28. Nova casa, novo trabalho

Kurdis estava tão aturdido pela revelação que Nofaviz fizera que chegou a se esquecer do quanto detestava viajar pelo mar.

Em questão de poucas horas, o balanço do mar e o enjoo o deixaram num péssimo humor. Além disso, sentia seu coração apertado. Se despedir de Nofaviz foi tão doloroso quanto as mortes de Estirga e do mestre Lorran.

Seria possível o amor entre espécies tão diferentes?

A viagem pareceu demorar mais, já não havia novidade. O tédio e o enjoo tomavam conta.

No quarto dia, uma tempestade agitou o mar e fez o navio subir e descer de modo vertiginoso. Kurdis teve saudades do tédio e do mero enjoo.

Estivera praticamente confinado com seu professor e rebera instruções de não dizer seu nome e a não responder a perguntas da tripulação.

O Ribas se segurava como podia e dizia com relativa calma.

— Já passei por tempestades piores. Você já esteve numa guerra, jovem. Controle-se. O navio é feito para flutuar na água, não afundar.

Kurdis sentia o estômago gelar toda vez que o navio atingia um pico de onda e deslizava para baixo como se fosse cair num abismo. Tentava se acalmar, mas tudo piorou quando ouviu alguém gritar.

— Água no porão! Vazamento! Ajudem!

— Não deveríamos ir lá? — Kurdis indagou com os olhos amarelados bem arregalados.

— Pela Rainha-mãe! Olhe para lá, meu jovem. Você está parecendo uma assombração! Deixe os marujos cuidar do vazamento. Nós só iríamos atrapalhar.

— Dizem que morrer afogado é horrível... — Kurdis estava apavorado. Bastou uma tempestade forte para se esquecer da profecia de Glauvorax.

— Que ideia? Quem disse isso? Você conversa com espíritos, por acaso?

O piloto vinha quebrando as ondas com sucesso, mas uma onda veio pela lateral fazendo o navio virar de lado. Kurdis e Ribas ficaram pendurados com os pés fora do chão por um instante. Neste instante, para Kurdis, o tempo pareceu congelar. Ele viu objetos voando. A poça d'água escalar pela parede. Fechou os olhos e respirou fundo.

Vai passar! Tudo passa.

Lembrou-se de quando era criança e foi a uma visita com seu pai na casa de um nobre. Havia muitas comidas que ele nunca tinha visto e comera de tudo. Naquela noite vomitou muito. E passou dois dias com fortes dores abdominais e disenteria.

— Eu vou morrer pai, vou morrer por que comi demais!

— Não se preocupe, filho. Vai passar. Tudo passa.

— Dói muito!

— Algo fez mal ao seu corpo. Muita gordura, certamente. Que isso lhe sirva de lição. Evite exageros e evitará problemas.

— Mas dói muito!

— Você não é a primeira e nem a última criança a ter dor de barriga. Confie em mim, vai passar.

E passou. A dor passou. A tempestade também passou e, três dias depois, chegaram a Dera.

O navio passou pela Boca e deslizava suavemente pelas águas calmas da região portuária.

— Aqui está, meu jovem grisalho. — o Ribas lhe entregou um pacote.

— O que é isso?

— São roupas. O senhor Tannis enviou, para que esteja usando ao desembarcar. Melhor se apressar.

Kurdis retornou à cabine e abriu o pacote. Havia uma túnica longa, cinzenta com detalhes geométricos bordados na gola. Uma faixa escura para amarrar na cintura. Uma capa e capuz quase pretos e um medalhão de bronze na forma de uma gota gorda com alguns símbolos gravados.

Havia também um bilhete: "Seu nome agora é Hidenar Toluco, não fale com ninguém, exceto com quem vier falar contigo".

Kurdis vestiu aquelas roupas e voltou ao convés a tempo de ver a atracação no longo pier, perto da muralha com castelinho e perto do armazém. Escutou gritos familiares.

— Vamos seus titica-de-ratazana-albina-leprosa! — surgiu a voz inconfundível de Turzo.

Kurdis ficou quieto observando. Teve vontade de cumprimentar Barsu e Nimbvo quando subiram ao convés.

Foi a vez de Gustapo subir. Ele veio até ele e disse.

— Senhor Hidenar Toluco, eu presumo.

— Sim.

— Meu nome é Gustapo, queira me acompanhar.

— Ei Gusta! Cuide bem deste aí, hã? — o Ribas se intrometeu.

— Claro, Ribas.

O Ribas segurou Kurdis pelo ombro sorrindo.

— Então é isso! Adeus amigo! E lembre-se, se quiser desconto para pomadulia, é só me procurar.

É a última coisa que vou querer!

Ribas e Kurdis trocaram um forte aperto de mãos.

O Ribas prosseguiu — Vai ser fácil me achar! Todos conhecem o Ribas na casa Tannis, não é mesmo Gusta?

Antes que pudesse responder, Turzo berrou ali perto.

— Ô, Judu, seu cabeça-de-polvo-cagalhão! Você não recebe para ficar paquerando os passageiros! Ao trabalho, cabeça-de-peido!

