21. O suficiente
Djista ofereceu um desconto e Kurdis passou a pagar a mensalidade com o desjejum e jantar inclusos. Ele ia bem cedo para a cozinha e usava pedacinhos de carvão para escrever numa pedra e praticar os ideogramas. Apagava com um pano úmido e escrevia mais.
— Está certo?
As algas já estavam quase fervendo na panela. Djista continuou mexendo e virou-se para ler o que ele tinha escrito.
— Você escreveu mastro e não coluna. É quase igual, a diferença está no radical inferior. O radical de coluna é pedra. O de mastro é barco. Mas o resto da frase está correto. Dorg'maguvre empurrou as colunas com os braços e derrubou o templo.
— Não creio! Ninguém é tão forte assim...
— Dorg era filho de Maog'maguvre, o portador da pedra da vida.
— O testículo do Deus que foi transformado em pedra, Catul, o Demônio-rato?
— É Scatul... Ele enganou Yurut fazendo-o beber o sangue da Grippa misturado com vinho.
— Vocês realmente acreditam nessas coisas?
— E vocês acreditam que São Guides nadou na lava do vulcão?
— Eu sempre pensei nisso mais no sentido figurado. Mas tudo bem. Já dizia meu pai: religião não se discute.
E após dizer isso, Kurdis ficou em silêncio.
Djista derramou a alga fervida na tábua para esfriar.
— O que houve com seu pai?
— Ele foi traído. Era um sujeito muito correto. Esse foi seu grande erro.
— Como assim?
— Se ele fosse desonesto como os outros, teria dado um jeito de virar o jogo. Acho que o príncipe Joram é um devoto do Demônio-rato, mesmo sem saber.
— Rei Joram? Não é o que disseram outro dia? Que o velho rei morreu?
— Ainda não me acostumei com a ideia... É só isso.
Ela sentou do lado dele e colocou a mão em seu ombro — Um dia você verá seu pai novamente, nem que seja na Cidade de Vidro.
Ou no Abismo.
— Anime-se. Está indo muito bem com a escrita. E amanhã, você vai me levar nos jogos piscatórios.
— Parece que é a senhora que vai me levar... Eu nem mesmo sei onde é essa lagoa verde.
— Não importa. O cavaleiro sempre leva a dama.
— Em Dera e em Kedpir.
— Os costumes de vocês não são de todo errados.
Kurdis sorriu. Seu sorriso vinha aparecendo cada vez mais na companhia de Djista.
— Irmã! Cuide de sua honra!
Djista recolheu a mão que estava sobre o ombro do rapaz e baixou os olhos, sem encarar o Touro.
— Strobo! Você tem sorte de estar com as mãos no lugar certo! Se você desonrar minha irmã, vou usar uma enguia viva para tirar a honra da sua bunda em praça pública!
— Caelum!
— Não me venha com Caelum para cima de mim. É bom aprender com os erros do passado. Não concorda, strobo?
— O nome dele é Kurdish.
— Eu sei que ele me entende, não é Kurdish? Não é o dever de um homem defender a honra de sua família?
— Sim. Ele está certo, senhora. Com sua licença...
Esse idiota está me fazendo um favor. Preciso ficar firme e não me aproximar demais dela. Afinal, já é quase hora de me mudar. Não posso ficar muito tempo aqui. Gustapo já desconfia que sou feiticeiro. Kravel e outros talvez pensem assim... Se não fosse a guerra, já haveria algum feiticeiro Mahiari por aqui para me prender.
Kurdis sentia receio em usar formas mais ostensivas de magia, especialmente feitiços que pudessem ser detectados. Mas relaxou, pois durante todos aqueles meses viu um Shirogue apenas uma vez.
Cola na janela, porta e assoalho. Gancho na vara, caso ela seja tirada...
Realizou o feitiço assim que desceu da pinguela, tocando a varinha no chão.
E por último, a sentinela, para perceber os espiões.
Pode escutar o Touro e Djista discutindo enquanto se afastava da hospedaria.
Fez seu longo percurso de barriga vazia. A interrupção do Touro acabou deixando-o sem o desjejum. Ao chegar no armazém mais cedo viu o senhor Kravel conversando com Turzo perto do portão.
— Ora, strobo! Suas orelhas não estão quentes? Falávamos de você aqui...
— Bom dia, senhores. Qual é a ordem do dia? — encarou o supervisor.
