26. O mergulho
Entre lições de escrita, suportar o falatório do Ribas, refeições exóticas em diversos locais de Topemari e as sessões com Nofaviz, o tempo passou depressa. Kurdis já vivia na cidade há mais que um mês e havia se habituado ao clima quente e às fortes brisas que faziam as janelas de seu quarto trepidar e assobiar.
Sentia-se atraído pela bela artífice, que, por vezes, dispunha de algum tempo após as sessões para conversar. Kurdis contou muitas coisas para ela, mas a recíproca não era verdadeira.
— Muito bem! Finalmente cheguei ao tom que pretendia para seus olhos!
— Isso é muito desconfortável! Parece que tem areia nós meus olhos.
— Vamos pingar mais anestésico. Vai ajudá-lo a dormir essa noite. É importante não coçar para não danificar sua visão. Eu vou aplicar uma faixa.
— Mas como vou chegar à estalagem sem enxergar?
— Eu o levarei para repousar.
— Obrigado, senhora.
Ele sentiu a pele calejada das mãos da artífice segurando em seu braço. Seu toque era quente, como se estivesse com febre.
— Venha comigo, irei guiá-lo.
— Estou ficando na Mar Perfeito.
— Sei disso, mas nesta situação é melhor pernoitar aqui.
— O Ribas ficará preocupado.
— Enviarei o Boitux para levar o recado.
Kurdis estava atento aos sons. Seus próprios passos arrastados e inseguros e os de Nofaviz, bem demarcados e amadeirados.
Subiram uma longa escada.
— Estamos indo longe. Quantos pavimentos há nesta casa, afinal?
— Isto não é uma casa, Le'Daman... Chamamos de colégio.
O rapaz teve a sensação que subiram quarto ou cinco lances de escada. Então chegarem em um local quente no qual os passos ecoavam.
— Tem uma lareira acessa aqui?
— Não. Meu quarto é aquecido por uma fonte termal.
Kurdis sentiu um suave odor sulfuroso que o fez pensar nas Colinas Vaporosas ao sul de Valta.
— Deseja se banhar?
— Posso tirar a faixa?
— Não.
— Então, como irei...
— Eu irei ajudá-lo.
Kurdis engoliu em seco quando ouviu tecidos caindo no chão.
Ela está se despindo? E eu cego? Não acredito.
Ele sentiu as mãos dela tirando sua roupa e em seguida o conduzindo para a fonte.
— São três degraus, por aqui.
Kurdis colocou os pés na água quente.
— Está bem quente.
— Venha devagar para se acostumar.
Escutou o som de um mergulho. E depois de alguns instantes e de ouvir o sons de natação, ela falou.
— Eu já estou habituada.
Kurdis descia os degraus e estava com água acima dos joelhos. Então ficou muito excitado, imaginando Novafiz nua ali por perto.
— Vejo que está animado, Le'Daman...
— Me desculpe, é que imaginei...
— É bom só imaginar mesmo. Entre que irá logo relaxar.
— Ai, ai, ai! Que quente!
Ela o pegou com as duas mãos puxando-o para dentro da água. Ele afundou até o pescoço.
— Essa fonte parece ser muito grande.
— É bem grande.
Kurdis deixou as mãos soltas e tocou algo áspero.
— Me desculpe.
— Você quer sentir a textura de minha pele? — ela indagou.
— Bem eu...
— Me dê aqui sua mão.
Novafiz levou as mãos dele para a lateral de seus quadris.
Kurdis sentiu algo áspero novamente. E de fato, havia uma textura.
— Está lembrado que lhe falei sobre o meu segredo?
— Parecem escamas.
Kurdis passou a mão mais para cima, depois desceu pela lateral da perna.
— Se forem mesmo escamas... Você seria uma sereia?
— Sereias não existem!
— Você poderia colocar guelras num ser humano?
— Sim.
Então é isso que Jargen Tannis fez, teve seu corpo modificado em Topemari.
— Por que a pergunta?
— Nada de mais, foi apenas algo que me ocorreu... Mas voltando à sua pele. Sereias não existem, mas poderia ser uma uscaszubá.
