12. Chegada em et'Colmont
Kurdis precisou encontrar outro jeito de ocultar a foice. A solução foi escondê-la e entregar aos magos da escola o arco das sombras que recuperou do kune recentemente derrotado. Foram dois dias fazendo relatórios e dando explicações. De um lado para os militares, do outro para os feiticeiros, sendo esses últimos bem mais detalhistas em suas indagações.
Kurdis estava sentado diante de três feiticeiros mais velhos de sua ordem. Entre os três, apenas a mulher era da ordem dos guldos e apta a participar das de batalhas.
Entre o jovem e os demais estava uma mesa redonda com um belo tampo de mármore branco com veios rosados e esverdeados. O arco sombrio, feito do metal preto, era uma presença incômoda. Tinha seus contornos sublinhados pela brancura da mesa.
São tão diferentes... Será mesmo que são todos meus parentes. Essa Eriana eu sei que é... Não gosto do jeito que ela me olha. Será que ela sabe que me deito com Estirga? Ou será que ela desconfia...
Os dois feiticeiros examinavam o artefato atentamente, sem tocá-lo. Poyham, fora seu professor de língua antiga. Kurdis não tivera grande amor por disciplinas teóricas, mas gostava do velho professor. Ele tinha fala mansa, um grande nariz achatado e longas barbas brancas penteadas de forma a terminar em cachos curvos e simétricos. Usava seu habitual manto cinza esverdeado. Ele examinava as inscrições na lateral do arco.
— O que diz aí, professor Poyham?
— Ike dout ner'gelab hoo treytraborut hurug chi'ampe. Do abismo a sombra que multiplica, protege e mata.
— Foi o que eu disse. Ele copiava sua imagem e todas as cópias atiravam as flechas em simultâneo.
— Como foi mesmo que o derrotou? — indagou Garluntir, o diretor da escola. Sua pele era escura como a do povo da Vertânia, não tinha metade da escuridão que emanava do metal do arco. Ele tinha um par de olhos grandes, cor de mel, emoldurados pelas grossas sobrancelhas brancas.
Gosto do olhar dele menos ainda...
— Com um cone de chamas.
— Estavam assim, tão perto? — veio Eriana. Ela vestia um belo manto azul-celeste, seu rosto era largo, as laterais da cabeça raspadas e acima da cabeça seus cabelos castanhos claros formavam um coque.
— Sim, não pudemos vê-lo de imediato, pois tomava cobertura nas brumas das Colinas Vaporosas.
— E você escapou ileso?
Se eu contar, ou mostrar qualquer uma das cicatrizes, vão descobrir. Eu não sei curar, Estirga também não...
— Sim, tive sorte. E estava mais atrás, no momento em que vieram as primeiras flechas. O soldado Toró foi atingido na cabeça e morreu primeiro. Mas outras flechas atingiram Rolok e os demais. Eu tomei cobertura atrás de uma pedra e lancei um jato de chamas para tentar deslocar o ar. Deu certo, foi quando puder ver cinco arqueiros kunes, todos parecidos. Foi quando os cobri com um jato de chamas que percebi que quarto deles eram cópias ilusórias.
— Parece que você teve realmente muita sorte, irmão Daman. — disse o diretor. — Qualquer feiticeiro, ou mesmo soldado de meia competência, teria concentrado seu fogo num feiticeiro, antes de tudo.
— Sim. Talvez a visibilidade ruim...
— Não creio — interrompeu-o Eriana. — se fosse mesmo o caso de visibilidade ruim, teria ele a capacidade de acertar todos soldados e de maneira tão letal?
— Estou apenas dizendo...
Eriana bateu a mão sobre a mesa e inclinou-se na direção de Kurdis.
— Não façamos rodeios, senhores. Diga-me, irmão Daman. Não é verdade que vem ocultando um artefato do abismo?
— Sinceramente! Entendo a preocupação, mas não. Não mesmo! Estou apenas cumprindo meu dever. Arriscando minha vida, cumprindo o juramento que fiz ao aceitar a ocupação de guldo. E o que ouço de meus superiores? Acusações!
