42. Adaptação

Com Yargen Tannis e Djista mortos, Kurdis perdeu todo interesse por Dera. Os eventos daquela noite, levaram à queda do regime monárquico. Muitos dos nobres mais importantes de Dera morreram no incêndio do tribunal e o príncipe Renkiou desapareceu sendo dado como morto.

Kurdis, precisou reunir suas economias, abandonar o trabalho na biblioteca e se esconder numa hospedaria do Bairro da Enseada Funda. Naquele bairro, um pouco afastado da região central de Dera, viviam muitos artesãos que trabalhavam com couro. A produção era exportada, ou vendida nos mercados da região central. Kurdis encomendou uma capa de couro para sua foice e uma mochila na qual podia amarrar o item devidamente encapado. Também mandou fazer um par de botas, roupas reforçadas com couro e comprou uma capa encerada para se proteger das chuvas.

Depois que a foice saciou sua sede de sangue, Kurdis recuperou suas plenas faculdades mentais. Até mesmo aquela voz sussurrante lhe deu uma trégua. Nas noites, tentava não pensar em Djista e quando não conseguia, bebia vinho para embalar o sono.

Não puxava assunto com ninguém, mas escutava as conversas no restaurante que frequentava para jantar. Dali, sem se envolver, Kurdis acompanhou as notícias do surgimento de um novo regime de governo baseado numa assembleia popular, seguindo as ideias do manifesto de Clinde Jor.

O governo da assembleia foi caótico e funcionou por poucos dias... Veio um golpe, dentro do golpe, e Tormen Varuingo dissolveu a assembleia e instituiu um conselho formado pelas casas comerciais e presidido por ele próprio, agora autointitulado governador de Dera.

Antes que as mudanças completassem um mês, Kurdis partiu de Dera num navio capitaneado por Kravel.

Kurdis olhou para bandeirola verde e branca no alto do mastro. — Vejo que a bandeira dos Tannis continua flamulando nesta nau. — Kurdis observou. O Rainha Lucca zarpava de Dera, ainda navegando nas águas calmas da enseada, por dentro da Boca.

— Sim, senhor Hidenar... — Kravel respondeu.

— Quem está à frente dos negócios?

— A Senhora Auranir, viúva de Jargen. Diga-me senhor, tem ideia de como ele morreu?

Será que devo falar? Melhor deixar esse assunto enterrado...

— Eu diria que enterrado por sua própria ambição.

— Ouvi dizer que o senhor foi visto com ele, no dia do levante — Kravel desviou de Kurdis os olhos, cor de carvão, para acenar para outro navio da casa comercial. Ali, na enseada, a quantidade de navegantes era imensa, justificando a alcunha de Dera, Cidade dos Mil Barcos.

— Sim, estive com ele. Diga-me Kravel, o quanto você realmente sabia das atividades de seu senhor? Quanto aos desaparecimento dos navios dos Varuingos, por exemplo?

Kravel coçou a barba grisalha e uma sombra tomou conta de sua expressão — Sei de tudo. Sei de seu envolvimento. Soube até da falta de misericórdia do mestre Tannis. Ele mesmo me contou isso um dia, após beber demais. Mas não com remorso... Ele...

— Era uma pessoa cruel.

Kravel encolheu os ombros. — É... Isto mesmo! Mas agora, temos uma mestra mais misericordiosa.

— E ela vai conseguir manter a casa?

— Ah, a casa Tannis não será forte como foi... Todos têm que baixar a cabeça para os Varuingos. Os acordos que ela fez não foram exatamente lucrativos, mas ao menos vão garantir a sobrevivência da casa. A maioria dos lucros agora vai direto para o governador.

— E não era assim, com o rei?

— O rei cobrava menos impostos... Não é irônico?

— Pior que isso...

— Pois é, aquela loucura... Os nobres queimados... Algumas pessoas cantaram hinos de liberdade, mas eu só vejo as coisas piorando.

— É... parece que muitas vezes é isso que acontece. Só espero que você não tenha decidido me vender para os Maihari.

— Eu não faria isso com um amigo, mas sabe eu diria que você teve sorte... Soube que os feiticeiros de Kedpir estavam querendo seu pescoço, mas foi ordenado que recuassem.

