19. Véu Cinzento
Kurdis acordou com a claridade que entrava no quarto pelas festas e furos da janela. Usou a água fria da jarra e a bacia para lavar o rosto.
Quando desceu, encontrou-se com Djista.
— Bom dia — ela disse.
Kurdis retribuiu.
— Peço desculpas pelo que meu irmão lhe disse ontem.
— Não tem problema...
— Por favor, aceite um chá e biscoitos como um pedido de desculpas da hospedaria.
Kurdis seguiu a mulher até a cozinha. Havia ali uma mesa para dois lugares. Ele se sentou e aguardou que ela servisse o chá no caneco de cerâmica crua.
Ela tem olhos bonitos.
— Você me lembra meu marido.
— Ispto é bom ou ruim?
— Acho que os dois. — ela deu um sorriso torto.
O sorriso é desigual, mas adorável. O que estou pensando? A última coisa que quero é arranjar problemas com uma mulher. Minha vida já está complicada demais!
Kurdis bebeu o chá. Estava adoçado com melado.
— Obrigado pelo chá. Eu ter sorte de encontrar pessoas quel tu e Gustapo.
— Gustapo passou por maus bocados.
— Saber o que aconteceuro?
— Ele ficou aqui. Tinha muitos ossos quebrados. A boca estava muito machucada... Perdeu muitos dentes. Ele trabalhava para os Varuingos, mas alguma coisa deu errado e ele foi espancado e atirado ao mar. Os Tannis o pescaram e cuidaram dele. Isso aconteceu há muitos anos. Eu era jovem e tola, minha mãe ainda dava conta de todo o serviço junto com meu pai.
— Por que jovem e tola?
Ela se sentou, serviu chá para si mesma, mas não bebeu. Ficou apenas olhando para dentro do caneco com um olhar triste e cansado.
— Eu acreditava que poderia escapar ao destino. Que me casaria com alguém que ia me tirar desse buraco. Agora entendo... Não se foge do seu destino.
— Mas você se casou...
Ela bebericou o chá e espremeu os lábios.
Torce a boca do mesmo jeito que a Estirga.
— Outra tolice. Caí nos encantos de uma pessoa... Eu engravidei, me forçaram o casamento. Depois a criança se foi. Fiquei presa a um marido que raramente estava aqui. Que tinha uma mulher em cada porto... Alguém que não me valorizava. Quando soube que ele não voltaria mais... Que a Senhora dos Mares me perdoe, mas fiquei contente. Estava livre. Me desculpe... Desculpe falar sobre meus problemas.
— Não se preocupe. Eu saber como é... Sentir o pesado do passado.
— Enfim! Minha mãe sempre me falou que o certo é se conformar. Que a Senhora dos Mares escreve o nosso destino nas conchas. E que temos que aceitar.
Não é a primeira nem última vez que vou ouvir alguém com discurso conformista. É... isso não é pra mim.
— Muito obrigado pelo chá e pela conversa, senhora Djista. Mas estou atrasado e sei bem que meu destino, por hoje, é ser xingado pelo Turzo.
Ela riu.
Maldito sorriso encantador...
— Eu o conheço bem. Há muitos homens com a boca suja nessa vizinhança, mas Turzo é o mais boca podre de todos! Aqui... Leve uns biscoitos para ele. Diga que seu atraso de hoje foi por minha culpa e que peço desculpas.
— Muito obrigado, Djista! Não ir me esquecer dipsto.
Kurdis desceu a pinguela que rangia apoiada pelas palafitas.
Você não deve ficar imaginando coisas... E por que mulheres mais velhas ficam cruzando o meu caminho?
Normalmente Barsu o acompanhava até o trabalho, mas não hoje, estava atrasado. Apertou o passo entrando no pequeno labirinto de becos e ruelas. Havia muita sujeira, moscas, baratas, ratos e morvins. Não havia morvins em Kedpir. Eram como pequenos cães com longos bigodes pretos, muito peludos de pelo marrom, orelhas rosadas e que andavam em pequenos bandos. Pareciam mais ratazanas do que cães, mas cauda peluda e focinho eram definitivamente atributos caninos.
Os ratos e baratas comem os restos dos humanos e os morvins comem os ratos e baratas. Algumas pessoas comem morvins assados, sem as entranhas e pelos, em espetinhos. São os ciclos da natureza... É o que diria mestre Lorran.
Kurdis entrou num beco estreito, por onde só passava um homem de cada vez. As construções eram altas, dos dois lados e se uniram na altura do terceiro pavimento, deixando o beco sob a penumbra. Viu um bando de morvins brigando pelo cadáver de uma ratazana bege, recém-abatida. Eles emitiam gemidos agudos e irritantes. Abriram as bocas mostrando a língua azul e os dentes pontiagudos.
Como alguém pode comer esses bichos nojentos? Por que será que não criam porcos ou han'jacus?
