43. Com o pé na estrada

No início da guerra, Kedpir importou muitos cavalos glabrinos da Zanzídia. Mantê-los e fazê-los se procriar em cativeiro era algo extremamente difícil. De modo que havia uma necessidade de importação periódica desses animais. Na Kunéria não era diferente, cavalos eram animais caros e podiam ser alugados nas casas de cavalos, local onde conseguiam fazê-los procriar com um método de reprodução assistida.

Ali usavam cavalos de outra raça, os Bai'zen. Kurdis sentiu o cheiro forte dos animais e do estrume logo que chegaram perto do local. Um senhor de alta classe social saiu montado num Bai'zen. Kurdis observou que o par de cornos castanhos e pequenos do animal estavam devidamente lixados. A pelagem branca com rajadas douradas formava padrões bonitos de se observar.

Kurdis entrou no local sob o olhar desconfiado de um rapaz que trabalhava como tratador. O local era grande, ocupando o espaço de uma quadra inteira da cidade. Ali havia alguns jardins, campinas e várias áreas cercadas onde os belos animais ficavam.

— Estou procurando por jun Huon.

O garoto correu sem nada dizer. Pouco depois, um homem alto, de constituição física larga, bigodes e barbas de cabelos pretos lisos, bem penteados, surgiu. Ele saiu caminhando da sede administrativa, uma casa estreita de três andares no final do terreno.

— Ah, você é o estrangeiro de que todos estão falando, não é? Me surpreende muito o fato de kan Chian tê-lo recebido em sua estalagem.

Kurdis olhou para o brutamontes. Poderia ser um soldado fabuloso, mas era guia e tratador de cavalos. Ele vestia roupas simples, no estilo kunério, justas e cheias de bordados decorativos. Estava bastante limpo para alguém que criava animais.

— Meu nome é Daman — Kurdis fez uma vênia seguindo as instruções da voz.

— Sou Huon... — o homem coçou a sobrancelha esquerda. — Escute, tlavin. Não vou lhe alugar meus animais. Portanto, faça-me o favor de sair de minha propriedade.

— Desculpe, jun Huon. Deve haver um mal-entendido. Eu não vim aqui para alugar um de seus belos Bai'zen. Vim por que gostaria que o senhor me guiasse até a Torre Prístina.

— Torre Prístina? Não me agrada chegar perto dos Wux'shien...

Kurdis abriu sua bolsa e mostrou um punhado de moedas.

— Cinquenta das serpes de prata de Dera seriam de seu agrado, jun Huon?

O homem ergueu as sobrancelhas.

— Cinquenta pratas seriam aceitáveis. Quando deseja viajar?

— Quanto antes.

— Muito bem, tlav Daman. Volte amanhã, na primeira hora. Farei os preparativos para a viagem.

É a primeira vez que alguém me chamou de tlav. O que isso significa?

"É a maneira dele expressar o respeito pelo seu dinheiro, ou mesmo, nível social. Apesar de você ser estrangeiro..."

No dia seguinte, logo cedo. Kurdis comeu biscoitos fritos, pequenos ovos de mergulhão cozidos e uma xícara do chá ardido, muito amarelo, que kan Chian servia.

— Como é mesmo o nome desse chá, kan Chian?

— Zuo'ban. Uma raiz que cresce perto dos rios. Muito forte para você, Daman?

— É forte, sem dúvida. Vai muito bem com os biscoitos.

A mulher pequenina fez um pequeno aceno e deu seus passos curtos para cumprimentar o segundo cliente que acordou naquela manhã.

Vou sentir falta dessa estalagem.

"Eu sinto falta de tomar chá de Zuo'ban." A voz deixou escapar.

Você já foi um homem, então?

A voz foi evasiva. "Não são apenas os humanos que bebem chá, Daman."

Isso confirma para mim que você já foi, sim, alguém que caminhou por essa terra, antes de virar uma voz sussurrante do além...

"Isto pouco importa! Vamos logo para a casa de cavalos, você não vai querer se atrasar para sua viagem."

Kurdis se despediu de kan Chian deixando algumas moedas de prata a mais do que lhe devia.

A mulher se curvou, em agradecimento e disse — Ah, din Daman! Volte sempre!

Ela me chamou de senhor, viu isso?