— Eu teria de ter asas e penas.
— Em Kedpir elas têm escamas.
— Esqueça o folclore, Kurdis. Não vou lhe contar o que sou, é um segredo, lembra? Por outro lado, há algo em você que me intriga. A voz que está escondida em sua mente...
— Isso também me intriga.
— Eu poderia descobrir o que é... Se me deixar beber um pouco de seu sangue.
Kurdis ficou tenso.
— Então é uma estrixa, ou dhampiresa?
— Eu não preciso beber sangue para viver, além disso, já teria feito isso com você desacordado, se quisesse. O sangue é meramente uma forma de estar mais próxima de sua mente para investigá-la.
— Como seria isso?
— Um pequeno corte no dedo ou qualquer outra parte...
— Faça como quiser.
Kurdis sentiu a feiticeira se aproximando e envolvendo seu corpo. E então, uma picada no lóbulo da orelha direita. Em seguida, os lábios quentes dela se puseram a sugar.
Kurdis sentiu um formigamento se espalhar a partir do local. Ele queria se soltar. Abriu a boca e sentiu um dedo ensanguentado entrar em sua boca. O sangue de Nofaviz era adocicado e quente. Ele também bebeu. Uma sonolência irresistível caiu sobre si. Teve a sensação de flutuar sobre a água. Viu imagens diversas em sua mente.
Do alto da pedra da cabeça do dragão alguém pulou. Mas não era um suicídio. Quem pulou podia voar. Havia outros. Não eram humanos. Eram imensos lagartos alados: dragões. Kurdis voou com eles, o bando circulava a cidade no momento do alvorecer. O povo nas ruas... Pareciam festejar. Vestidos de todas as cores, carregando bandeiras e bonecos.
— Stez vinit adruga vanar! — as palavras de um idioma desconhecido penetravam em sua mente. A mente estava confusa, como se estivesse presa entre o sonho e a realidade.
Ele viu chegar os homens acompanhados de demônios. Centenas de navios atiravam bolas incendiárias feitas de betume. Os homens tinham olhos vermelhos. Os membros do exército de sombras carregavam armas a armadura feitas de metal preto. Espadas, facas, piques, foices de guerra, entre outras. O povo que festejava foi morto num massacre sangrento. Os homens, demônios e feiticeiros avançavam, também abatendo dragões aos montes.
Ele foi testemunha de uma batalha épica que culminou com a morte do Deus-dragão.
O idioma estanho passou a fazer sentido na mente de Kurdis.
— Todos os filhos e filhas do Deus-dragão beberam o sangue divino que se espalhou. A sua alma divina dividiu-se em milhões de partes. Os filhos e filhas que estavam perto, beberam porções maiores do sangue divino. Estes receberam inteligência, a fala e os dons elevados. Os filhos e filhas que estavam longe, receberam pequenas frações, mas todos celebraram a comunhão de sangue. A era dos dragões chegou ao fim e iniciou-se a era dos homens. Um dia os homens veriam o fim de seu tempo. Os dragões irão anunciar o fim e surgimento de uma nova espécie, mais forte e salvagem que dominará os territórios. Os homens irão fugir e se esconder, vivendo em buracos, alimentando-se restos. E depois dessa era, o Deus-dragão retornará, sua alma emergirá de seus filhos e filhas. O ciclo de morte e renascimento é eterno, pois a eternidade alimenta-se de sua própria carne, de seus próprios dejetos. Os dragões, a humanidade, as outras espécies pensantes, os animais e plantas são o início e o fim. São a parte e o todo. São a caça e o caçador.
Kurdis despertou deitado num confortável tapete de peles. Não usava a faixa e abriu os olhos. Havia claridade demais. O local era amplo.
— Novafiz? Alguém?
Estava só. Ficou de pé e viu uma imensa piscina coberta por uma fina camada de vapor. Não havia janelas, ainda assim, o local estava bem iluminado.
