33. Massacre
Kurdis segurou seu cajado sentindo as mãos esquentar.
Não será difícil atear fogo naquelas velas, mesmo desta distância!
Antes de lançar o feitiço viu duas crianças brincando e gritando no alto da popa do navio.
Crianças?
— Não posso... Veja: crianças!
— Não me venha com essa agora mago! Cumpra seu dever! Sou eu o agente da morte, você apenas um instrumento.
— Não vou matar inocentes! Vocês e seus amigos falam de abusos da monarquia, mas veja essa situação!
— Ora! Faça o que estou mandando...
— Não vou obedecer... Eu poderia matá-lo, facilmente, sabia?
— Ah, sim. E o que acha que minha amiga Chirram faria com você nesse caso?
— Eu posso simplesmente desobedecer.
— Eu posso simplesmente mandar esfolar aquela mulher, Djista, salgá-la e atirar aos tubarões.
— Como? — Kurdis baixou o cajado, incrédulo.
Ele sabe sobre ela?
A simples menção de algo de mau sendo feito à mulher fez seu estômago pesar e girar.
— Eu sei tudo a seu respeito, meu caro. Você vai me obedecer...
— Ao menos poupe as crianças...
— Muito bem, poderíamos fazer isso. Mas como?
— Eu darei um jeito...
Como posso resolver isso? Romper com esse maldito vai trazer consequências imprevisíveis. Minha situação é complicada. Essa é uma situação impossível! Só há um jeito...
Kurdis ergueu o cajado resoluto e fixou o olhar nas velas do navio. Vários pontos escuros foram sem formando até que elas irromperam em chamas. A tripulação do navio ficou muito agitada. Kurdis acelerou o caminho do fogo das velas para o cordame e mastros, como se com sua magia atirasse óleo nas partes mais inflamáveis da embarcação, fez o incêndio se alastrar.
— Excelente! — Jargen sorriu expressando uma satisfação sádica e vingativa. Deixou escapar para si entredentes — Queimem, Varuingos! Queimem!
Com o navio incendiado, Kurdis voltou sua atenção para as crianças. Um pedaço de vela em chamas caiu sobre uma delas, que chorava em desespero.
Não se preocupe, pequeno, vou dar um jeito!
Ela se desvencilhou daquilo, colocando as mãos sobre as chamas, sentindo apenas um leve calor. Estava sendo protegido pela magia de Kurdis. Àquela altura, a tripulação já desistia de controlar o incêndio. Dois esquifes foram lançados no mar, dezenas de homens se mergulhavam em todas as direções. Ratos também abandonavam o navio às dezenas.
Jargen apontou para os fugitivos — Os esquifes, fogo neles!
Kurdis teve dificuldades de atear fogo na madeira molhada.
— Não sei se consigo!
Jargen mergulhou. Pouco tempo depois, ele emergiu e Kurdis viu a imensa massa escura da dragonesa avançando na direção das pequenas embarcações. Duzias de homens estavam amontoados nelas, estavam pesadas, no limite de naufragar também. O navio queimava intensamente com imensas labaredas e emitia fumaça escura aos céus, fumaça escura.
— Ela não vai deixar que escapem! — Jargen disse ao escalar as bordas do esquife.
A dragonesa avançou contra o primeiro esquife. A embarcação foi atingida com um baque violento e danificada, afundou em instantes. A outra teve destino semelhante, mas muitos homens ainda nadavam nas imediações do navio em chamas, segurando-se em destroços.
— E quanto as crianças? Vão se afogar!
— Reme naquela direção, vamos apanhá-las...
Jargen se ajoelhou para acessar o compartimento na proa. Removeu a tampa e dali tirou um arco e um feixe de flechas. Exibia um sorriso malicioso.
— Hora de exterminar os ratos!
— Já destruímos o navio? Para que isso agora?
— Não podemos ter testemunhas... Isso precisa parecer um acidente.
— E as crianças?
— Vamos recolhê-las...
— Mas e depois?
— Isso é comigo, meu caro. Não se preocupe, prometo que não vou matá-las, nem lhes fazer mal.
Kurdis remou na direção dos náufragos.
Esse maldito! Como ele pode?
— Por aqui! Venham! — Jargen os chamou.
Os homens nadaram na direção do esquife, na esperança de serem resgatados. Mas assim que a corda do arco de Jargen começou a trabalhar, Kurdis tampou os ouvidos.
— Misericórdia!
— Não!
— Não me mate!
Mesmo tampando os ouvidos, Kurdis ainda pode ouvir suas súplicas, seus gritos.
Me desculpem! Eu não pretendia... Não é culpa minha! A culpa é dele, somente dele!
— Pronto! Agora reme, amigo! As crianças estão tentando escapar.
— É claro que estão!
Kurdis remou com afinco enquanto Jargen manejava o leme.
— Vamos, subam de uma vez! — ordenou o homem.
— Você matou nosso pai! Desgraçado! — gritou o garoto mais velho.
— Suba aqui garoto, prometo que não vou lhes fazer mal — disse Kurdis oferecendo a ponta do remo ao menino mais novo. Desesperado, o menino aceitou a ajuda e foi trazido a bordo. Era magro, tremia. Os cabelos escuros cobriam parte de sua face. Devia ter uns oito anos. Lívido, ele se sentou no casco da embarcação em choque.