— Você está com uma sorte escrota hoje, strobo. Temos um navio para carregar, mas o senhor Kravel o quer em seu escritório...
— Venha comigo, Kurdis.
Kravel usava uma capa verde-escuro que deixava à vista apenas suas botas de couro marrons e lustrosas. Usava um gorro cinzento adornado por uma fita prateada. O rosto compenetrado emoldurado pelos cabelos grisalhos bem penteados.
— Em que posso ser útil?
— Essa é uma boa pergunta... Mas não sou eu quem vai determinar isto.
— Seu escritório não fica por ali?
— Não vamos lá. Apenas venha. E sem mais perguntas.
Kurdis seguiu o oficial da casa até o canal. Ali, desceram as escadas e entraram num pequeno veleiro. O barco seguiu na direção do castelo pelo canal central. Era uma passagem bastante larga e havia muitas embarcações indo e vindo, passando sobre uma grande quantidade de pontes. A grande avenida aquática tinha águas calmas e escuras. O barqueiro atracou na margem esquerda, e Kravel desceu no pequeno ancoradouro de pedra e fez um sinal para que o estrangeiro o acompanhasse.
Ele nunca fora naquele ponto da cidade. Havia casas grandes de dois e três pavimentos, os portões bonitos de madeira, pintados de cores variadas, que combinavam com as pinturas das janelas e que não ficavam diretamente na altura da calçada. Havia pequenas escadas de pedra, de três a cinco degraus entre a rua e as entradas das casas.
A rua era larga e limpa. Circulavam ali pessoas bem vestidas pela calçada larga e charretes pelas ruas pavimentadas com pedras retangulares.
Algumas dessas casas eram lojas com janelas grandes, divididas por treliças por onde podiam ser vistos os produtos. Lojas que vendiam louças, tapetes e outros artigos que apenas comerciantes ricos e os nobres podiam adquirir.
Kavrel subiu os degraus que levavam a um portão alto, pintado de verde. Usou a aldrava de metal com um galo esculpido. Era um dos símbolos da casa Tannis.
— Bom dia, senhor Kravel. — disse um criado idoso vestido num uniforme preto com botões prateados. O homem olhou para Kurdis como se ele fosse um pato eviscerado.
— O senhor Jargen Tannis irá recebê-los... Por aqui.
O vestíbulo tinha um assoalho brilhante. Kravel entregou sua capa ao criado que a pendurou em ganchos.
O criado ordenou.
— Pendure sua bolsa aí, rapaz.
Kurdis obedeceu de modo relutante.
Não me agrada ficar sem minha vara. Mas é melhor não causar problemas.
Havia um tapete áspero em que Kurdis limpou a sola dos pés imitando o oficial. Havia um cheiro bom de comida no ar, como se estivessem de cara com uma cozinha.
Que cheiro é esse? Minha barriga está roncando.
Havia um segundo vestíbulo dois degraus acima e dali, três portas que pareciam ter sido feitas para admitir gigantes. Seguiram pela esquerda onde havia uma sala ampla com cinco janelas que davam vista para o canal. Atrás de uma mesa redonda estava sentado um homem barbudo com grossas sobrancelhas e um livro nas mãos. Ao lado dele uma diminuta lareira estufa de ferro, com uma panela fumegando sobre a chapa quente.
Kurdis salivou.
— Bom dia, meu senhor. Eu trouxe o rapaz, como pediu.
O homem tirou os olhos do livro e fez um gesto. — Ora, sentem-se. — Sua vista parecia cansada, apoiada num par de olheiras fundas.
A mesa estava servida com frutas, pães, mel, peixe frito empanado em farinha de pão, queijos, leite, chá, entre outras coisas.
— O desjejum é a refeição mais importante do dia. É uma satisfação partilhá-la com vocês hoje. Franco, sirva uma concha do guisado da Palmeni.
O criado serviu três pratos de louça branca, pintados a mão com tinta dourada com adornos complexos e pequenos galos. Serviu o senhor da casa, depois o oficial e, com uma expressão azeda, Kurdis, por último.
— Camarões, banana-da-terra e queijo de alcávia. Uma especialidade de minha incrível cozinheira. — explicou Jargen Tannis.
Kurdis pegou os talheres de prata e os manuseou conforme a etiqueta kedpirense sob o olhar atento do senhor Tannis.
Por todos os deuses! Que comida maravilhosa!
