34. Proteção

Desde que retornou de sua primeira missão sangrenta em nome de Jargen Tannis, Kurdis retomou a rotina na biblioteca como Hidenar Toluco. Mas em muitos momentos, sua mente viajava dos textos a traduzir para os ecos que ainda ouvia em sua mente.

— Misericórdia!

— Não me mate!

Os dias que passou fora faziam com que o velho Gando cobrasse concentração e produtividade.

— Você não está sendo pago para ficar olhando para o teto, senhor Toluco! Quero ver essa pena arranhando o papel!

— Me desculpe...

A bronca ajudou Kurdis a concentrar-se no texto e logo se viu traduzindo novamente. Quando entrava no fluxo de produção, relaxava. Traduzir, que antes era um pouco enfadonho, agora se configurava como os melhores momentos de seu dia. Momentos em que sua mente conseguia descansar.

— Senhor Gando, peço permissão para terminar um pouco mais cedo hoje. Ainda não estou recuperado de minha recente viagem.

— Posso ver isso. Vá, Toluco. Descanse.

— Obrigado, senhor!

— Temos um prazo a cumprir, espero que possa compensar seu atraso nos próximos dias.

— Farei o meu melhor.

Kurdis desceu, mas não saiu para a rua. Ficou observando o lado de fora por uma das janelas do primeiro pavimento.

Não vejo nenhum dos homens de Jargen. Ainda não chegaram.

Kurdis saiu apressado e desceu a ladeira para o lado oposto da hospedaria. Sua face e cabelos estavam cobertos pelo capuz de seu manto. Com sorte, não cruzaria com homens de Jargen, especialmente seguindo pelas ruas de menor movimento. Assim que chegou ao canal central, desceu para pegar uma embarcação.

Tenho que chegar rápido. Com sorte, estarei de volta à hospedaria perto da hora prevista.

— Vou ficar perto do castelinho.

— Muito bem — informou o barqueiro. Havia mais algumas pessoas embarcando ali.

Kurdis tomou um lugar e ficou sentado de cabeça baixa em todo percurso. Não se atrevia a olhar para os lados e não queria mostrar seu rosto.

— Castelinho! — informou o barqueiro.

Kurdis agradeceu e desceu, seguiu pela rua por um quarteirão apenas e pegou um daqueles becos para chegar mais depressa na hospedaria da tia Darusca. Cruzou com um pequeno bando de morvins que fugiram quando chegou perto. Aquilo chegou a produzir um calafrio em sua espinha, pelas lembranças do ataque que sofreu nas imediações por um dos membros do Véu Cinzento.

Lugar mais sombrio!

Quando saiu do beco e avistou a hospedaria, suspirou aliviado. Seguiu a passos rápidos. A velha estava sentada na entrada, com a cabeça pendendo para trás e roncando. Kurdis passou por ela, tomando cuidado para não pisar em nenhuma madeira solta.

Passou pela porta cortinada e chegou à sala onde funcionava a administração. Estava vazia. Seguiu passando dali para os fundos. Dali vinha um cheiro mais denso de sujeira acumulada. As águas atrás da hospedaria ficavam mais paradas e fétidas.

— Posso ajudá-lo? — veio uma voz feminina, conhecida para Kurdis. Ele deu um pequeno salto para trás e virou-se para encarar Djista, do outro lado. Seu olhar parecia um pouco mais cansado, mas fora isso, era a mesma mulher, vestindo o mesmo vestido cinzento e lenço sobre a cabeça.

Kurdis baixou o capuz e olhou-a nos olhos por uns instantes. Ela não o reconheceu, naturalmente. Tinha cabelos brancos, pele morena, olhos ambar muito claros... E mesmo suas feições originais, haviam sido alteradas pela feitiçaria de Novafiz, em Topemari.

— Está procurando por um lugar para ficar?

— Na verdade, não. Eu vim para falar com você.

Djista estreitou os olhos. O homem diante de si era um completo estranho, mas aquela voz, aquele sotaque, eram terrivelmente familiares.

— Desculpe, senhor. Mas nos conhecemos?

Kurdis deu um passo na direção da mulher.

— Sim, nos conhecemos. Mas eu mudei... Mudei muito.

Djista franziu a testa e pressionou os lábios. Deu um passo para trás e cruzou os braços.

— Eu não o conheço, senhor. O que quer de mim?

— Eu tinha esperanças de que pudesse se lembrar de mim, mas acho que foi tolice minha. Eu peço desculpas pelo incômodo... Eu já vou indo...

Eu sou mesmo um imbecil! O que estou fazendo?