"E a quem você deveria agradecer por lhe ensinar bons modos?"

Kurdis saiu nas ruas de Trascala. O sol ainda não batia ali, escondido atrás das altas montanhas a leste, mas dava pra ver que seria um belo dia, pois quase não havia nuvens no céu. Tão cedo, havia pouco movimento nas ruas e Kurdis andou um pouco mais ligeiro, apenas tocando o solo levemente com a ponta de sua bengala.

Sabe, vozinha, você não tem mais o que fazer?

"Eu não sou uma vozinha..."

Poderia me iluminar, dizendo quem é? Qual seu nome?

"Um espírito não se apega a nomes... Não preciso de um, toda vez que ouço seus pensamentos, já sei que está falando comigo."

Pois pra mim é desconfortável conversar com sei lá o que... Ou sei lá quem. Vou te chamar de vozinha, então...

"Se quer tanto me chamar por um nome, pode me chamar de Guank."

Guank? Isso não significa luz no idioma kune?

"Não é isso que sou? Uma luz em seu caminho?"

Talvez... Me intriga muito o porquê de você estar tão interessado em me iluminar...

"E saiba, o idioma da kunéria é o kunério, e não kune!"

Vejo que quando uso o termo kune isso incomoda você.

"De modo algum, estou apenas o corrigindo... Além disso, os kunérios acham esse termo ofensivo."

Sei...

O relincho de um murrão chamou a atenção de Kurdis antes que prosseguissem naquele diálogo. Huon estava usando uma capa, e botas de cano alto ao lado de um murrão cinzento, carregado com grande feixe de bagagens. Aguardavam a chegada de Kurdis na frente da casa de cavalos.

— Bom dia, jun Huon!

— Igualmente, tlav Daman.

— Imaginei que faríamos a viagem usando cavalos.

— Imaginou errado. Cavalos só ajudariam no início da viagem, depois, teríamos que deixá-los para trás. São animais muito caros, deixar um cavalo para trás simplesmente não é uma opção. Portanto, iremos a pé. Este murrão irã carregar nossas provisões. Deseja colocar nele sua mochila?

— Sim, claro.

Antes mesmo da cidade ficar movimentada, Kurdis e Huon deixaram-na para trás. Seguiram a primeira hora de viagem em silêncio, aproveitando o frescor da manhã e seguindo por uma estrada de terra em boas condições. A paisagem era bonita ali e passaram por diversas propriedades onde rebanhos eram criados. Seguiam cada vez mais subindo no terreno, mas gradualmente.

Com o sol mais alto, chegaram num entroncamento. Havia outra estrada que seguia no rumo norte-sul.

— A capital fica para o sul, mas ao norte, há várias cidades grande como Trascala. — Houn explicou quando passaram por ali. — Nós vamos continuar por ali.

Dali para a frente, a estrada que ia na direção das montanhas a leste, tornou-se mais estreita e pouco conservada, as laterais tomadas por mato alto.

— Pouca gente viaja por aqui. Há um vilarejo lá adiante, na base das montanhas. Com sorte, é onde passaremos a primeira noite.

— Que bom.

— Como está sua perna? Aguentando bem?

— Ah, sim, jun Huon. Obrigado por perguntar.

Desceram um pouco no terreno e avistaram, abaixo, um longo vale e um rio. Chegando perto do rio, encontraram um vilarejo dividido por uma longa ponte de madeira. Almoçaram ali, sob olhares desconfiados dos locais. Muitos nunca tinham colocado os olhos sobre um estrangeiro. Alguns deles, no entanto, conheciam Huon e curiosos, vieram ter conversas com ele, indagando sobre o estrangeiro, como se ele não estivesse ali, ou mesmo, não entendesse o idioma local.

Guank traduzia as conversas para Kurdis, mas ele apenas seguia comendo, fingindo desinteresse.

Já na estrada novamente, Kurdis indagou — Por que não há estrangeiros na Kunéria, jun Huon?

— Nós não gostamos de estrangeiros. Quase sempre é uma gente inculta e que se acha no direito de criticar nosso modo de vida.

— Entendo. Por que a Kunéria tentou invadir Kedpir?