Jargen armou o arco, apontando para o outro menino que o xingava da água.
— Vamos moleque, não teste a minha paciência! Suba de uma vez, se não vou matá-lo!
O garoto deu-se por vencido e subiu pela corda oferecida por Yargen. Também estava exausto, bufava. Tinha os cabelos loiros e curtos, olhos verdes que estavam irritados e vermelhos, aparentava ter uns 12 anos.
— Morra! — o garoto saltou como um animal selvagem sobre Kurdis. Ele tirou uma pequena lâmina da algibeira presa ao seu cinto e cravou-a no ombro do mago. Antes que pudesse dar um novo golpe, foi atingido com uma paulada de Jargen na cabeça. Seus olhos viraram e ele desmaiou.
Kurdis levou a mão ao ferimento, que ardia. Logo ficou encharcada em seu sangue.
Mas que droga!
— Há! — Jargen gargalhou — Veja o que ganhou com sua maldita misericórdia!
— Matar crianças é errado!
— Diga isso a seu povo, ou aos kunérios. Você acha que as crianças são poupadas nas suas guerras?
Maldito Jargen!
— Ficar me olhando com cara feia não vai resolver nada, meu caro.
Yargen largou o remo que usou para nocautear o garoto mais velho e inclinou-se para tocar o rosto do mais jovem. Pegou-o pelo queixo puxando sua face para cima.
— Olhe para mim, garoto.
O menino tremia, os lábios arroxeados.
— Agradeça pela sua vida a meu amigo mascarado...
Jargen espremeu o rosto do menino e ele choramingou.
— Você é mudo? Ou o quê?
— Deixe ele em paz, Jargen!
Jargen largou o menino, que baixou a cabeça colocando-a entre os joelhos.
— Papai... papai... — ele choramingou baixinho.
As entranhas de Kurdis se torceram ao ouvir o lamento do menino.
O que fui fazer? Mas que inferno!
Jargen observou o jeito que Kurdis olhava para o menino e despiu-se novamente. Virou-se e para se sentar na amurada da popa do esquife, colocando as pernas para fora e molhando os pés na água gelada.
— Sabe, devo admitir que matar crianças é um negócio desagradável. É bom saber que você se importa... É uma qualidade admirável. Então, vamos evitar as crianças em suas próximas tarefas...
Antes que Kurdis respondesse qualquer coisa, ele entrou no mar novamente.
— Sinto muito, garoto. Eu não tive escolha. Esse crápula está ameaçando uma pessoa de quem gosto... Eu não queria...
— A corda! Lance a corda! — Jargen disse emergindo sobre o lombo de Chirram.
Kurdis engoliu o choro, que estava para sair. Pegou a corda com uma das mãos e a lançou para Jargen. Os olhos da dragonesa fixaram-se profundamente em Kurdis. Os pensamentos dela penetraram em sua mente, fazendo-a pinicar.
Você sente remorso agora, pequenino? Mas quantas mortes você já não carrega em sua alma?
Eu... eu não sei... muitas...
Você não é diferente do meu Jargen, pequenino. Posso ver isso fundo em sua mente. O seu caminho começou quando matou seu tutor, não é mesmo? Aquela morte, por acaso, lhe causou algum remorso?
Ele era...
Eu sei o que ele era. Mas já pensou se ele tinha família? Ele era, como você e Jargen, apenas um bicho-homem, um refém das paixões. No passado, meu povo tentou ajudá-los, mas de que isso adiantou?
Eu não sei... Me diga.
Você conhece a história. E agora, você está diante de uma sombra. Uma sombra que cresce dentro de você. Uma sombra que poderá ser ainda maior que a de Jargen. Se você não lutar contra ela, vai certamente tomar conta.
Por que você não seu preocupa com o seu Jargen?
Ele é só um refém de suas paixões. Um bicho homem com quem me acostumei, mas não me iludo, logo suas paixões irão cobrar o preço. Sua ambição e ações não ficarão sem resposta. Seja em grandes ou pequenas guerras, o bicho-homem está destinado a destruir-se, mutuamente. Meu Jargen é ardiloso, ambicioso e rico, certamente sua ambição irá cobrar o preço... O sol vai descer no horizonte antes que possa causar qualquer mal além das margens desta ilha. Quanto a você pequenino, há uma chama poderosa em seu peito, capaz de fazer queimar mil navios. Uma chama que as sombras adorariam ter para si.
Você se refere à profecia de Glauvorax, não é? Eu poupei essas crianças hoje, não é mesmo? Eu tenho consciência, sei controlar minhas ações...
Sim, você tem, pequenino. Mas por quanto tempo?
— Pronto, Chirram! Pode nos levar de volta.
— É claro, meu amigo. O massacre de hoje foi satisfatório?
— Ah, não fale assim, amiga. Eu estou apenas dando o troco àqueles desgraçados. Você sabe que eles merecem...
— É claro é a sua sina... Vocês, bichos-homem, merecem suportar o sofrimento que causam, continuamente, uns aos outros.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top