46. A Jornada de Min'Tai
Kurdis estava preso numa cela. Ele despertou quando uma ratazana passou por cima de seu braço. Ele a agarrou. Não podia deixar aquela chance passar. Mordeu o pescocinho do roedor que se contorceu e guinchou antes de ter seu sangue sugado.
Uma vaga iluminação entrava por uma minúscula janela gradeada, muitos metros acima de sua cabeça. Seus braços estavam magros, cheios de feridas. Suas roupas, não eram nada além de farrapos. Limpou o sangue no corpo. Podia sentir todos os ossos de suas costelas sob o toque dos dedos nodosos. A fome já havia se tornado sua companheira há muito tempo, mas ocasionalmente a sorte de pegar uma barata, ou ratazana, vinha para aplacá-la.
Não havia o que fazer a não ser se arrastar de um lado para o outro da cela e amaldiçoar seus captores. Raramente recebia visitas. Já havia se passado o tempo em que gastava energia gritando, se queixando.
Mas naquele dia, alguém veio vê-lo. Escutou os passos das botas soando pelo corredor.
A imagem de um homem gordo, com tranças nas barbas, impressionou os olhos de Kurdis. Quando ele falou, mal reconheceu sua voz rouca, envelhecida, arranhada e falha.
— O que quer comigo, desgraçado?
— Sabe... Sempre que tenho um dia ruim, que penso que minha vida é uma porcaria, eu gosto de vir aqui para olhar para você, seu verme. Olhar para você eleva o meu espírito!
— Seu maldito! Um dia, pagará pelos seus crimes!
— Só um tolo como você, Jan Mussak, acredita na justiça.
Jan Mussak? Papai? O que está acontecendo?
— Veja a justiça, seu imbecil!
Sim, eu me lembro! Aquele é o Murdis Hûr. O maldito que conspirou com o príncipe Jorem para colocar meu pai na cadeia.
Murdis tirou o membro de dentro da calça e disparou uma jato de urina sobre o prisioneiro.
— Há há há! — o homem gargalhou — Isso realmente eleva meu espírito!
Kurdis sentiu o líquido fétido e quente sobre seu corpo e saltou. Quando despertou, estava sentindo calor. Estava suado.
Ele gritou: — Papai!
"Sonhou com seu pai novamente, Daman"
Foi um maldito pesadelo!
"Sim, eu me lembro das primeiras vezes que executei a Jornada de Min'Tai. Eu entrei na cabeça de meu filho. Eu senti a morte de meu filho em uma das guerras entre nossos países."
Você nunca me disse que tinha um filho, Carc'limar...
"Eu nunca lhe disse muitas coisas, Daman. Você esteve na pele de seu pai?"
Sim, e desta vez, foi horrível. Eu pude sentir as dores, a fome. A humilhação! Aquele desgraçado!
Kurdis saltou de sua cama e foi até a janela. Abriu metade dela e o vento gelado da noite invadiu seu quarto.
— Eu queria voar até Tédris agora mesmo e cozinhar aquele maldito Murdis Hûr!
"Você irá retornar a Kedpir quando terminar seu treinamento. Quando se tornar um Wux'shein."
— Eu não posso, mestre! Não posso deixar meu pai sofrer tanta humilhação! Que se dane o treinamento. Vou partir para Kedpir! Já me decidi!
"Se fizer isso antes de completar o treinamento, poderá morrer!"
— Dane-se a morte! Eu tenho que ir! Ainda há tempo de salvar meu pai e me vingar de Jorem... Destruir a casa dos Hûr!
"Aprecio seus sentimentos... Mas não irei permitir que jogue sua vida fora!"
— Então tente me impedir!
"Sabe que nessa forma pouco posso fazer para impedi-lo, mas Tian Zwonk, Jen Huolonk e os demais não vão deixá-lo partir."
— Eu já estou aqui há dez anos fazendo tudo o que me pedem!
"Quatorze anos, Daman."
— Tudo isso? Eu perdi a noção do tempo... Tudo o que me ensinaram é fascinante, mas eu não posso ignorar o que acabei de ver em minha jornada. Meu pai continua preso, muito mal, e vem sendo humilhado!
"É o que o destino escolheu para ele, Daman. Certamente há lições para ele aprender."
— E quem disse que o destino vai me impedir de ir salvá-lo?
"Acha mesmo que a essa altura, seu pai ainda pode ser salvo? Preso há quase vinte anos? O melhor que pode acontecer a ele a essa altura é a morte, Daman."
