25. Transfiguração

Os primeiros dias na hospedaria do Mar Perfeito serviram para Kurdis e Ribas se refazerem da viagem. As náuseas ficaram para trás e dormir num quarto confortável e com três boas refeições ao dia, depois de tantos problemas, pareceu ser a melhor coisa que aconteceu na vida de Kurdis.

Além de tudo conforto, atrás da hospedaria, havia um pequeno jardim montado em plataformas descendentes que se aproveitavam do relevo da encosta. Ali havia vários bancos e um agradável gazebo coberto de hera florida de onde podia se observar o belo mar do sul, os pássaros pescando e navios comerciais e barcos pesqueiros circulando. Os zanzidianos chamavam-no de Ter'kebrian, o Mar das Almas.

Quando o Ribas dormia após o almoço, era ali que Kurdis encontrava algum sossego. Se por um lado sentia-se aliviado da tagarelice do Ribas e das complicadas lições do deravo escrito, a contemplação colocava Kurdis a sós com seus pensamentos.

Muitas experiências amargas vinham à tona e o mar verde o fazia se lembrar dos olhos do soldado Escau. O seu olhar de surpresa, de decepção, de acusação, quando foi ferido mortalmente pela foice de Kurdis.

Eu precisava do sangue dele. Era ele ou eu. Qualquer um escolheria salvar a própria pele. Ele faria o mesmo se estivesse em meu lugar. E também, iríamos todos morrer. O maldito mago tinha aquele arco!

Aquele olhar. Os gritos dos soldados que a foice ceifou... Voltavam à sua mente agora que seu corpo tinha descansado. Agora que sua mente encontrava tempo livre. Kurdis balançou a cabeça procurando se livrar daqueles terríveis pensamentos.

Talvez o Grão-Mestre e os demais tenham razão. Esses artefatos são mesmo perigosos. Acho que me livrar daquela foice pode ter sido um bom negócio. O problema é o preço que Jargen Tannis irá me cobrar ao retornar para Dera.

— Aí está você, meu jovem! Pensando na vida, hã? Vamos, não fique aí parado. Consegui uma consulta para você com Nofaviz.

— Nofaviz?

— Oh sim! Ela é uma tranfiguradora capa-azul! Uma das melhores de toda a Zanzídia! Não é sorte sua que tenhamos vindo para Topemari. É seu destino.

Kurdish levantou-se emitindo um suspiro resignado.

Pela luz de Guidewan! Será que o Ribas simplesmente não consegue falar um pouco menos?

— Vamos, meu jovem! Hoje a tarde estará de folga das suas lições. Por outro lado, eu mesmo, nunca passei por nenhum procedimento de transfiguração, não posso lhe garantir que seja algo indolor.

— Vou me molhar quando chegar ao rio.

— Já ouvi essa. Minha avó Detina conhecia provérbios de Kedpir como ninguém!

— Meu mestre sempre falava isso pra mim. Eu sempre estava ansioso ou preocupado enquanto era estudante.

— Como seu mestre morreu? — O Ribas deduziu que estivesse morto pelo tom de voz e postura de Kurdis.

Kurdis contou sobre a guerra. Sobre o confronto com o demônio de ossos. Enquanto isso, subiram mais dois níveis da cidade, chegando bem mais perto da cabeça do dragão. Os níveis superiores eram menos movimentados que os inferiores. Viam-se menos estrangeiros e mais magos. Cruzaram com grupo de capas-azuis, e viram ao longe, Glauvorax, o capa-roxa que advertira Kurdis em seu primeiro dia. Ele estava conversando com uma bela mulher que usava um elegante vestido azul e sobre a cabeça, um capuz e capa pretos.

Kurdis sentiu um arrepio na espinha só de olhar para os dois.

Finalmente chegaram a uma construção cuja fachada fora habilmente esculpida no rochedo. O portão era largo e alto, feito de metal esverdeado pela oxidação. A aldrava era na forma de uma bela cabeça de dragão. O Ribas deu duas batidas e o som ressou mais alto do que o esperado.

O portão emitiu um suave gemido ao se abrir, revelando um interior muito bem iluminado.

Um homem vestido com um manto cinzento cumprimentou Ribas de modo amigável e os convidou para entrar. Kurdis não entendeu quase nada. Ele pediu ao Ribas que lhe ensinasse a língua local, o que fazia todos os dias durante o jantar, mas em poucos dias, Kurdis ainda não tivera tempo suficiente para avançar.

O pé direito da construção era altíssimo e era um salão retangular que avançava por cerca de vinte metros. Ali havia bancos de madeira enfileirados. Parecia-se muito com um templo, exceto pela falta de ornamentação. O homem os guiou pela esquerda e passaram a outra câmara de pé direito mais baixo, apenas quarto metros. Tinha a aparência de um laboratório muito organizado. Havia uma infinidade de gavetas de um lado, cobrindo toda a parede até o teto. Do outro lado, centenas de fracos de vidro das mais variadas formas contendo líquidos transparentes e opacos de quase todas as cores possíveis. Ao fundo, uma bancada com centenas de instrumentos meticulosamente organizados e frutos de metal, ossos ou madeira. Facas, espátulas, garfos, serras, pentes e diversos outros tipos de instrumento de formas variadas para os quais Kurdis não conseguia adivinhar o propósito.

