3. As boas-vindas

Lorran entrou na casa e a inspecionou. Estava em ordem. Chão limpo, móveis organizados, as janelas e cortinas abertas deixando a luminosidade da tarde entrar no ambiente. Kurdis estava descalço, com as calças dobradas até a altura dos joelhos, cabelos desgrenhados e com uma expressão abatida.

— Nada mal, rapaz! Ajeite suas calças, lave o rosto e as mãos e venha comigo. Ficaremos hospedados na estalagem Pedra Branca.

Kurdis não disse nada, lavou-se e voltou o mais depressa que pôde trazendo seus pertences.

A estalagem ficava perto do mar, mas longe do porto, no alto de um rochedo. Era um casarão com três pavimentos, rodeado por árvores e rochedos cinzentos. Um deles era uma pedra branca, muito alta e pontuda que destoava das demais.

— Quem trouxe essa pedra para cá?

Lorran encolheu os ombros — dizem que ela sempre esteve aí.

A trilha que seguiam vinha subindo sempre, à beira-mar. Kurdis olhou para baixo, vendo o mar agitado se chocando contra as pedras. Cair ali seria fatal.

E se eu empurrasse o Lorran lá embaixo? Não, isso não ia funcionar com um mago. Preciso pensar em outra coisa.

O vento frio e forte fez Kurdis se encolher. Ao longe, o mar assumia tonalidades rosadas devido ao crepúsculo. Dali via-se boa parte de Valta se espalhando em torno da enseada curva. A cúpula metálica do templo de Fiste cintilava enrubescida pela luz crepuscular.

— A mais bela cidade de Kedpir... É o que cantam os trovadores — Lorran fez um gesto amplo e teatral.

Kurdis contemplou a paisagem em silêncio. Sua mente, sempre pronta para resmungar, calou-se diante do belo cenário.

— Sente esse cheiro? Ah! Confesso que senti falta desse lugar. Vamos, rapaz. Está esfriando aqui fora.

A estalagem era um velho casarão de três pavimentos. Havia um vestíbulo grande onde fregueses podiam pendurar suas capas e chapéus. O grande salão da estalagem estava tingido com a luminosidade alaranjada do entardecer que penetrava pelas amplas janelas. Estava relativamente vazio, mas logo aqueles que podiam pagar os preços altos do estabelecimento, lotariam o local.

— Ensopado de mariscos com pães e a melhor cerveja escura que vai encontrar em toda Valta. É o que pedi mais cedo.

— Meu pai não me deixava beber álcool.

Lorran sorriu. — Que bom que ele não está aqui, não é?

Parece que o mestre andou bebendo... Deve ser por isso que está deste jeito.

— Boa noite, mestre Lorran! E este, quem é? Um novo aprendiz? — disse a simpática mulher de seios fartos.

— Certamente, Ilene. Este é Kurdis, da Casa dos Daman.

Ela sorriu para o garoto e serviu dois pratos fundos do ensopado.

— Seja bem-vindo à Pedra Branca!

— Obrigado.

O ensopado era um caldo amarelo, muito cheiroso e cheio de coisas flutuando. Ela deixou também um cesto com pães, uma jarra grande de cerveja e dois canecos de louça esmaltada com o nome da estalagem escrito neles.

— Que cara é essa, meu jovem? Nunca comeu um ensopado de mariscos?

— É que Tédris é bem longe do mar...

— Vamos, experimente!

Kurdis pegou um marisco na colher e ficou olhando. O aspecto era estranho, parecia uma lesma. Abriu a boca e hesitou para colocar para dentro. Mastigou, sem conseguir fazer uma cara boa. Mordeu um grande naco de pão para ajudar e em seguida bebeu uns três goles da cerveja.

— Bom, não é?

Não era horrível e como o rapaz estava faminto, apenas soltou um é, de boca cheia e seguiu comendo.

Quando terminou, Kurdis se levantou e então percebeu que o salão, agora mais cheio de pessoas, girou um pouco.

— Opa! Opa! — cambaleou para o lado até que Lorran segurou-o pelos braços.

— Meia jarra de cerveja e você está deste jeito? Pelo grande Yorral!

— Eu estou bem, mestre! Eu só me levantei rápido demais.

— É melhor subirmos. — Lorran acenou para a mulher — Estava tudo ótimo, Ilene!

Kurdis desabou na cama. Suas pernas e braços doíam, mas nem sequer conseguiu pensar nisso. O sono o arrebatou. Nem notou que Lorran cobriu-o com uma manta antes de sair do quarto.

***

— Vamos, de pé!

Kurdis virou na cama e resmungou algo.

Mas acabei de deitar!

Lorran fez a cama do rapaz levitar e a inclinou. Kurdis se assustou com aquilo tentando se segurar para não cair, sem sucesso. Caiu no chão enroscado em sua manta. A cama voltou à sua posição original, aterrizando suavemente no chão.

— O que é isso?

— Isso, é a hora de acordar. Vamos! Temos um dia cheio de trabalho pela frente.

Kurdis cambaleou na penumbra e foi até a janela. Olhou lá fora.

— Mas ainda está de noite!

— Não por muito tempo. O dia de um aprendiz da ordem Maihari começa cedo.

Isso só pode ser uma brincadeira...

Depois de um rápido desjejum, desceram de volta para a cidade. Chegaram na porta da escola sob as primeiras luzes da manhã.

— Vamos, entre — Lorran ficou de lado, dando passagem para o rapaz.