— É mesmo? Eu não sabia disso.

— Gustapo viu tudo e me contou.

— O que aconteceu?

— Estavam formando um grupo para caçá-lo, depois que um deles foi encontrado morto. Entretanto, a feiticeira, Eriana, ordenou retirada imediata. Sabe, há rumores de que ela tenha salvado o jovem príncipe. Se foi isto mesmo que ocorreu, me parece que você deve sua vida a ele.

Kurdis ficou sob a sombra da grande ponte. Assim que passaram pelo arco central da Boca, o navio começou a jogar mais.

Como detesto viajar de navio!

— Se você está dizendo... Deve ter sido isso.

— Então, agora, pretende se esconder na Kunéria... Não seria melhor ir para a Zanzídia? — Kravel apertou os olhos, observando Kurdis com antenção.

— Não sei explicar, mas sinto uma atração irresistível por conhecer aquele país.

— Tem certeza? Não são inimigos de seu povo?

— Isto, sim, mas não me vejo mais como kedpirense. Aquelas terras nunca mais serão o meu lar. Além disso, eu acredito que posso perfeitamente prosperar na Kunéria sem ser incomodado pelos Maihari.

— Espero que esteja certo.

Ficaram em silêncio por alguns momentos e então Kravel tocou em seu braço — Você está bem?

— Não... É o enjoo... Já começa a tomar conta de mim.

— Vá descansar. Ainda teremos muitos dias de navegação até chegar em Trascala.

***

O Rainha Lucca chegou em Trascala, um dos portos mais movimentados da Kunéria. O enjoo constante, deixou Kurdis mais fraco. Sua mente agora estava atormentada, a foice o convidava a saciar sua sede. A voz sussurrante voltou a assombrá-lo. Mas quando desembarcou e descobriu que praticamente ninguém na Kunéria sabia falar idiomas estrangeiros, a voz sussurrante tornou-se muito útil.

A primeira coisa que fez após se despedir de Kravel, foi procurar uma estalagem. A senhora de meia-idade, pequena, de nariz arrebitado, usando um vestido verde, balançava a cabeça para Kurdis.

— Noo tapan gulok ni tlavin!

"Ela disse que não quer estrangeiros na estalagem"

O que devo fazer?

"Diga que Jukan pune até mesmo que deixa um cão dormir ao relento... Repita comigo..."

— Jukan nihan'tu kopon pas nehun'te ba — a pronúncia de Kurdis era sofrível, mas foi suficiente para a senhora entender.

— Yut! Keban'tla! — ela estendeu a mão espalmada na direção dele.

"Ela quer o pagamento adiantado."

Kurdis colocou uma serpe de prata na mão dela e ela o admitiu.

O tom de pele e as feições de Kurdis não deixavam dúvidas de ser um estrangeiro ali na Kunéria. Logo descobriu que os kunérios não recebiam bem estrangeiros e que teria dificuldades de se fixar naquele país. Era seu terceiro dia ali e ele começava a pensar na Zanzídia como melhor alternativa de sobrevivência.

"Não segure a colher assim! É impolido!"

A voz corrigia as ações de Kurdis o dia inteiro. Aquilo estava sendo bastante irritante.

O que importa o modo que eu seguro uma colher? Me dê um tempo!

"Se quiser ser aceito por aqui, terá de aprender os costumes, Daman. Deixe de ser preguiçoso! Observe como aquele homem bebe sua sopa e faça igual."

Eu não sou preguiçoso!

A dona da estalagem, Chian, retirou o prato de sopa vazio e colocou um pequeno pote com frutas secas. Foi a primeira vez que ela fez isso. Nos outros dias, ele apenas tomou a sopa e depois saiu, sem ganhar a sobremesa.

— Obrigado, dona Chian — disse Kurdis no seu kunério arranhado.

"Já não lhe expliquei isso? Peça desculpas e se retrate!"

Que etiqueta infernal!

