de Kurdis de raspão. Se fosse um tiro certeiro, ele teria desmaiado. O sangue quente escorreu pela face e Kurdis levou a mão ao ferimento. Ele olhou ao seu redor, mas não viu nada no caminho rochoso da charneca.

Alguém me atacou! Mas quem?

Kurdis bateu o cajado no chão convocando uma barreira e esta se formou no instante exato que outra pedra zuniu contra sua cabeça. Então ele viu, a cabecinha se escondendo atrás de um arbusto. Bateu o cajado no chão, furioso. Lançou uma labareda do fogo verde que zuniu crepitando até atingir o arbusto. Aquele fogo intenso consumiu o arbusto cinco vezes mais rápido do que ocorreria se fosse fogo comum.

— Ghaak! — berrou uma das duas criaturas que recebeu um respingo do fogo em seu braço.

Noruks selvagens?

Os pequenos humanoides de pele cinzenta, seminus, fugiram muito assustados. Kurdis os perseguiu. Kurdis tinha pernas maiores, mas sapatos péssimos. Além disso, os pequeninos eram ágeis e saltitam como shunas sobre as pedras expostas da charneca. Ficavam cada vez mais distantes, mas Kurdis logo viu que se dirigiam a um ponto mais baixo do morro onde crescia uma estreita mata.

O mago desceu o final do caminho lentamente, pois era um trecho bastante íngreme. Chegando ao fundo, notou haver uma trilha penetrando na mata. Seguiu por ali e acelerou o passo, não podia deixar a dupla ter uma vantagem muito grande. Em pouco tempo, a trilha se abriu. Havia uma clareira no meio da mata e ali, algumas construções rudimentares. Kurdis não encontrou nenhum dos pequenos noruks à vista, mas sim, três imensas fêmeas.

As fêmeas exibiam seus braços cinzentos e musculosos, com bíceps mais grossos que a cabeça de um humano. Seus focinhos ferozes deixavam à vista os pares de dentes caninos. Elas usavam tiras de couro sobrepostas como roupas. A maior delas, tinha os ombros cobertos por uma grossa pele de morsolo e usava na cabeça, o crânio do animal, como se fosse um elmo.

Ela atirou uma lança com ponta de pedra lascada com grande precisão. Sabia exatamente onde mirar, no coração de Kurdis, mas ele não se moveu, pronto para receber o golpe fatal.

A enorme mãe Noruk antecipou sua vitória com um grito de guerra que morreu antes de seu fim. Ela praticamente se engasgou ao ver sua lança se espatifar contra o corpo do humano sem feri-lo.

Kurdis lançou uma labareda de chamas, e a fez circular ao redor da líder. Duzias de gritinhos desesperados vieram de todos os lugares da aldeia. Kurdis bateu o cajado no chão, fazendo o fogo se dispersar, sem causar dano algum à noruk.

— Gorb naruska! — a mãe disse em alto e bom som. Em seguida, tirou as duas lanças que carregava presas às costas e lançou-as no chão. Estava se rendendo. Seus olhos amarelos encaravam Kurdis num misto de medo e ódio.

A segunda maior Noruk, que usava um cinturão de pele de shuna, rosnou alto e correu na direção de Kurdis com sua lança.

Ela não aceitou a derrota. Viu aqui uma chance de mostrar-se mais forte que a líder da aldeia.

Kurdis deixou que ela se aproximasse, mas não muito. A poucos passos de distância, convocou uma labareda de seu fogo verde que incendiou as vestimentas da guerreira em instantes. Ela caiu no chão, girando, agonizando. A dor causada pelo fogo verde do abismo era incomensurável.

— Knet rashap! Rashaaap!

Ela implorou por misericórdia e aos olhos de seus pares, teve uma morte vergonhosa.

Então, percebeu que algo mudou na atitude a pele de morsolo. Ela se prostrou diante dele em seu olhar, o ódio deu lugar à devoção. Uma devoção de alguém que teme a aparição de um enviado dos deuses.

— Ziscro ap Frey'Garra'Zam!

Aquelas palavras rudes e guturais bateram nos ouvidos de Kurdis.

— Fre'garzam?

Cerca de trinta machos noruks surgiram. Tomaram coragem e se aproximaram da mãe prostrada diante de Kurdis. Se prostraram de modo igual e passaram a recitar as palavras, com suas vozes arranhadas e débeis, na forma de um cântico.

— Frey'Garra'Zam! Frey-Frey! Frey'Garra-Zam ne masu!

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