17. Novo lar
Depois de duas semanas sem sinais de outros feiticeiros Shirogues, Kurdis conseguiu diminuir um pouco a tensão. De uma hora para outra, passou a entender quase tudo que os deranos falavam. Muitos ainda achavam que ele não entendia tudo, ou não se importavam com isso. Kurdis guardou sua varinha numa bolsa a tiracolo que comprou. Depois ergueu as caixas com a metade do peso e passou por um grupo de estivadores.
— Estou dizendo, ele deve ser um feiticeiro... Anda com aquela madeira na bolsa. Ele se agacha e sussurra coisas... — disse Judu, sujeito gordo e forte, olhos azuis esbugalhados e bigodes castanhos que desciam pelos cantos da boca até o queixo.
— Não é nada disso, Judu... A vara é o marido do strobo. São sussurros de saudade! — zombou Barsu o grandalhão ruivo com barba e cabelos desgrenhados.
Os estivadores deram gargalhadas.
— Além disso, todos sabem que feiticeiros kedpirenses usam longos cajados. — falou Tule que tinha braços longos, fortes, pernas magras e cintura fina. Um tipo de físico que atraia mulheres, ainda que seu rosto não fosse muito belo.
— Você é mesmo muito burro, Judu! Um feiticeiro fazendo trabalho braçal? Suando o dia inteiro para ganhar uma prata por dia? — disse Nimbvo, cuja pele vermelha denunciava algum parentesco com o povo Hiarawa.
— Pode ser que não seja isso... Mas o sujeito é estranho, Nimbvo! Ele me dá arrepios.
— E você sempre está falando merda pelos cotovelos, Judu. Como daquela vez que dizia que o Gustapo era um espião dos Varuingos. — atiçou Barsu.
— E a história que Jargen Tannis era o filho de tubarão andarilho, Nimbvo? Que abaixo da barba e sujeito tinha guelras. — Tule colocou os dedos, abrindo e fechando ao lado do pescoço e com a boca imitou a boca de um peixe abrindo e fechando.
— Eu sei o que eu vi!
Nimbvo, Barsu e Tule caíram na gargalhada. Mas logo ficaram em silêncio quando Turzo gritou.
— Ao trabalho, seus merdas-de-elefante-do-mar! Temos um navio para carregar! E o único que vejo trabalhando, e melhor que vocês, é o puto daquele strobo-magricela-nariz-de-grou-com-caganeira!
É bom ver o Turzo pegando no pé daqueles manés, para variar... Mas essas histórias do Judu... Burro ele não é. Isso eu vejo bem.
Kurdis empilhou as caixas no vagão, esperou que os demais fizessem o mesmo.
— Ei, Judu. Vem aqui.
O estivador largo, mas baixo, pressionou os lábios.
— Pode vir, não vou transformar tu niunu siri nem nada asstim! — disse Kurdis num deravo ainda deficiente, mas compreensível.
Judu se aproximou desconfiado.
— Não entendi tudo... Mas vi que os amigos teus, zombar tu.
— Seu deravo melhorou muito. Já vi estrangeiros que demoram meses para falar nossa língua.
— Eu sabia um pouco, mas esquecer tudo quase...
— O que quer stravo? — ele usou a forma não depreciativa para estrangeiro.
— Sobre Jargen Tannis. Será que poder tu me contar o que viu? Eu entendo um poucado de magia, saber? Eu trabalhei como assistante de um feiticeiro niu reino meu. Já ver um feitiço que fazer crescer guelreas no pescoço de pessoa uma.
— Está dizendo que acredita em mim?
— E por que ir inventar tu uma coisa dessas? Contar tu...
Judu encolheu os ombros massudos que se juntavam a cabeça, quase sem mostrar o pescoço.