— Perdão! Quis dizer senhora Chian — Kurdis fez o que a voz pediu. Estava tendo dificuldades com as formas de tratamento. Havia muitas varições, no caso, era apropriado chamá-la de 'kan' Chian, pois ela era viúva, e não 'dan' Chian, que seria apropriado para uma senhora casada. Se fosse solteira e de idade maior, seria um tratamento, solteira e jovem, outro.

— Você é até educado para um estrangeiro — Chian sorriu para ele.

— Saberia me indicar um guia para me levar até a Torre Prístina?

— Guia? Ah, sim... Temos um bom guia. Procure jun Huon, na casa de cavalos.

— Obrigado, kan Chian.

Kurdis equipou-se com sua mochila, capa, prendeu a foice embalada na mochila. Ao tocar a arma, mesmo dentro da capa, sentia calafrios. Seus dedos ficavam gelados, como se estivesse segurando pedras de gelo. Aquela sensação gelada só desaparecia quando a lâmina da foice bebia sangue. Para finalizar, Kurdis pegou sua bengala. Mesmo antes de sair de Dera, pegou uma pequena vara abandonada num jardim. Era nodosa e grossa numa ponta e fina na outra.

Na ocasião, testou a condutividade para magia. Era limitada, mas serviria para casos de emergência. Solicitara a um marceneiro para esculpir a madeira na forma de uma bengala. O objeto final tinha aparência rústica, mas o marceneiro conseguiu esculpir uma bela cabeça de dragão na manopla, o que deu um certo charme ao objeto.

Kurdis se apoiava levemente na bengala e às vezes se lembrava de fingir um passo claudicante... E outras ocasiões se esquecia, mas vinha se habituando estar sempre cutucando o solo com a bengala.

Kurdis convocou uma magia para aliviar as dores das bolhas nos pés. A bota recém-adquirida ainda não havia amolecido com o uso. Aprendera o truque com um colega, durante a guerra. Não curava as bolhas, mas aliviava as dores. A magia teve efeito limitado.

Aquele cajado que Jargen me forneceu era muito melhor que essa porcaria de bengala... Ficou enterrado com aquele maldito no subsolo do tribunal.

"Você chamaria muita atenção andando por aí com um cajado, Daman. Contente-se com o que tem!"

Você poderia me deixar em paz por ao menos cinco minutos?

"Você reclama demais, Daman. E é um ingrato! Eu estou aqui, te ajudando o tempo todo, e você não me agradeceu uma vez, sequer."

Obrigado! Obrigado por infernizar minha mente com sua falação, o dia inteiro!

"É um prazer!"

Kurdis andava pelo calçamento da avenida. O canteiro central tinha árvores altas e de copas frondosas que faziam sombra, protegendo-o do sol do meio-dia. A arquitetura das casas, todas construídas com madeira, era outro aspecto de chamava a atenção do kedpirense. O estado de conservação da maioria das construções era ótimo. Aquele zelo e beleza da cidade contrastava com as noções preconceituosas que Kurdis carregava consigo.

Para os kedpirenses, os kunes eram um povo selvagem, desordeiro e moralmente depravado. O que viu em poucos dias ali era um cenário muito diferente. Talvez a poligamia, parte da cultura daquele reino, fosse um dos motivos do preconceito. Outro era que homens e mulheres podiam se relacionar e se casar. Em Kedpir, isso era praticamente um crime. De fato, Kurdis observou em mais de uma ocasião casais homossexuais andando de mãos dadas na rua e demonstrando afeto. Isso o deixou desconfortável, pois os casais kedpirenses não tinham o costume de demonstrar qualquer afeto em público.

"A casa de cavalos é a direita. Ande logo, deixe de ser mole. Parece até que nunca viu uma cidade antes! Você precisa chegar logo na Torre Pristina."

Afinal, o que quer comigo? Por que insiste nesse assunto da Torre Prístina?

"Já lhe expliquei, miolo mole! Se quiser viver aqui na Kunéria, terá que se apresentar aos Wux'shien. Somente eles poderão acolher um feiticeiro desertor e convertê-lo num membro útil para o reino."

Não explicou nada! Apenas disse eu precisava ver esses vucsen para viver na Kunéria.

"E não foi isso que acabei de dizer?"

Ah, esquece!

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