— Maldito seja! Carc'limar! Se eu ainda estivesse em Kedpir, poderia ter ajudado meu pai. Mas você teve que fazer uma guerra, colocar aquela maldita foice em minhas mãos! Tripudiar de mim quando eu perdi a Djista! Você é um desgraçado! Desalmado! Se eu pudesse destruí-lo!
"Eu nunca desejei mal àquela mulher. Se ela morreu, foi por culpa de Yargen Tannis."
— Tannis não era metade do canalha que você é! Tudo isso é culpa sua!
"Não fui eu que usurpou a casa de seu pai. Não sou eu que o mantenho prisioneiro. Não sou eu que o humilho."
— Isso pode ser verdade, mas...
"Escute, Daman. Estamos muito perto de completar seu treinamento. Talvez saber do sofrimento de seu pai a esta altura seja a sua maior prova. Você não compreende? É o escolhido de Fre'garzam para concluir a vingança contra Leviamut!"
— Isso não faz sentido algum, Carc'limar! O Deus-Dragão já foi morto!
"Sim, mas sua prole continua rastejando sobre o nosso mundo. Ela já controla toda Zanzídia. Apenas quando Kedpir e a Kunéria se unificarem, teremos a força suficiente para expurgar as crias de Leviamut!"
— Você é louco, Carc'limar! Tian Zwonk, Li'nan e Gau'han já me disseram que sua busca é irreal, inútil, fantasiosa!
"Eles não sabem de nada, Daman! São tolos... Foram enganados por Goltram! Tornaram-se meros servos de Goltram. E ele se contenta com restos! Consumir a alma de serzinhos inúteis deixa Goltram saciado, mas qual é o propósito superior que ele busca? Nenhum!"
Kurids gritou irritado: — Eu me recuso a servir Fre'garzam, Goltram, Hulbrigult, Skat'challur ou Sass'zassno'tor! Que todos esses imbecis voltem para o abismo de onde saíram!
"Seu blasfemo! Não é sábio dizer o nome dos deuses assim em vão!"
Antes que a discussão entre Kurdis e Carc'limar prosseguisse, vieram vigorosas batidas em sua porta.
— Que gritaria toda é essa, Daman? — a voz aguda de Li'nan não parecia nada satisfeita.
— Vá embora! — Kurdis gritou com o sangue quente na cabeça.
BLAM! A porta do quarto de Kurdis veio abaixo. Atrás dela, estava a feiticeira Li'nan. Mesmo usando suas roupas de dormir, a mulher não parecia menos ameaçadora. Kurdis jamais vira um sorriso emergir de seu rosto fino e carrancudo.
— Escutei bem, nortenho? Estava blasfemando contra Goltram?
— Está imaginando coisas, shin Li'nan! É apenas um mal-entendido. Um pesadelo...
— Eu sei muito bem o que ouvi! Saiba que se dependesse de mim, já teríamos o atirado no Poço de Skat'challur!
Kurdis se pôs de joelhos e tocou a testa no chão.
— Me perdoe, shin Li'nan! A verdade é que me irritei com Carc'limar e sua obsessão com a vingança de Fre'garzam! É um objetivo que me recuso a perseguir...
— Entendo...
— Na verdade, percebi que Goltram é o Deus mais valoroso, aquele pelo qual pretendo juramentar meu sangue no Rito de Wux'nahou!
— Hum... Uma cadeira a mais no conselho a favor de Goltram é uma perspectiva adequada.
"Seu merdinha! Está apenas falando o que Li'nan quer ouvir! Fala de mim, mas é apenas um maldito traíra! Esteja certo que vou contar a verdade a ela na próxima sessão de espectro-fonia!"
— Sim, tudo graças às suas valorosas palestras. Goltram é, sem dúvida, o Deus que melhor se adapta ao atual ciclo de nossa esfera.
— Finalmente a razão encontrou um lugar nessa sua cabeça nortenha!
— Obrigado, senhora! Não se preocupe com a porta. Eu posso repará-la. E mais uma vez, me desculpe por atrapalhar seu sono.
— Que Goltram fortaleça seu espírito!
— Igualmente, shin Li'nan.
"Uma vez princesa, sempre susceptível às bajulações! Sua imbecil! Tola, miserável!"
Isso poderia ter acabado mal...
"E vai acabar mal, seu tolo! Pode ter aprendido a manipular meus companheiros, mas a mim, não tem como enganar. Eu sigo todos seus passos, ouço todos seus pensamentos. Não pense que vou deixá-lo escapar antes do rito. Antes de jurar seu sangue a Fre'garzam!"
Maldito seja! Carc'limar! Maldito seja!
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