Enquanto Kurdis ficou observando tudo aquilo com um misto de curiosidade e espanto, não ouviu os passos aveludados e nem viu entrar no local a artífice Nofaviz.

A mulher era alta e belíssima. Tinha longos cabelos pretos e lisos, olhos castanhos claros, sobrancelhas bem marcadas e perfeitamente desenhadas. No lugar de um capuz, usava uma tiara com uma imensa safira brilhante no alto da testa. Kurdis sentiu seu estômago afundar e quase perdeu o fôlego. Ela usava um traje de um tecido azul-marinho que tinha transparência suficiente para cobrir as formas femininas da feiticeira, mas que revelava os contornos perfeitos de seu corpo esbelto.

Ela é linda como uma deusa.

— Você, comerciante Ribas, pode nos deixar — ela disse num deravo perfeito.

O Ribas fez uma vênia desajeitada e gaguejou algo antes de se retirar. O homem de cinza o conduziu para fora.

— Entende bem o idioma de Dera, eu suponho? — ela indagou a Kurdis. Sua voz era forte e marcante.

— Sim, senhora.

— Eu recebi uma quantia vultosa do nobre senhor Jargen Tannis para este trabalho. Ele é um velho cliente meu...

Kurdis não sabia o que dizer.

Ela se aproximou e tocou seu rosto com a ponta dos dedos.

— Sua pele é clara, mas toma muita cor ao sol. Podemos trabalhar nisso.

Ela chegou bem perto e com uma lupa olhou dentro dos olhos de Kurdis.

— Seus olhos podem ser clareados, vejo uma bonita tonalidade cor de mel escondida neste marrom escuro.

Ela acariciou os cabelos dele. Kurdis sentiu-se muito desconfortável com a proximidade dela.

— Seus cabelos... Tem raízes fortes. Você vai envelhecer sem se preocupar com a calvície. Vamos trabalhar uma despigmentação permanente que vai atender bem ao pedido do senhor Tannis!

— O que a senhora fará comigo?

— O meu trabalho. E quando eu terminar, senhor Kurdis de Kedpir. Você será uma nova pessoa.

Kurdis engoliu em seco.

Ter uma nova aparência? Isso pode ser bastante útil!

— Por favor, dispa-se e deite-se aqui.

Kurdis sentiu-se bastante envergonhado, mas fez como Nofaviz pediu.

— Cheire isto — ela aproximou um frasco com um líquido transparente de seu nariz.

A substância tinha um cheiro muito forte e colocou-o num estado de entorpecimento. Sentiu um pano molhado passar por toda sua pele. Um cheiro desagradável veio junto. Lembrava o cheiro de queimado.

Kurdis começou a murmurar, delirante. Voltavam à sua mente, imagens da batalha no forte et'Colmont.

— Estirga... Cuidado. O dragão! Cuidado, Estirga!

Agulhas espetaram seu corpo. Nos braços, pernas, no pescoço. Kurdis gemeu.

Kurdis perdeu a noção do tempo. Os delírios incoerentes se sobrepuseram. Quando deu por si, estava vestido, seus lábios e a língua formigando. Estava sentado em outro lugar. Um comodo que estava sendo invadido por uma luminosidade rubra crepuscular.

Havia uma enorme janela e viu Nofaviz olhando para fora, seu belo perfil iluminado pela luz do sol poente.

— Já é tão tarde?

— Como está?

— Não xinto meus lábios...

— Isso já vai passar.

— O trabalho extá veito?

— Uma parte, mas para durar, terá que voltar mais vezes, três dias por semana, durante um mês.

— Tudo isho?

— É necessário para conseguir efeitos permanentes.

Kurdis tentou ficar de pé, mas estava zonzo e voltou a cair sentado no divã perfumando, cheirava a erva de cidra-azul.

— O torpor irá logo passar. Diga-me. Por que fugiu de Kedpir, feiticeiro?

— Eu fiz coisas... Cometi crimes.

Kurdis não percebeu, mas a embriaguez dificultava dizer mentiras.

— Que crimes? Rūs Glauvorax quer muito saber sua história. Não a mentira contada pelo comerciante derano.

— Matei pessoas. Soldados aliados. Também um provessor que sempre batia em mim quando eu era criança.

— Entendo. Porque fez isso.

A língua de Kurdis já começava a melhorar.

— O professor... Eu estava tomado pela ira. Meus poderes explodiram naquele dia, como nunca.

— E os soldados?

— Eu precisava sobreviver. A foice pedia pelo sangue. Eu tive que atender.

— Foice? Fale mais sobre essa foice.

Kurdis mordeu os dentes e fez uma careta.

— Não quero falar sobre isso, senhora. — Era a mais pura verdade.

Kurdis fez força para se levantar. Olhou para o rosto de Nofaviz, agora iluminado por uma luz púrpura que destacava ainda mais sua beleza.