— Vamos Eriana... — veio Poyham num tom apaziguador. — O rapaz tem razão. Estamos numa guerra. No final dela, queira Guidewan! Não é hora para alimentar querelas entre nós!
Eriana recuou, cruzando os braços. Garluntir manteve o olhar penetrante sob Daman.
— Você conhece nossas tradições. Sabe a consequência de mentir diretamente para seus superiores sob questões tão graves... Está dispensado.
Kurdis saiu dali suando frio.
E se eles mandarem alguém até às colinas para investigar? Obviamente, vão descobrir que eu estava mentindo. E o pior, verão que fui eu mesmo que matei aqueles homens. Por outro lado, poderá não haver muito o que investigar depois que animais carniceiros tenham feito seu trabalho.
Para alívio de Kurdis, os reforços aguardados pelo General Barsh chegaram poucos dias depois do seu como único sobrevivente da patrulha. E, finalmente, o exército de Kedpir marchou para expulsar o que restava dos invasores de seu território.
Com sorte, ninguém irá até às Colinas Vaporosas.
Foi também um alívio para ele quando as tropas marcharam para o sul pelo litoral, evitando as colinas.
Uma sequência de duras batalhas levou o exército às portas do Forte et'Colmont onze dias depois que deixaram Valta. A batalha do dia anterior, fora a pior de todas impondo grandes baixas no exército de Kedpir, incluindo a morte do General Barsh e de três guldos. Para o assalto final ao forte, restavam apenas Daman, Estirga e sua parente, Eriana, e mais quarto guldos. Daman era o mais jovem guldo que ainda seguia lutando. Seus colegas de classe estavam mortos, aleijados ou tão feridos que não tinham mais condição de combater.
Kurdis sabia que aquela batalha seria decisiva e trouxe consigo a foice de guerra. Ele não a segurava no momento, estava presa a uma alça em suas costas, enrolada numa lona. A ponta curva virada para baixo.
Eriana, a mais graduada feiticeira de combate, veio até ele. Ela tinha as laterais da cabeça tapadas e usava os cabelos caídos sobre as costas, como uma crina aloirada. Ela cutucou o embrulho preso às costas de Daman com seu cajado.
— Então, você mentiu a respeito da foice sombria.
— Sim, eu a entregarei assim que vencermos essa batalha. A senhora sabe que podemos precisar dela para derrotar Carc'limar.
Ela postou-se em sua frente e fez um feitiço. Kurdis observou o brilho em seus olhos.
— Conto com isso. Posso ver que ela já exerce alguma influência em sua mente. Já percebeu?
— Senti o frio subindo. Os sussurros. Mas acredite, eu a tenho sob controle e não o oposto.
— Reze a seu Deus favorito para continuar desta forma.
— Entendo o que quer dizer, senhora, mas não posso fazer isso. Preciso confiar em minha própria capacidade e não e em alguma força externa.
— Percebo que não é uma pessoa de fé. A fé tem também sua utilidade.
— Não deveriam os magos confiar apenas na realidade?
— E pode julgar que a realidade prescinde da presença dos deuses?
— Talvez não...
— De qualquer modo, sua atitude será levada ao Grão-Mestre. Se ele for misericordioso, poderá manter sua cabeça presa ao corpo. E quanto a Carc'limar, é possível que seu julgamento esteja correto: muitas vezes apenas o mal consegue deter o mal.
— Eu sinto isso.
— Rezo para que depois dessa batalha, ainda lhe reste alguma oportunidade para redenção.
— Eu sei que sim. Quero vingar a morte do mestre Lorran e nada mais.
— Responda-me sinceramente, irmão Daman. Você foi alvejado pelo arqueiro, não é mesmo?
Kurdis arregaçou a manga e mostrou a cicatriz do ferimento.
— Sim, mas a foice me salvou.
— Compreendo. E foi por isso que teve que mentir, estou certa?