Judu moveu-se, mas ainda ficou por alguns instantes olhando com o cenho franzido para Kurdis.

Será que ele me reconheceu? Bem, se o tiver feito, menos mal. Ninguém dá ouvidos a ele.

Venha, Senhor Hidenar, por aqui.

Eles desceram do navio e seguiram pelo píer até chegar ao calçadão. Pegaram uma sombra sob o muro alto da Ruína do Castelinho.

— Eu não o conheço de algum lugar?

— Talvez... Faz muito tempo que não vinha a Dera.

Gustapo abriu a boca para dizer algo, mas balançou a cabeça e desistiu. Caminharam até o canal principal e desceram para entrar num dos transportes da casa Tannis.

Kurdis viu o restaurante onde o irmão mais novo de Djista trabalhava. Depois, passou na esquina do canal e viu lá ao fundo, por trás das pontes, o telhado torto da hospedaria onde morou por alguns meses.

— Para onde estamos indo?

— Para uma hospedaria na Rua Chilran.

— Rua Chilran?

— É... Será um lugar conveniente, no morro do castelo, perto da Biblioteca Real.

— Certo.

O barqueiro seguiu os conduzindo por baixo de uma dúzia de pontes até que o canal chegou no atracadouro da ladeira. Ali cabiam até umas trinta pequenas embarcações.

A água era um pouco mais sua e malcheirosa por ali. Diferente de muitos outros que tinham escadas para sair do nível do canal até as ruas, ali havia uma ladeira que tinha a parte baixa na esquerda e subia aos poucos até chegar na praça do canal. A ladeira facilitava o trânsito de cargas e estava sempre cheia de carros de mão e pequenas carroças.

No alto havia um espaço aberto com alguns canteiros de árvores sob as quais ficava montada uma feira permanente.

Gustapo afastou um gato cinzento e gordo que veio se arrastar em suas pernas.

— Alguns são bem atrevidos! Antes chamavam de feira do canal, mas hoje chamam de feira dos gatos.

Kurdis observou que havia uma grande quantidade dos felinos com variedade de cores e pelagens. Dali de baixo se via a imponente Fortaleza Branca, no alto do morro.

— A Rua Chilran é por ali.

Era uma ladeira suave a princípio, cheia de antigas casas amontoadas umas sobre as outras, e logo, veio a parte mais íngreme, com uma escadaria de pedra nas laterais. Ali misturavam-se residências, hospedarias e pequenas lojas onde se encontravam as mais diversas mercadorias. Era uma rua bem movimentada. Chegaram a uma esquina na qual a ladeira era suave novamente e a rua que cruzava era plana, seguindo o nível do morro.

Kurdis leu a placa "Hospedaria Galo Dourado". Havia um curto alpendre para o lado de fora do portão principal e nele, um galo esculpido com uma tintura amarela desbotada.

— É aqui mesmo. — Confirmou Gustapo.

— Pertence aos Tannis?

— Certamente, senhor Hidenar.

Gustapo abriu a porta e entrou seguido de Kurdis. Interior era todo revestido por um lambril de madeira escura e um pouco descascada. Havia uma senhora sentada atrás de um balcão com roupa beje e um lenço verde na cabeça.

— Dona Gianú, esse é o senhor Hinedar Toluco, o novo hóspede.

— Seja bem-vindo, senhor Ribamar.

— É Hidenar — enfatizou Gustapo.

— Isso mesmo. — Ela confirmou. — Anote seu nome aqui, seu Ribamar.

Gustapo ia insistir, mas Kurdis fez um gesto para interromper.

Havia uma pena e tinteiro sobre a mesa. Faltava um dos dentes incisivos em Dona Gianú, mas Kurdis tentava não prestar atenção naquilo. Enquanto ele escrevia ela colocou uma chave esverdeada sobre a mesa.

— Vai ficar no quarto nove, é no terceiro andar — ela apontou a no fim do salão. — A porta fecha na hora do azulão, se chegar depois disso, dorme na rua. O desejum é servido depois do alvorecer e a janta na hora da lebre. Compreendeu, seu Ribamar?

— Sim, Dona Gianú.

— A caldeira só fica acesa até a hora do muskute, então a água quente termina depois de uma hora ou duas. O penico fica de baixo da cama e é recolhido toda manhã. Tem roupas limpas no baú que seu Jargen mandou para o senhor. Isso é tudo.

— Obrigado.

Kurdis se virou com a chave em mãos e Gustapo ainda estava ali.

— Muito bem, Hidenar. Ficarei esperando aqui em baixo. Seria bom o senhor se refrescar e trocar de roupa. Assim que estiver pronto o levei até a biblioteca.

— Certo.

Kurdis foi até o final do salão escutando Gustapo e Dona Gianú conversando. Subiu as escadas estreitas e desiguais. Havia pequenos quadros com retratos e paisagens nas paredes e logo ele chegou no terceiro andar. Havia mais três portas ao longo do corredor e logo abriu a de número nove.