— A senhora nasceu assim tão bela? Ou usou sua arte para acentuar sua beleza?

Nofaviz sorriu. — Você descobriu meu segredo? Ah, mas isso não é segredo algum. Meu verdadeiro segredo, deste ninguém sequer desconfia.

— O que é? Você é, na verdade, uma sereia, netherina ou uma uscaszubá?

Ela gargalhou. — Já consegue andar, Le'Daman?

Daman? Como ela sabe meu nome de família? Será que falei enquanto estava desacordado?

Kurdis franziu o cenho e testou os passos. Foi fácil para quem fazia longas viagens marítimas estando sempre mareado.

— Muito bem! Estão já pode ir. Desça as escadas e vire a esquerda. Boitux lhe mostrará a saída. E volte depois de amanhã... Boa noite!

O dia seguinte não parecia passar. As aulas matutinas e vespertinas de caligrafia com o Ribas pareciam durar meses! No jantar, enquanto praticavam a língua local, o Ribas prometeu que o levaria a um restaurante na cidade baixa onde serviam coxas de cochobó caramelizadas.

Kurdis sentiu coceiras na pele e os olhos lacrimejavam e ardiam um pouco, teve dificuldades de dormir.

No dia seguinte, retornou à casa de Nofaviz sem o Ribas. Saltitava de uma perna para a outra enquanto esperava a porta ser atendida.

— Bom dia, senhor Kurdis.

Ele compreendeu e respondeu a Boitux. Neste dia, havia vários magos de capa-azul reunidos no salão de entrada. Seguiram numa discussão acalorada, mas Kurdis não fazia ideia do que diziam.

Ele chegou ao laboratório e Nofaviz já estava lá.

— Dispa-se — disse a título de cumprimento.

Kurdis se deitou no tablado e ficou perseguindo a feiticeira com os olhos enquanto ela buscava fracos, tubos e diferentes instrumentos.

— Cheire.

Iniciou-se o processo de torpor. Delírios. Visões.

— Eles são tolos! Medrosos! Mentirosos!

O demônio de ossos esmagou sua perna. Vários ossos se estalaram.

— Mestre Lorran! Por quê? Por quê?

O fogo veio. Sua pele se queimou. A magia não protegia.

— Mol'dan! Não! Não posso cortar sua perna!

Finalmente, Kurdis apagou. Acordou ali mesmo. Dolorido. Confuso.

Nofaviz indagou — Como se sente?

— Sinto dores.

— Estou poupando os anestésicos para outra etapa. Consegue se sentar?

Kurdis se virou no tablado contraindo os músculos da face e notou que estava nu.

— Pode ser vestir. Mas antes de ir me diga, quem era Estirga?

— Era uma feiticeira... Nós... Bem, ela está morta.

— Morreu na guerra, eu presumo.

— Sim.

— Tive notícias que muitos feiticeiros perderam suas vidas... Dos dois lados. Um desperdício.

— Fato, porém, a guerra tem sido assim em Kedpir, desde que os kunes atacaram usando feiticeiros como soldados, cerca de cem anos atrás. Kedpir teve que se adaptar criando os guldos. Essa era a minha profissão e também a de Estirga.

— Você a amava?

— Foi minha primeira... Sim, eu a amava, mas só percebi isso depois que ela morreu.

— Quando estava delirando, ouvi sua voz chamando o nome de Estirga. E também de Lorran.

— Era meu mestre, ele também morreu.

— Sinto muito. Além de sua voz, ouvi uma segunda voz falando. Então pude perceber que há algo incomum a seu respeito.

— O que essa voz disse?

— Disse que todos vão temer Le'Daman.

— O que acha que é?

— Não sei, não é minha especialidade. Talvez, se me contar a respeito da foice...

— Aquela coisa... Certamente possuía vontade própria. Eu a tomei das mãos de um demônio que foi convocado pelos kunes. Me deu muito poder, eu era praticamente invencível usando seu poder. Demorou um pouco, mas depois de um tempo, ela começou a falar comigo.

— Sua lâmina era escura...

— Sim. Sabe de que tipo de arma estou falando.

— Sei, foram produzidas pelos primeiros feiticeiros, aqueles que tiveram como mestres as criaturas do abismo. Os que fizeram o pacto para reunir forças, libertar a humanidade do domínio dos dragões. Minha ordem destrói essas armas sempre que as encontramos. Vocês nortenhos tem muita soberba, acreditam-se mais fortes e sábios do que realmente são.

— Não posso dizer que está errada.

— E não estou. Siga meu conselho, se encontrar essas coisas novamente, apenas as destrua.

— Agradeço.

— Muito bem. Sua pele e os cabelos, já estão encaminhados. Vamos trabalhar na durabilidade e em seguida, começar o trabalho com os olhos, que é mais delicado. Venha até aqui, tenho um espelho.

Kurdis se olhou chocado. O moreno de sua pele estava bastante exacerbado e os cabelos quase todos brancos, com apenas algumas mechas cinzentas.

— Meu cabelo...

— Está descolorido, ficou bem em você. Agora tem que ir... — ela apontou para a saída — Volte em dois dias.

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