30. Como um pássaro na gaiola
O salão de jantar de Jargen Tannis estava iluminado por duas centenas de velas em lustres e candelabros. Era um recinto amplo e luxuoso cheio de pinturas e esculturas. A mesa era enorme, mas apenas uns poucos convidados estavam ali sentados, entre eles, Kurdis logo reconheceu o Ribas com seus cabelos sebosos e roupa colorida, contrastando com o traje cinzento e sóbrio de Kravel que tinha a barba grisalha bem feita e cabelos bem penteados. Havia um cheiro delicioso no ar e Kurdis logo salivou.
Esse lugar daria inveja no próprio rei de Kedpir.
Ribas, incrivelmente, estava bastante quieto comendo devagar ao ouvir a conversa de Jargen e duas outras pessoas que Kurdis não conhecia. Uma delas, era uma mulher madura. Seus cabelos pretos brilhavam como os do Ribas e estavam presos num coque. Usava um elegante vestido verde e seu o colo estava coberto de vistosas joias. Ela estava muito interessada na conversa do outro homem, um loiro vestido de azul. Demorou um pouco até que dessem atenção à chegada de Gustapo e Kurdis.
— Ora, Gustapo! Finalmente me trouxe o nosso amigo, senhor Hidenar.
Jargen usava um pouco de maquiagem para disfarçar as olheiras.
Kurdis corou ao observar como todos estavam bem vestidos e ele não. Mas como sua pele agora tinha uma tonalidade mais escura, não era fácil que notassem.
— Venha, senhor, sente-se aqui. — um criado logo puxou a cadeira indicada pelo anfitrião.
— Esta aqui é minha esposa, Auranir. Este aqui é meu amigo, Clinde Jor e o senhor já conhece Kravel e o Ribas, não é mesmo? — Jargen deu uma piscadela para Kurdis.
— É um prazer conhecê-los.
— Este é o tradutor sobre quem lhes falei, senhor Hidenar Taluco, um filho de Kedpir.
Kurdis estava embaraçado e faminto. Não conseguiu resistir em dar uma boa olhada nas travessas com comida.
— Sirva-o, meu rapaz — Jargen acenou para o criado. — O senhor vai apreciar a comida da Palmeni.
— É verdade — disse Auranir com sua voz dura e potente — temos uma das melhores cozinheiras do reino.
— Obrigado.
— Coma, fique a vontade.
Quando Kurdis olhou para o outro lado, notou que Gustapo havia sumido.
— Continue, meu caro Clinde. — pediu Jargen.
O homem magro, de cabelos loiros e bigode fino estava sentado do lado esquerdo de Jargen, que ocupava a cabeceira. Clinde usava um casaco azul e gravata de rendas brancas. Ele sorriu e Kurdis pensou ver um pedaço comida em um dente, mas logo percebeu ser uma peça de metal.
— Onde eu estava mesmo?
— A garota na gaiola... — disse Auranir, animada.
— Isto mesmo! O rei da Kunéria mantinha uma jovem linda presa numa gaiola, ao lado de seu trono. A cativa usava uma roupa justa coberta de penas vermelhas, rubis e pérolas. Chamava ela de passarinho e a fazia cantar para os convidados.
Clinde fez uma pausa e pressionou os lábios. — Mudam-se os reis, mas seus abusos sempre estão lá.
— O senhor concorda com meu amigo, senhor Hidenar? A realeza kedpirense comete abusos de poder?
— Por favor, apenas Hidenar. Esse caso da garota enjaulada não me surpreende. Os kunes são um povo depravado, e o exemplo vem de cima, não é mesmo? Mas não há como negar... A realeza, por vezes, abusa de sua posição.
— Verdade, senhor. Lembra-se de alguma história de abuso envolvendo a realeza de Kedpir?
— Já vi pessoas serem presas e ter seus bens confiscados apenas para atender a conveniência de um dado nobre.
Clinde era um tipo que falava com calma e sua voz firme e olhar confiante eram magnéticos.
— É... infelizmente temos que engolir muitas injustiças. Mas só agimos assim porque somos condicionados, desde crianças, a aceitar que reis são reis, súditos são súditos.
— Mas o que mais poderiam ser, se são isso que são? — retrucou Kurdis ao bebericar o vinho branco.
— Poderíamos todos ter os mesmos direitos.
— É? Mas quem governaria?
— Uma assembleia. Certamente o próprio povo reunido cometeria menos abusos.