— Uma vez, eu estive na tripulação do Mergulhão. Estávamos ancorados na enseada dos tubarões. Um lugar infestado dessas pragas. Era fim de madrugada. Eu tinha comido algo estragado. Não dormi a noite toda com dor de barriga. Todos dormiram e subi para o convés para tomar um ar. Acabei me sentando no alçapão da proa e cochilei. Acordei com passos, mas Jargen não me viu. Ele tirou toda a roupa. Desceu pela amurada e mergulhou. O alvorecer já clareava as águas. A enseada dos tubarões tem águas muito claras, tem muitos corais e florestas de algas. Eu pude ver que mergulhou fundo. Demorou tanto, que achei que ele ia morrer sufocado. Ele voltou das profundezas rodeado por tubarões. Mais de vinte! Eu achei que eles iam comê-lo! Mas ele nadou entre as feras tranquilamente. E só depois subiu ao convés. Sua barba estava escorrida. Ele assoou o nariz, ou algo assim, então, vi vários espirros de água saindo das laterais do pescoço. Não só isso, vi as fendas enfileiradas com carne muito vermelha que expulsavam os borrifos de água. Na hora me lembrei das histórias do tubarão andarilho que sai do mar, assume a forma de um homem muito bonito e engravida mulheres. Enfim... Essa é a história. Acha que pode ter sido magia? É isso que pensa?
— Sim... Eu não ir duvidar disso. Onde ficar a enseada dos tubarões?
— Do outro lado de Trentos.
— A ilha dos feiticeiros, não ser ipsto?
Judu ergueu as sobrancelhas, como se estivesse encontrado uma nova explicação para o que viu.
— Mas que porra, strobo! Só porque acabei de te elogiar, não significa que pode ficar aí parado escutando essas porcarias do Judu-miolo-de-polvo! Ao trabalho, os dois! Pela senhora das algas! Será que não posso ficar dez minutos sem gritar como vocês, seus molengas-sovacos-de-lampréia!
Kurdis seguiu o restante do dia de trabalho e com a sineta, voltou para o sobrado da tia Darusca. Ganhava o suficiente para alugar um quarto com uma refeição noturna, todos os dias.
A hospedaria ficava a três quadras do armazém. O caminho até lá era um pequeno labirinto de becos.
O sobrado foi construído de modo irregular sobre palafitas no final do canal. Ligava, com pontes tortas e de aparência frágil, o fundo dos dois quarteirões divididos pelas águas. Uma vez o rei mandou derrubar o lugar devido a sua construção irregular, mas a Casa Tannis interferiu e conseguiu impedir a demolição. Desde então, Darusca dava descontos aos empregados dos Tannis.
— Bona noite, tia.
— É boa noite, seu moço!— a voz rouca grasnou de volta. A velha desdentada, usando um lenço cinzento amarrado na cabeça, ficava quase o dia todo sentada numa cadeira acolchoada ao lado da porta. — a sopa já está servida.
O jantar era sempre sopa acompanhada de pão velho e duro. Os ingredientes eram os mais baratos. Cabeça de peixe ou siri, algas, tatuí-mirim, miúdos, rabo ou barbatanas. Tudo que era descartado pelo restaurante de segunda que ficava na entrada da via d'água. As filhas e filhos de Darusca que cuidavam da hospedaria, sendo que o mais jovem era auxiliar de cozinha no Carapeba. Lá, um bom filé de peixe com mariscos custava o equivalente a meio mês de aluguel ali no tia Darusca.
Ele e Barsu chegaram juntos e sentaram-se lado-a-lado na mesa longa para cerca de vinte.
Djista, era um pouco mais velha que o estrangeiro e parecia gostar dele, pois no seu prato sempre vinha uma concha com uma cabeça grande, ou alguma iguaria que faltava no prato dos outros hóspedes. Ele roía ou triturava tudo, pois estava sempre faminto e à beira da exaustão.
— Obrigado, Djista.
— Por nada, senhor Kurdish. A sopa é de agulhinhas empanadas. Mastigue bem para não arranhar a garganta. — a mulher deu um meio sorriso para ele. Se vestia de modo sóbrio. Lenço e roupas cinzentas que não mostravam nada de seu corpo.
Assim que ela se afastou, Barsu, que já morava ali há alguns anos, comentou.
— A Djista é viúva. Perdeu o marido há coisa de uns três anos. Um naufrágio. Parece que ela gosta de você, strabo.
Kurdis olhou-a novamente, mexendo o panelão de sopa com uma pesada colher de pau. Não era nem magra e nem gorda. Apesar da roupa, dava para ver que tinha as curvas nos lugares certos. E seu rosto era direito, principalmente os dentes, limpos e corretos.