O quarto era bem grande. Havia uma cama, um baú grande a seu pé, escrivaninha, duas janelas abertas, cortinas, piso elevado e sobre ele uma pequena banheira de madeira. Um cano saía da parede e a torneira ficava encostada no canto da banheira. Uma pequena grade de ferro estava presa na beira da banheira e nela uma grande barra de sabão preto.

Kurdis abriu a torneira, e jorrou água fria, junto com um barulho de um assovio rasgado. Não demorou e começou a sair água quente.

— Nada mal! Não havia nada assim em Kedpir e nem mesmo na Zanzídia.

Kurdis entrou no banho e finalmente se livrou do enjoo.

Hidenar? Que tipo de nome é esse? Terei de me habituar. Ao menos será difícil para minha ordem me localizar. Salvo os perigos que Jargen Tannis poderá me trazer, estarei bem seguro vivendo aqui.

No baú encontrou roupas parecidas com as que ganhara no navio. A fome veio em seguida e desceu para encontrar Gustapo tirando um cochilo no salão da hospedaria.

— Senhor Gustapo?

— Ah, sim! Me desculpe. Vamos?

— Será que podemos ir em algum lugar para comer?

— É claro. Há um lugar no caminho para a biblioteca.

Bem na esquina da Chilran estava a Rua das Amendoeiras. Seguiram por ela, mas não havia árvores à vista.

— Está escrito Rua das Amendoeiras, mas...

— É... Deviam ter mudado o nome para Rua da Amendoeira. Anos atrás era um lugar agradável, cheio de sombras. Está vendo os tocos?

Na lateral da rua, a cada vinte passos havia um canteiro com mato, ervas ou urzes e em alguns deles dava para ver tocos de árvores serrados.

— O Rei Drenkinou mandou derrubar todas.

— Por quê?

Gustapo encolheu os ombros — Vai saber? Dizem que foi questão de segurança. Mas o que árvores tem a ver com segurança? Ou a falta delas? Aquela lá... — ele apontou no quarteirão seguinte — foi a única que ficou. E não me pergunte por quê.

Na esquina da rua com a Avenida do Canal, havia uma estalagem grande chamada Cinco Mastros. No alto dela havia um mastro de navio e acima de uma gávea, uma bandeirola vermelha e branca.

Ali comeram o que tinham para servir depressa: um pastelão de peixe. Foi acompanhado por um pouco de vinho aguado. Satisfeito, Kurdis seguiu Gustapo por mais alguns quarteirões, moro acima que chegarem no prédio da Biblioteca Real.

— Está me dizendo que qualquer pessoa pode entrar aí e ler o que quiser?

— Não exatamente qualquer pessoa. Pessoas registradas, em geral, bons cidadãos de Dera. Não há uma biblioteca pública em Kedpir?

— Não. As pessoas pagam para usar as bibliotecas, e não é algo barato.

— Não sabia disso. Já fui tantas vezes a Jaffe e a Valta, mas sempre continuo aprendendo coisas novas sobre aquele reino. Mas vamos, o senhor Gando deve estar no terceiro pavimento.

O interior da biblioteca era povoado por homens e mulheres que aparentavam ser estudiosos ou juristas, usavam capas ou chapéus e andavam de um lado para outro em silêncio. Havia mesas amplas próximas das janelas, com pilhas de livros e pergaminhos e muitos estudiosos as usavam. Kurdis viu que havia corredores repletos de livros na direção dos fundos do edifício, mas se desviaram daquele caminho para tomar as escadas.

No terceiro piso, haviam várias salas separadas com placas, setor de reprodução, setor de conservação, setor de indexação e finalmente, mais à esquerda, o setor de tradução.

Havia seis pessoas trabalhando ali, mas levantou-se um senhor baixo, magro e com longas suíças brancas e com um monóculo sobre o olho esquerdo.

— Ah, Gustapo! Este é o meu novo tradutor? — ele falou num tom de sussurro aveludado.

— Sim, é o senhor Hidenar Toluco.

O velho ergueu a mão trêmula para um cumprimento — Sou Gando Tenrisuff, chefe da tradução. Muito prazer! Venha, vou lhe mostrar sua pilha! O trabalho já está atrasado há uma semana!

— Obrigado por me receber.

— Essa é a pilha de encomendas. Havia seis ou sete volumes empilhados. Essa é a pilha de revisões, tinha o dobro de volumes. E nesta mesa estão os volumes para avaliação, precisam ser fichados, isto é, ser lidos e resumidos para selecionar quais são interessantes para termos traduzidos no Acervo Real. Os que passam na triagem, vão para aquela pilha, lá, no fundo, a pilha do acervo.

— É bastante trabalho!

— Oh, sim, e se você produzir além da cota, recebe um bônus.

Gando parou de falar e espirrou umas cinco vezes. Gustapo aproveitou a deixa para sair.

— Adeus, senhor Hidenar, já está onde deveria. Se precisar de algo da Casa, peça para a Dona Gianú nos enviar um recado.

— Até mais, Gustapo. Obrigado!

— Onde estava? Ah, sim! Sobre a cota, se não cumprir...

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