Kurdis abriu a porta e ficou observando por um instante, sem realmente acreditar no que estava vendo. A casa estava completamente suja e bagunçada novamente. Era como se a limpeza do dia anterior não tivesse existido.

Isso, sim, é uma brincadeira!

— Isso não é escola coisa nenhuma!

— Como não?

— É? Onde estão os outros alunos?

— Vamos entre! Já sabe onde fica o material de limpeza.

— Ora, não vou limpar essa joça de novo!

— Já se esqueceu do gosto que o chão tem?

— Entendi. Isso faz parte do jogo. Essa casa velha é um teste, não é mesmo?

— Como tudo na vida de um aprendiz. E então? Já sabe como resolver?

Kurdis entrou, olhando ao redor. Estava exatamente como no dia anterior. Era impossível que alguém sujasse e bagunçasse tudo exatamente do mesmo jeito.

— Isso é um tipo de ilusão?

Lorran passou o dedo em cima do tampo de uma mesa torta. Um risco de limpeza ficou no local. Ele mostrou o dedo sujo para Kurdis.

— Isso parece uma ilusão?

— Não sei dizer. É uma ilusão?

— Sim e não. Vou lhe dar um tempo para pensar no problema. Tenho umas coisas para resolver. Espero encontrar o lugar limpo, quando voltar.

Kurdis ficou andando de um lado para o outro. Sua expressão oscilava entre concentração e raiva.

Como eu vou conseguir resolver isso? Vou ter que aprender tudo sozinho? Que professor mais inútil! Isso aqui é uma ilusão, sim, ou pelo menos algo feito para enganar as pessoas. Pessoas comuns, talvez. É o que os magos querem! Isso! Querem que acreditem que esse lugar é apenas uma casa abandonada.

Kurdis vasculhou cada um dos cômodos da casa resmungando.

— Onde está a passagem secreta?

Eu não vou limpar essa casa de novo. Prefiro passar fome!

Kurdis tentou visualizar a casa ficando limpa. Talvez ele devesse limpá-la usando magia. Mas como? Ele tentou mentalizar, dar ordens, fazer gestos, mas nada funcionava. Algumas horas se passaram e nada de solução.

Não é possível! Será que ele vai me deixar o dia inteiro aqui, faminto? E se eu quisesse desistir? Não adianta. Se eu desistir, estarei morto. Mas que grande porcaria!

Kurdis quebrou uma cadeira contra a parede.

Cansei, vou dar o fora daqui!

O rapaz saiu da casa, desceu os dois degraus, passou por meio metro de grama seca, mas quando tentou pisar na rua bateu-se violentamente e caiu para trás.

— Meu nariz! Que desgraça é essa?

O rapaz limpou o filete de sangue que escorria da narina com as costas da manga de sua camisa. Levantou-se, e chegou perto do limite entre o jardim e a rua. Tocou o ar e este estava duro como uma pedra. Era frio também. Gelado ao toque, como se houvesse uma barreira de gelo invisível entre a casa e a rua.

— Ei, você! Ô, do chapéu azul!

Kurdis gritou para uma, depois duas pessoas na rua. As pessoas passavam por ali, ignorando-o completamente.

Mas que porqueira! Isso é uma prisão!

Ele andou de um lado para o outro por uns instantes até que seu rosto se iluminou.

Sim! Eu estava procurando a solução lá dentro. Ela tem que estar aqui fora!

Kurdis procurou por outras passagens ali no jardim. Tentou abrir a janela, arrastar os vasos com plantas mortas, mas não encontrou nenhuma passagem.

— Qual é a verdadeira natureza dessa casa? — ele murmurou a pergunta feita pelo mestre Lorran no dia anterior.

É um engodo. Não é só isso. Lorran disse que a escola era aqui. Então, de algum jeito, esse lugar deve ser a entrada para a escola. Mas as pessoas comuns, não vão conseguir ver isso. Somente os magos. O que eu não estou percebendo? A porta. Só pode ser isto!

Ele examinou a porta de perto, todos seus detalhes. As dobradiças, baixou a maçaneta e tentou abri-la para fora, mas isso não funcionou. Abriu para dentro e lá estava o mesmo cenário bagunçado e vazio. Fechou. Bateu três vezes usando a aldrava e abriu. Nada.

— Deve ter algum segredo...

Desceu os degraus e ficou olhando para a porta. E então, a porta se abriu. Lá estava o mestre Lorran.

— Aí está você, rapaz.

— A porta... Ela não é uma simples porta. É uma passagem mágica, não é mesmo?

— Você tentou fugir, Kurdis?

— Não fugir, eu apenas tentei sair.

— Então terminou o serviço?

— Não tenho que fazer serviço nenhum. A casa é feita para enganar as pessoas comuns. Por isso fica sempre parecendo abandonada e suja.

— Não está de todo errado. E então, já descobriu como entrar?

— Penso que sim.

Lorran apoiou-se em seu cajado e fez um gesto para Kurdis falar.

— Nenhuma pessoa comum pode entrar na escola. Somente os magos da ordem tem essa capacidade.

— Muito bem, jovem Kurdis. Alguns aprendizes levam dias para chegar a esta conclusão.

E então, Lorran abriu a porta e Kurdis viu do outro lado, algo totalmente diferente. Havia um longo corredor iluminado, o chão limpo, feito de pedras brancas e pretas intercaladas em padrões geométricos complexos.

— Seja bem-vindo à nossa escola.

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