— É maravilhosa! — Kurdis deixou escapar.
— Que bom que apreciou. Fiquem à vontade. Sirvam-se do que quiserem.
Kurdis continuou mastigando em silêncio e colocou uma fatia de presunto e frutas em seu prato. Kravel também comia em silêncio.
— Franco, tenha a bondade de nos deixar. Pode fechar a porta.
Kurdis continuou comendo. Não sabia o que dizer...
— Mas não o chamei aqui hoje apenas para desfrutar de um lauto desjejum... Fiquei sabendo do incidente com o assaltante. E você escapou com vida... Alguém poderia dizer que foi sorte, mas sabemos que não é o caso.
— Desculpe senhor, mas...
— Alguns de meus homens suspeitam, mas tenho certeza que é um feiticeiro foragido de Kedpir.
Kurdis abaixou os talheres e perdeu o apetite.
— Para sua sorte, não sou nobre, político ou militar... Eles poderiam logo estar inclinados a deportá-lo para manter boas relações com Kedpir e com os Mahiari. Todavia, eu sou apenas um comerciante vivendo em tempos de competição acirrada.
— O que quer de mim?
— Quero ajudá-lo e quero que, em troca, ajude nossa casa a prosperar.
— Entendo. Seria um negócio arriscado.
Jargen pegou uma posta de peixe frito com as mãos e comeu metade. — Desculpe — falava de boca cheia — Em primeiro lugar, você precisa desaparecer, como este peixe. — e comeu o restante.
— Em segundo lugar, é preciso resolver a tensão criada com o Véu Cinzento.
— Foi o senhor que mandou aquele ladrão?
— Ora, não!
— Foi o duque?
— É provável, mas não é certo. A negociação não concluída com o duque causou certo barulho. Outras pessoas, outras casas, podem ter ficado sabendo do assunto. É difícil ter segredos numa cidade como esta. Você parecia uma presa fácil. Um estrangeiro foragido, possivelmente com problemas com a lei em Kedpir. O Véu agora sabe que você é um feiticeiro...
— O que é esse Véu?
— É uma sociedade de ladrões e assassinos. O quarto poder de Dera. Em primeiro lugar, está a nobreza. Em segundo, as sacerdotisas, em terceiro, as casas comerciais. Estamos sempre em disputa para saber qual tem o maior poder de fato.
— E quanto aos Shirogues?
— Diferente dos feiticeiros de Kedpir, da Zanzídia ou da Kunéria, os nossos magos não exercerem poder ou função importante em nossa sociedade. São bons clientes, mas nada mais que isso. Não significa que não devamos nos preocupar com eles. Eles poderiam capturá-lo e deportá-lo facilmente. Já vimos isso acontecer, vez ou outra.
— Como resolver o problema com o Véu?
— Sim. Precisamos resolver o assunto da sua "relíquia de família".
— Como?
— Você precisa vender a peça ao Duque de Corbal. Somente assim a demanda dele, ou de um terceiro, irá cessar. Já se sabe que a peça tem grande valor.
— E se eu me recusar?
— Temo que esta não seja mais uma opção. Pense no negócio como um depósito. A "relíquia" ficará guardada na coleção de Corbal. Começaremos o nosso trabalho e haverá muito lucro em nosso caminho, tenho certeza.
— Como sabe que minha magia vai ajudá-lo a lucrar?
— Meu avô contratou um feiticeiro da Zanzídia. Custou muito caro, e a margem de lucro foi pequena. Mas houve lucro, está tudo nos livros. No seu caso, tenho certeza que poderemos chegar num acordo lucrativo para as duas partes. Afinal, você já deve estar se casando do Turzo e de viver naquela espelunca nos fundos do Castelinho, não é mesmo?
— Tem razão. — Kurdis mordeu um linojuço amarelo e suculento — Já tive o suficiente.
— Diga-me, Kurdis. Que tipo de feiticeiro você é? Qual a sua especialidade? Ilusões, comunicação, transmutação?
— Eu trabalhava como guldo e minha especialidade é o fogo.
— Um mago combatente! Por Dromeon! Não poderia ser melhor que isso!
— O que quer dizer, senhor Tannis? — Kravel que apenas comia e ouvia, falou pela primeira vez.
Jargen esboçou um sorriso malvado e disse. — Que dizer, meu caro, que é hora de derrubar a concorrência!
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