Kurdis deu as costas, mas sentiu a mão da mulher tocar seu ombro.

— Espere... Kurdish... É você?

Ele se virou, sem conseguir esconder o sorriso que se expandiu em seu rosto.

— Você se lembrou de mim!

— Mas como? Está tão diferente! O que é isso? Uma ilusão? Um disfarce?

— Sim... Um pouco de cada. Como eu lhe disse, minha vida é muito complicada.

— Onde você esteve todo esse tempo?

Kurdis olhou em volta, pessoas do outro lado da rua, ou nas janelas próximas poderiam avistá-los ali, juntos.

— Será que podemos conversar num lugar reservado?

— Sim, vamos entrar. Sente-se ali.

A sala de administração, nos fundos da hospedaria, tinha uma janela grande, mas Djista puxou um cortinado para dar maior privacidade.

Ela se sentou do outro lado do balcão, apoiou os cotovelos sobre o tablado desgastado e apoiou o queixo nas mãos cruzadas.

— Estou ouvindo...

Kurdis passou as mãos na cabeleira branca e coçou o couro cabeludo.

— A verdade... A verdade é que sou um feiticeiro foragido de Kedpir.

— Ah, eu suspeitava disso.

— Mas agora, talvez, esteja numa situação pior. Eu acabei caindo numa armadilha. Estou sendo obrigado a trabalhar para um homem poderoso... Melhor eu não dizer quem é...

— Está trabalhando para os Tannis, não é mesmo?

Kurdis encolheu os ombros.

— Bem, você esteve trabalhando para eles desde que chegou aqui. Eu perguntei ao Gustapo a seu respeito... As desculpas que ele ofereceu, não me convenceram.

— Me desculpe...

— Qual seu nome verdadeiro?

— É Kurdis, mas soa melhor com os esses chiados do seu deravo.

— Por que voltou aqui?

Kurdis baixou os olhos e a cabeça. Ficou olhando para o chão esburacado do assoalho.

— Estou preocupado contigo.

— Por quê? Eu sei me cuidar muito bem!

— O Sr. Tannis ameaçou ferir você... Caso eu decida não obedecê-lo.

— Me ferir? Mas por quê?

Kurdis ergeu o olhar. Suas mãos tremiam, os lábios também. — Ele acha que eu... Que eu tenho... Sentimentos por você.

Djista pressionou os lábios e não conseguiu dizer nada. Fechou os olhos. Era difícil olhar para aquele estranho e acreditar que ele era o Kurdish que tinha conhecido.

Kurdis ficou de pé num sobressalto e tocou as mãos de Djista.

— E ele tem razão! Eu nunca consegui esquecê-la, Djista.

A mulher puxou as mãos.

— O que você espera de mim? Por que veio aqui?

— Eu quero te proteger!

— Proteger? Jargen Tannis é um maldito açougueiro e você está apontando o cutelo dele para o meu pescoço! Como espera poder me proteger, Kurdish?

— Eu... eu não sei. Pensei que talvez você pudesse viajar para longe...

— Não posso abandoar minha mãe, meus irmãos. Eles dependem de mim, sabia?

— Me desculpe, eu não queria prejudicá-la.

— Você devia ter ficado longe de mim! Longe de mim, desde o princípio! Como você pode, Kurdish?

— Eu não pretendia... Me desculpe... Eu não sabia que isso...

— Vá embora daqui! Vá embora e obedeça aquele maldito Tannis! Apenas faça isso!

— Acalme-se... Eu vou... Mas se quiser falar comigo, eu estou morando na hospedaria Galo Dourado, na rua Chilran.

— Não quero saber onde você mora, Kurdish. Só me deixe em paz!

— Escute, Djista. Eu entendo que esteja zangada comigo. Mas eu juro, vou dar um jeito de resolver essa questão. O Sr. Tannis tem confiança demais em sua fortuna, sua organização, mas ele não é imbatível. Eu vou resolver o problema, vou protegê-la a qualquer custo!

— Eu não quero sua proteção! Eu só quero que você suma da minha vida! De uma vez por todas!

— Esse velho está incomodando você, irmã? — o Touro saltou para dentro da sala com uma das mãos sobre o cabo de sua espada. O guarda vestia armadura, acabava de chegar em casa vindo do serviço.

— Por favor, mostre a saída para ele, irmão.

Kurdis ficou de pé e foi empurrado pelo Touro até a saída da hospedaria. Assim que saíram, ele desembainhou a espada.

— Se incomodar minha irmã, mais uma vez, velho. Vai conhecer a mordida da minha espada.

— Desculpe, já vou indo. Não vou incomodar novamente.

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