— Eu não me interesso por política. Mas todos sabem que as guerras com os nortenhos já acontecem há muito tempo. Na minha forma de ver, cada guerra é apenas uma consequência da guerra anterior. Nós, do povo, não precisamos dessas guerras, mas acredito que os reis estejam querendo mais riqueza.

— Entendo.

— Quem ganha com isso são os deravos. Como não acontece o comércio entre os reinos, os desgraçados ganham intermediando...

— Passei um bom tempo em Dera. Eu saí de lá devido às revoltas.

— Ah, sim. Ouvi falar... Eles não têm mais rei. Realmente não consigo imaginar como um povo possa ficar sem seu rei.

— Sinceramente, eu concordo. Conheci um sujeito em Dera que falava de antigos povos que não possuíam reis. O governo era feito por representantes eleitos pelo povo.

— Aqui na Kunéria as províncias elegem delegados que discutem interesses com o rei na assembleia, assim evitamos que os reis se tornem tiranos. Além disso, os Czun'luó conseguem resolver os problemas da população.

Kizunluon?

"São os feiticeiros empregados como servidores públicos."

— Feiticeiros, você diz?

— Exatamente. Eles restauram cursos d'água, mantém as estradas, eliminam predadores perigosos nas regiões produtivas, e por aí vai. Eles servem ao povo em nome do rei. Já os nortenhos têm seus feiticeiros... O rei os coloca para lutar no exército e manter a ordem, a seu favor. O rei vive às custas de seu povo, aqui é diferente, o rei vive para servir ao povo.

— Posso ver sua devoção.

— Os estrangeiros não entendem, mas é uma via de mão dupla, servimos ao rei e o rei nos serve. Se um dia ganhássemos a guerra, tenho certeza de que a vida seria melhor para os nortenhos.

— Obrigado por me explicar mais sobre a Kunéria, jun Huon.

— É uma satisfação. Mas diga-me, Daman. Você vem da Zanzídia, não é? Por que procura a Torre Prístina?

— Bem, minha terra é governada por Hoffneg, o Mão de Sangue. Ele também é o líder da ordem de feiticeiros. Qualquer um que discorda do governo é morto. É o meu caso. Tentei ficar um tempo em Dera, mas não deu certo. Fiquei sabendo que os Wux'shien tem os meios para receber feiticeiros estrangeiros e integrá-los à sua sociedade.

— É um feiticeiro?

— Eu era um capa-azul, trabalhava em Topemari. Já ouviu falar?

— Ah, sim. Trascala é a janela da Kunéria para o mundo. Sempre há algum navio da Zanzídia atracando ali. Dizem que sua cidade é muito bonita.

— De fato. Eu devo confessar que não imaginava que a Kunéria fosse bonita assim. Mal dá para crer ano passado o país estava em guerra.

— O norte do país foi mais afetado nessa última guerra. Trascala fica longe o bastante e assim não sofre muito com os conflitos. Mas tivemos nossas perdas...

— Vocês também lutaram?

— Muitos de minha cidade se alistaram por vontade própria, alguns foram convocados. Destes, muito poucos retornaram. Eu perdi um primo e muitos amigos. A guerra é uma coisa desagradável.

— Certamente. Sabe, eu não imaginava que pudesse ser bem recebido por aqui.

— Você é um estrangeiro de modos peculiares, tlav Daman. É como se já tivesse morado aqui, conhecesse muitos de nossos costumes.

— Estudei sobre eles — mentiu Kurdis. A verdade é que se Guank não estivesse traduzindo e explicando tudo para ele, o tempo todo, nunca conseguiria se relacionar com os kunérios.

— Bem, Nink'jin fica logo ali, além daquela colina. Eu imaginei que chegaríamos mais tarde, quando vi que usava uma bengala. Mas parece que essa sua bengala aí está mais para um bastão de trilha...

— Verdade... Eu uso a bengala apenas para parecer mais velho. Na verdade, não sou tão velho quanto pareço.

— Por que isso?

— As pessoas tendem a não ligar muito para os velhos. Não vão me ver como uma ameaça... Acho que isso pode não fazer muito sentido.

— É uma lógica estranha... Não vou dizer que a compreendo.

Após superarem a colina, viram um grande lago ao sul. A trilha ia em sua direção. Perto do lago, e na base das montanhas, puderam avistar o vilarejo. O primeiro dia de viagem, estava chegando ao fim.

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