37. A foice sombria
Kurdis ajeitou-se no assento acolchoado, como se fosse feito de espinhos. Estava apreensivo... A situação era desconfortável, já o assento, perfeitamente macio. A sala de espera era tão grande quanto o salão da casa de Jargen Tannis.
Esse jantar! É mais uma jogada suja de Jargen, posso farejar! O que o maldito pretende com isso?
Kurdis olhou para o alto, o lustre com centenas de peças de cristal era uma das peças mais magníficas que já vira. Aliás, tudo ali naquele palacete era fabuloso. O Duque de Corbal parecia ter mais riqueza e luxo do que o rei de Kedpir.
Por que fui trazido a este lugar? Um evento público! E se algum shirogue aparecer aqui?
Passos tiraram a atenção de Kurdis da mobília requintada, afrescos e decorações do salão. Ele reconheceu um rosto familiar. Levantou-se para cumprimentá-lo.
— Senhor Clinde Jor, como vai?
O homem magro sorriu, exibindo a peça de metal reluzente que substituía um dos incisivos superiores. Os cabelos loiros estavam bem penteados e vestia um traje cinzento luxuoso e imponte, com rendas brancas. A casaca estava presa por um largo cinturão azul.
— Estou muito bem, senhor Hidenar. Aproveitou seu tempo na biblioteca para aprender sobre a nossa história?
— Um pouco, acredito... — Kurdis trocava o peso entre os pés para aliviar a ansiedade.
— Jargen está lá dentro com o Duque, não é mesmo?
Kurdis confirmou com um aceno.
Clinde se sentou sendo seguido pelo kedpirense. Ele disse num volume reduzido:
— As coisas estão movimentadas na cidade! Dizem que o rei não passa desta semana. O infante príncipe Renkiou é jovem demais para assumir o trono...
— E o que vai acontecer?
— Dera irá precisar de um regente... Se o povo apenas soubesse de seu poder... Mas estão todos condicionados a seguir o líder, seja ele bom ou ruim.
— De fato. Acredita que o Duque de Corbal será esse regente?
— É possível... — Clide ergueu as sobrancelhas e suspirou.
— A casa Tannis vai apoiá-lo?
Clinde Jor esticou o bigode fino fazendo pinça com os dedos e deu com os ombros — Não tenho a menor ideia, senhor Hidenar.
— Por que fui trazido aqui hoje?
— Vejo que Jargen não lhe disse... Tampouco eu sei. Mas tenho minhas suspeitas...
— O que...
Kurdis foi interrompido pela abertura do portão duplo que dava para ao salão principal. Dois guardas se posicionaram, a cada lado do portão. Jargen saiu de lá dando passos ligeiros e excitados.
— Clinde, Hidenar... Venham, o duque deseja vê-los.
Kurdis entrou no salão observando como era espaçoso. Havia pelo menos uma dúzia de janelas de cada lado. Ao fundo, um tablado estava sendo ocupado por músicos que retiravam seus instrumentos de suas caixas. No centro do salão, uma imensa mesa em u já estava preparada com centenas de pratos, talheres, copos e taças de cristal. Criados uniformizados zanzavam de um lado a outro, finalizando os preparativos. Jergen, Clinde e Kurdis tinham chegado antes do horário do jantar.
O duque conversava o chefe dos criados, mas logo o dispensou para conhecer os dois visitantes. Era um homem que aparentava sessenta anos, estatura mediana, elegante, a despeito da barriga um pouco protuberante. A barba e cabelos brancos eram ligeiramente encrespados, o nariz curvo e protuberante se destacava em sua face. Seus trajes de gala eram bastante vistosos, combinando uma casaca vermelha, bordados dourados, calças brancas e meias altas até os joelhos. Abriu um sorriso polido para receber os convidados.
— Este é Clinde Jor, estudioso e renomado tutor.
Clinde fez uma mesura exagerada e disse — Encantado em conhecê-lo, vossa alteza.
— Sua reputação o precede, senhor Jor. É o tutor da neta da Duquesa Cristara.
— Sim, vossa alteza. Tenho essa honra.
— E este é o kedpirense de quem lhe falei: senhor Hidenar Toluco.
Kurdis tentou imitar a vênia realizada por Clinde o melhor que pode.
— É um privilégio conhecê-lo, vossa alteza.
— Ah, senhor Toluco. Não vejo a hora de saber sua opinião.
Opinião? Mas que conversa é essa?
Antes que Kudis pudesse falar algo, Yargen sugeriu:
— Temos tempo ainda, antes do jantar, não é mesmo? Será que podemos ver as peças, meu nobre Duque?
— Perfeitamente, Sr. Tannis. Por aqui, por favor.
O Duque de Corbal indicou o caminho. Atravessaram o salão, cruzando com criados, indo e vindo. Os músicos começavam a fazer os primeiros sons de seus instrumentos, afinando-os fazendo pequenos exercícios de aquecimento.
Ao fundo, cruzaram uma dos três portões que levava a uma sala onde se via uma escadaria ascendente. Seguiram o duque, que foi adiantando o assunto.