É luz mágica. Eu tive sonhos estranhos. Novafiz bebeu meu sangue. Ela tinha a pele escamosa. Ou será que isso não aconteceu? Eu também bebi o sangue dela? O que isso significa? A morte de Deus-dragão... Não me lembro bem. Que confusão!
A água borbulhou de modo ruidoso. Kurdis viu uma sombra de contornos femininos surgir em meio aos vapores. Novafiz estava nua, e sua pele lisa e perfeita.
Ela não era escamosa? Estou delirando?
— Você acordou, Le'Daman. Como estão seus olhos?
A feiticeira se enxugou com uma toalha vermelha e colocou um manto azul-celeste bem folgado. Depois disso, amarrou uma faixa azul-marinho na cintura.
Kurdis ficou observando a mulher, sem conseguir dizer nada.
Ela se aproximou e olhou bem em seus olhos, mas não olhava para Kurdis como pessoa. Seu interesse era observar o interior dos olhos do rapaz, como se fosse um objeto.
— Cicatrizou bem.
Kurdis sentiu o estômago roncar. Estava faminto.
— Eu dormi... mas quanto tempo se passou?
— Dois dias. Não se preocupe. Boitux já vai nos trazer o desjejum. Diga-me, do que se lembra?
— Tive sonhos estranhos. Dragões, exercícios e guerra. Também sonhei que seu corpo era coberto de escamas.
— Peço desculpas, tive que usar drogas muito fortes para fazer a cirurgia em seus olhos.
Será que algo daquilo realmente aconteceu?
Então levou a mão à orelha. Não sentiu nada ali, a pele estava lisa e sem nenhum arranhão.
— Sonhei que você bebeu meu sangue para poder ler a minha mente.
Nofaviz deu uma gostosa gargalhada.
— Sabe com que sonhei? Sonhei que me tornava rainha da Zanzídia só para ser morta, dias depois, numa revolta popular. E então, sonhei que o rei de Dera foi deposto, e que o mesmo ocorreu aos reis de Kedpir e da Kunéria. Então descobri que cada trono vazio, despertava a cobiça, causando mais guerras. Não são estranhos os sonhos?
— Ao menos seu sonho tem alguma lógica.
Escutaram Boitux subindo cuidadosamente os degraus. Trazia uma bandeja em mãos com uma dúzia de tigelas. Havia frutas, ovos, pães, carnes, mariscos, manteiga e um bule com chá.
— Bom dia, Boitux.
— A seu serviço, senhora.
— Obrigado, deixe-nos.
O serviçal deixou a bandeja na mesa oval e saiu em silêncio.
— Sirva-se.
Kurdis não fez cerimônia, pois a fome o impedia. Ela ficou apenas observando.
— Não vai comer?
— Apenas chá, logo cedo. Preciso me manter em forma.
— Desculpe perguntar, mas a senhora não é casada? Ou mesmo comprometida?
— Há sempre pretendentes me rondando, mas fiz um voto de castidade. Isso não é nenhum segredo. Eu preciso estar focada para desenvolver bem o meu trabalho. Não tenho tempo, tampouco interesse para me ocupar com questões mundanas.
É um desperdício de beleza e sensualidade.
— Sei o que está pensando e não me importo. Questões humanas...
— Bem, se me permite dizer, vejo na senhora algo que transcende a humanidade.
— E devo me confessar surpresa, pois pude ver em você algo de transcendente. É quase como se pudesse enxergar os fios da trama da senhora do destino ao seu redor. Sabe, tudo que se passou com você e agora essa transfiguração paga pela casa Tannis... Sinto que algo importante está para acontecer em Dera, e quem sabe, se isso provocará reflexos em outras partes do mundo?
— A eternidade alimenta-se de sua própria carne.
Novafiz ergueu as sobrancelhas — Sabe o antigo idioma?
— Idioma? — Kurdis não se deu conta de ter falado outra língua.
— Vishmae, o idioma dos dragões.
— Devo ter aprendido na escola. Realmente não me lembro agora.
Novafiz apoiou o cotovelo na mesa e queixo com as mãos. Estreitou os olhos para Kurdis.
— Muito interessante...
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