Foi então que sentiu o ferro frio em sua nuca.
— Não se mova — veio a voz nasal de trás de si.
— Tenho apenas biscoitos e dois moedas.
— Fique com eles.
Os morvins seguiam ganindo feito loucos.
— O que querer?
— Eu quero saber onde escondeu a foice.
— Foi tu! Entrou no minho quarto.
O bandido cortou a pele. Kurdis sentiu o pescoço arder e um fio de sangue escorrendo.
— Essa faca é muito afiada, um pouco mais e você está morto. Onde está?
— Se eu contar aqui, você vai me matar.
— Maldito strobo! Fale de uma vez!
— Está com o senhor Kravel.
— Não minta — cortou um pouco mais no pescoço, deixando o corte mais alongado e segurou a orelha puxando-a lentamente e com força. Kurdis sentiu um forte bafo azedo de cebola. — eu o vi levando o embrulho para aquela espelunca.
— Está no meu quarto... Embaixo da... — Kurdis escorregou a mão, fazendo dois dedos entrarem na fresta da bolsa e tocar na vara de madeira.
— Embaixo da onde? — ele pressionou a faca ainda mais, então, ela escorregou de sua mão, virando de lado.
— Mas o quê? — isso nunca lhe acontecera antes.
Kurdis deu um coice atingindo a perna do bandido e se atirou para a frente. O homem deu um passo para o lado e se apoiou no muro úmido. Ajeitou a faca e avançou para cima de Kurdis. Um clarão vermelho o cegou. E então gritou. Seu rosto, seu gorro e seus cabelos estavam em chamas.
Kurdis estava caído e escorado na parede. Segurava a varinha com as duas mãos, apoiando a base dela no chão de terra batida.
O bando de morvins se assustou e correu em fila para fora do beco.
O bandido correu, mas tropeçou. Kurdis se levantou e tocando a base da varinha na parede fez o fogo recuar da cabeça e crescer ainda mais ao incendiar as roupas do homem.
— Diga quem o mandou e apagarei o fogo!
O rosto do bandido estava em carne viva e se contorcia horrivelmente — Breffen... Foi Breffen...
— De que casa?
— Do Véu Cinzento.
Kurdis arrastou a varinha na parede e fez as chamas crescerem. O bandido gritou e se torceu como um siri atirado na água fervente.
Guardou a varinha na bolsa, apertou a mão contra o corte na lateral do pescoço e foi até o armazém.
Chegou no local, pálido e suando frio. Foi socorrido por Judu e Nimbvo.
Judu o ajudou a se recostar — Tule, traz um pano. Barsu. Aguardente!
— O que aconteceu? — indagou Nimbvo.
— Um assaltante tentou me matar.
— Assaltante? Mas onde?
— Nos becos, sei lá. Acho que me perdi.
— Olha só Barsu — disse Judu — Você deixa o stravo um dia sozinho e o bicho quase perde o pescoço! Bebe um gole... — e então derramou o álcool no ferimento.
Kurdis fez uma careta e se segurou para não gemer. Disse entre dentes. — Ardido por fora e por dentro.
— Mas que merda é essa, seus cocôs-de-morvin? Por que não estão trabalhando? Ah, já devia saber! Esse strobo-mijo-de-tarufa!
— Um assaltante... — Nimbvo começou a dizer, mas foi cortado.
— Assaltante é seu cu! Aposto cem pratas que era alguém atrás daquela merda que esse strobo-teimoso-cagalhão-cheirador-de-rola não quis deixar o senhor Kravel guardar!
— O senhor estar certo — disse Kurdis recobrando a cor no rosto.
— Pois devia ter morrido devido a sua teimosia! Levanta daí e senta ali. Vou costurar esse seu pescoço, esse corte aí não vai parar de sangrar.
— Obrigado.
— Obrigado é o caralho! Vou descontar o tempo que me fez perder...
Kurdis tirou o embrulho da bolsa. Estava tudo amassado.
— Biscoitos que a senhora Djista mandou para você.
Eu pediria desculpas por amassar tudo quando caí, mas acho que isso só daria motivo para ele gritar e xingar ainda mais.
Ele abriu e encheu a mão com farelo e pedaços dos biscoitos. E enfiou na boca, deixando um tanto cair pelo peito e pela barriga.
— Judu, — chomp-chomp — cadê a porra do meu estojo?
— Já vai, senhor Turzo!
— Já ouviram falar de um tal de Breffen?
Kurdis olhou para cada um deles. Estavam todos ali, ao redor, mas ninguém disse que sim, ou esboçou alguma reação de reconhecimento.
Turzo começou a suturar.
— E Véu Cinzento, o que é? — indagou com os lábios torcidos, resistindo à dor.
— Ah, mas que merda! Alguém me explica por que caralhas estou costurando o pescoço dum homem morto?
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