— Finalmente minha peça mais nova já está exposta. Estive muito ocupado, e não pude cuidar disso antes, sabem como é... O dever vem primeiro e depois, a diversão.
Jargen concordou — O dever acima de tudo!
— Estão aguçando minha curiosidade — disse Clinde.
— Por aqui — o duque indicou uma das portas do longo corredor, no segundo pavimento.
O salão era longo como uma galeria. Estava parcialmente iluminado, mas era possível perceber que havia duzias de nichos, armários, pedestais onde dezenas de objetos estavam expostos.
— Senhores, aqui guardo parte de minha coleção. Como devem saber, tenho um interesse especial em objetos históricos de povos de todo o mundo. Aqui está minha mais nova aquisição. — O duque mostrou um manequim vestido numa antiga armadura cujo estilo Kurdis não pode identificar, na verdade, nem mesmo deu atenção a ela. Seus olhos ficaram vidrados na foice de guerra, cuja lâmina de metal escuro parecia absorver boa parte a luz ambiente.
Jargen bateu palmas — É um objeto magnífico! Minha casa teve a honra de negociar a sua venda.
— Eu lhe agradeço por isso, Sr. Tannis.
— Então, senhor Toluco. Como especialista em relíquias místicas antigas, o que tem a dizer?
Kurdis se aproximou da foice. Uma lambida gelada subiu da base de sua espinha até o topo da cabeça.
— Vejo que vossa alteza adquiriu um item muito raro. Deve ter custado uma fortuna!
— Ah, essa é a vantagem de ser rico, meu caro. Mas o que tem a me dizer? É uma autêntica matadora de dragões forjada pelos magiares?
— Sem dúvida! Já vi alguns desses itens em Kedpir. São coisas perigosas, devo dizer.
— Sim, conheço algumas lendas, mas tenho certeza que em minha coleção, essa arma não irá oferecer perigo a ninguém.
Clinde encontrou uma deixa para falar — Quando o Deus-Dragão, dominou toda a humanidade, a ordem dos magiares, desesperada, recorreu à magia sombria e às forças inomináveis do abismo para forjar essas armas.
— Oh, sim. — assentiu o Duque de Corbal encarando a lâmina da foice — Adoro particularmente a lenda de Quillen. Ele usou a infame Vortumbra para matar o braço direito do Deus-Dragão, o terrível Tarmagu'Orkan.
— Essa arma foi vista pela última vez em Kedpir, há centenas de anos. Eu não duvidaria e ela estivesse em posse da Ordem Maihari.
— E quanto à foice, já pesquisei, mas ainda não encontrei informações a seu respeito.
— Sei tudo sobre sua procedência — Kurdis revelou — Um guldo orientado pelo próprio Grão-Mestre dos Maihari confrontou um demônio que o exército da kunéria trouxe ao território de Kedpir. Ele derrotou a criatura e se apossou da foice.
— Como sabe disso? — o duque indagou, interessado.
— Eu conheci este guldo, seu nome era Kurdis Le'Daman. Ele também derrotou o feiticeiro Carc'limar com essa foice. Não sei os detalhes, mas devido à força sombria do artefato, ele acabou sendo caçado pelos Maihari e teve que fugir de Kedpir. Isso não faz muito tempo.
— Incrível!
— Mas e o nome da arma? Sabe algo a respeito?
Kurdis encolheu os ombros, mas antes de dizer algo, Clinde Jor falou.
— Ah, já li a respeito dessa arma. Acredito que seja a Da'akuvacula. A arma que pertenceu a Gorc'lamat, guerreiro que unificou as tribos da kunéria, após a morte do Deus-Dragão. Seu filho, Qorg'lamat, foi o primeiro rei da kunéria. A Da'akuvacula também era conhecida como ceifadora de dragões e teria sido empunhada pelo feiticeiro Nuogren durante a guerra dracônica. O fato de surgir em tempos recentes nas mãos de um demônio aliado do povo kunério, sugere fortemente que essa arma seja mesmo a Da'akuvacula.
— Incrível! Então estou olhando para a arma usada pelo unificador da kunéria? Quem diria? Sim, me custou uma fortuna, mas agora, sinto que até foi barata demais! — o duque segurou a barriga avantajada ao deixar soar uma pomposa gargalhada.
— Muito interessante, seu relato, senhor Clinde Jor! — Kurdis estava impressionado — É possível deduzir que a arma esteve com os kunes, digo, kunérios, por muitas gerações e pode ter sido usada para formalizar um pacto com demônios. Certamente os kunérios estavam sedentos de vingança contra Kedpir para tomar medidas tão extremas...
— Por todos os velhos e novos deuses, Sr. Tannis. Devo confessar que estou surpreso! Não só o senhor trouxe esse item para minha coleção, como agora me trouxe pessoas capazes de traçar sua história, antiga e recente! Isso só pode ser um bom sinal! Já estou bem mais motivado quanto aos resultados desse jantar. Parece que os deuses estão sorrindo para mim, esta noite!
Eu não ficaria tão animado! Essa porcaria de foice só traz desgraça àquelas que a possuem. Que fiste o proteja...
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