— Gosta de uma viúva recatada? — Barsu bateu em seu ombro. — Ela não é fácil, eu e metade dessa mesa aqui já tentamos alguma coisa... E também, ela está sempre sob a vigília do Touro. Por falar no Kraken... — ele apontou para fora.
Touro vinha pela pinguela do outro lado do canal. Dava para vê-lo pelas janelas abertas. Ele trabalhava na guarda. Vinha andando com seus ombros largos e peitoral de escamas reluzentes sob a luz crepuscular. Logo subiu a escada e entrou pela porta dos fundos.
— Boa noite, irmãzinha. — ouviu-se sua voz grave. Ele abraçou Djista e, em seguida, veio para a mesa com um prato servido nas mãos.
— Hoy, Touro! Como estão os traseiros daqueles palermas reais?
— Sujos de prata e ouro, como sempre.
— E o velho rei? Ainda trancado em sua fortaleza?
— O filha da puta nem mostra o traseiro nas latrinas de sua torre. Sobra pro velho Morguel recolher o penico fétido com sua diarreia infernal todos os dias.
— Estou jantando aqui! Poderia parar de falar na merda real? — resmungou um dos hóspedes.
Barsu o ignorou. — Ele está mesmo doente?
— Morguel me contou que está magro e pálido como a sua bunda. Se o velho morre, pode haver uma guerra entre as grandes casas. A rainha não está melhor, visto que não consegue embuchar. Falam na anulação do casamento. Daqui a pouco vamos ver um novo desfile de princesas no grande canal para dar ao nosso reino um príncipe herdeiro.
Kurdis escutava a conversa com interesse, chegando a se esquecer de seus próprios problemas.
— Escreva o que estou lhe dizendo, meu velho. Não dou um mês para aparecerem aqui princesas da kunéria e de Kedpir. Quem ganhar essa disputa e se aliar ao nosso reino, pode bem ter uma vantagem decisiva na guerra.
— Há notícias da guerra? — indagou Kurdis.
— Você não veio pra cá fugindo da guerra? — perguntou o Touro.
— É o que todos dizem.
— Pois então, seu strobo covarde! Saiba que seus conterrâneos, não contentes com a expulsão dos kunes, agora estão mandando seus exercícios invadir a Kunéria.
— Caelum! — Djista apontou a colher de pau e olhou zangada para o Touro. — Olha como fala com um hóspede!
O Touro corou e então disse — Me desculpe... Eu não pensei bem...
— Sem problemas. Já me acostumei com tratamento pior por parte de meu chefe, Turzo. — Kurdis se levantou. — Senhora Djista, a sopa estava excelente como sempre. Se me dão licença, vou dormir. Amanhã o trabalho começa bem cedo.
Kurdis subiu para seu quarto, pensando naquela notícia. Quando entrou, tomou um susto. A pequena janela estava aberta. O colchão virado no chão.
Um ladrão! Minha foice!
Kurdis verificou o fundo falso, no canto, sob o assoalho. Tentou abrir. Estava fechado. Tirou a varinha da bolsa e suspendeu o feitiço de cola. A ripa de madeira estava solta, e quando a suspendeu, viu a lâmina negra sugando a luz das velas de seu candelabro. Suspirou aliviado.
Continua aqui! Seja quem for... O maldito não a encontrou. Quem fez isso? Jargen Tannis, Kavrel? Ou alguém contratado pelo Duque de Corbal? Será que os Tannis são mesmo gente honesta?
Kurdis ajeitou o colchão sobre o estrado da cama. Fechou a janela e acendeu um fogo que fez flutuar pelo quarto para tentar queimar o ar fedorento que vinha de fora. Depois se deitou e ficou pensando na conversa que tivera com Kravel, uma semana antes.
— Não seja teimoso, Kurdish Deixe-me guardar a foice para você num lugar seguro!
— Obrigado, mas posso cuidar muito bem dos meus pertences.
— Não devia deixar uma coisa tão valiosa desprotegida! Vai acabar se arrependendo.
— Agradeço o conselho. E agradeço também por desfazer o negócio e por tê-la me devolvido.
— Ainda vai se arrepender por tamanha teimosia!
Ele deixou aqueles pensamentos de lado. Antes de dormir, aplicou um feitiço de cola na janela e na porta.
Só assim poderei dormir tranquilamente.
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