O peixe assado coberto por molho branco se desmanchava na boca de Kurdis. Ele engoliu e retrucou.
— Sinto muito, senhor Clinde, mas não consigo ver algo assim funcionando.
— Está vendo, Jargen! O condicionamento! Somos tão condicionados que não conseguimos enxergar.
— Conte a ele sobre os Hiarawa. — sugeriu Jargen.
Antes que Clinde abrisse a boca, Kurdis engoliu um pouco mais da comida deliciosa e argumentou.
— Eles não tinham reis certo? Mas veja o que lhes aconteceu. Foram destituídos pelos kunes.
Clinde alisou as unhas e arrebitou o nariz.
— Sim, eles não tinham reis, mas, na verdade, não foram destruídos pelos kunérios. Os zanzidianos os convenceram a migrar. Muitos foram viver em outras terras no sul da Zanzídia.
— Eu conheci um deles — o Ribas baixou os talheres para entrar na conversa. — Ele disse que viver na reserva dos zanzidianos era como ser um pássaro aprisionado numa gaiola. Ele se afastou de seu povo e passou a vender seu artesanato na feira de Xaniveh.
Clinde Jor abanou as mãos para o Ribas e estreitou os olhos.
— Os Hiarawa não são o melhor exemplo... As antigas cidades de Gobelim e Frentas não tinham reis. O governo do povo funcionou por séculos antes que fossem destruídos pelo Deus-dragão.
Kurdis se lembrou de algo das lições de história.
— Frentas? Não era onde as mulheres governavam e mandavam castrar os homens que não obedeciam?
— Não deve levar isso a sério, senhor Hidenar. O exercíto de Frentas tinha homens e mulheres, muitas delas eram comandantes, por mérito, por estudar e por serem melhores estrategistas. Deveria ler o livro A Guerra de Herpa, escrito pela general Tássuria, tenho certeza que há cópias na biblioteca real. E antes que diga que sucumbiram ao Deus-dragão porque não tinham um rei forte, cabe lembrar que não houve um único reino que não tenha se submetido a ele. E também, reis não tem força alguma. Toda sua força vem do povo. Sempre foi assim e sempre será assim, mesmo que o povo não consiga enxergar, é o verdadeiro detentor dessa força.
A fala de Clinde deixou Kravel bastante inquieto.
— Toda essa conversa pode fazer um cidadão ser furado e atirado aos tubarões.
— Tem razão, Kavrel. — concordou Jargen — mas concordo com Clinde, pois esta é uma convicção que tenho por condicionamento. É racional defender a monarquia e é irracional agir, ou mesmo falar contra ela.
— E por falar nisso — o Ribas ergueu sua taça de vidro verde trabalhada com motivos geométricos — um brinde à saúde frágil do nosso querido Rei Drenkinou.
Todos ergueram suas taças e fizeram o brinde.
— Muito bem, Kravel, será que você e o Ribas poderiam verificar como estão os preparativos para a expedição de amanhã?
— Claro, senhor. — Kravel se levantou e puxou pelo cotovelo o Ribas que ainda comia algo.
Jargen beijou a mão da esposa e disse — me de mais alguns minutos e não durma querida, tenho um assunto a tratar, mas logo estarei contigo.
A esposa se retirou e Kurdis engoliu em seco quando a viu sair do salão.
Ela é belíssima e que curvas! Uma mulher para dar inveja a reis.
Jargen se levantou depois conduziu Kurdis e Clinde para a sala ao lado. Havia uma mesa com livros e pergaminhos e sobre ela um tecido escuro formando um longo rolo.
— Mostre a ele, meu caro Clinde.
O loiro pegou o embrulho e o fez rolar sobre a mesa até revelar um longo bastão de madeira.
— Isso é? — Kurdis coçou as mãos.
— Pegue-o rapaz. Segundo meu amigo essa peça pertenceu a um mago kedpirense.
Kurdis pegou o cajado e fechou os olhos assim que o fez tocar no chão. A condutividade era perfeita. Chegou a sentir um arrepio de prazer. Há meses que não sentia aquela sensação de poder.
— Ele é perfeito!
— Excelente, Clinde! Veja como nosso mago gostou.
Mal posso esperar para fazer magia de verdade, novamente.
— E então. O que desejam que eu faça?
Jargen abriu um largo sorriso! — Ah, para começar, precisamos dar um golpe duro na concorrência, não é mesmo, caro Clinde?
— Oh, sim! É importante que a Casa Tannis esteja em posição de supremacia quando o nosso jogo começar.
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