— Sim senhora.
— Muito bem, que os deuses nos favoreçam em mais esta batalha. Eu vou para a vanguarda. Tente obedecer às ordens de seu capitão.
Não posso dizer que estou torcendo para que ela saia daqui com vida. Seria melhor pra mim se ela morresse. É melhor eu dizer alguma coisa...
— Boa sorte, senhora!
Eriana olhou para trás e fez um breve aceno com a cabeça. A feiticeira caminhava de nariz empinado, envolta em seu manto azul e curto na base, mostrando, às vezes, parte de suas longas botas de couro vermelhas.
Ela não se parece em nada com a Estirga... Talvez as coisas melhorem entre nós depois da guerra. Ela não gostou nada de ter ficado sem notícias quando saí para aquela maldita patrulha. Ela estava certa. Eu devia ter ficado quieto e esperado. O que ganhei fazendo aquela patrulha? Nada, exceto a morte de Rolok e dos outros soldados.
Os sons das cornetas tiraram Kurdis de seus devaneios. Ele olhou para o forte no alto da colina. O restante do contingente kune estava lá dentro, aguardando o ataque. Seu capitão, à frente, sinalizou com a espada em mãos. O exército se dividiu em quarto batalhões e cada qual se posicionou para atacar um dos flancos de et'Colmont. O inimigo tinha muitos homens dentro das muralhas, e o ataque por todos os lados visava dividir a capacidade defensiva.
Seu batalhão se posicionou no flanco esquerdo. Estirga tinha ido para a retaguarda, enquanto, na frente, estavam Eriana e três outros guldos visando derrubar o portão.
Muitos soldados vão morrer nesse ataque estúpido. Um cerco teria sido mais eficiente. O capitão disse que a melhor estratégia era atacar antes que os reforços do inimigo viessem do sul. É a melhor estratégia para vermos um banho de sangue, isso sim!
O morro que tinham que vencer até chegar à muralha era íngreme e cultivado com arbustos espinhosos. Os homens tinham cerca de uma dúzia de escadas construídas. Muitos deles tremiam. A atmosfera de medo e apreensão tomava conta.
Então a corneta do batalhão principal soou. Ta-dam! Logo as demais se uniram a ela. Ta-ta-ta-daaaam!
— Avançar, escadas! — gritou o capitão — Arqueiros, avançar!
Por Lorran! Esses pobres bastardos! Bastardos corajosos!
Kurdis observou por alguns instantes o avanço dos grupos de soldados, escudos sobre as cabeças. Juntos em bloco levando as escadas, morro acima. Do alto, começaram a chover flechas. Os gritos de guerra foram dando lugar aos gritos de dor de soldados e arqueiros que eram atingidos. Muitas flechas eram disparadas para cima, mas poucas atingiram arqueiros kunes protegidos lá no alto.
— Guldo, cobertura! — o capitão apontou para a escada.
Kurdis não precisou avançar muito para disparar pequenos projéteis flamejantes da ponta de seu cajado. Uma escada conseguiu chegar ao muro. Kurdis lançou seu primeiro dardo de fogo para atingir a machicolação acima da escada. O buraco na projeção externa das ameias foi tomado pelo fogo, dando tempo para alguns homens escalarem as escadas.
Soldados que tombavam ao carregar escadas, logo eram substituídos por outros que vinham atrás, assim, outras escadas começaram a tocar a muralha. Kurdis não conseguia dar cobertura a todas. Uma coluna de homens que escalavam uma escada tombou quando os kunes derramaram óleo fervente pelas machicolações.
Muitos atacantes caíram, mortos ou feridos, mas finalmente homens de duas escadas chegaram ao topo para dar combate aos defensores.
Foi quando uma pata escura esmagou um soldado de Kedpir.
— Dragão! — vieram gritos.
O pescoço da besta coberta por escamas escuras se esticou acima da muralha e de sua boca jorrou uma torre de chamas que cobriu homens e escadas, uma após a outra.
Estamos perdidos!
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