10. A grande família

No dia seguinte, Estirga recobrou os sentidos, mas não conseguia andar, pois tinha muitas dores. Provavelmente estava com algumas costelas fraturadas. Kurdis facilitou o trabalho de sua égua. Usou o feitiço de levitação em forma branda, deixando Estirga bem mais leve para ir em sua garupa.

Ao passo que Mol'dan tinha febre, mas conseguia manter-se em cima do cavalo que pertencera a Solan.

Seguiram pelas charnecas por mais dois dias até se aproximarem de Jaffe.

Antes da reunião com as tropas do General Barsh, Kurdis encontrou uma pequena caverna, local que julgou ideal para esconder a foice negra.

Chamou os soldados para irem com ele, deixando os guldos feridos cuidando dos cavalos e do cozido que faziam para o jantar.

— Rolok, trouxe o embrulho?

— Aqui está, senhor Daman. — o triário entregou um fardo de mantas enrolado numa lona cinzenta.

— Amigos, como puderam ver, foi graças à foice que Rolok embalou aqui a meu pedido, que consegui resgatar os guldos em nossa recente incursão contra os malditos kunes.

Uns soldados olhavam uns para os outros sem entender bem o que se passava, enquanto outros miravam Kurdis com curiosidade.

— Essa arma tem grande importância estratégica para vencemos essa guerra. Eu vou deixá-la aqui por uns dias, pois acredito que virão feiticeiros de minha ordem e que irão confiscá-la.

— Por que fariam isto, guldo Daman? — perguntou um jovem de olhos verdes.

— Temo que o pessoal da minha ordem queria guardar a arma em algum cofre, por questões de segurança. Eles temem que a arma possa causar algum mal, mas posso lhes garantir, eu a tenho sob controle. E ela será muito útil em nossos próximos confrontos com os kunes. Então, se alguém perguntar, incluindo Mol'dan e Estirga, vocês dirão que a perdi enquanto enfrentava o mago kune que matou Solan.

— O senhor tem a nossa palavra, guldo Daman — disse o soldado Rolok ao colocar a mão no ombro de Kurdis. Os demais soldados também anuíram, pois além de admirar a coragem de Daman, sentiam-se importantes por terem tal segredo confiado a eles.

— Muito bem! Serei sempre grato a vocês por me ajudarem com isto! Façamos o seguinte: dividam-se em pares e façam uma ronda em todo o entorno antes de retornarem para o jantar. Enquanto isso, discutirei alguns assuntos com os outros guldos.

— Posso perguntar uma coisa, senhor? — veio Escau, o jovem de olhos verdes.

— Claro.

— O senhor e madame Estiga estão... — completou sua fala com gestos obscenos.

Kurdis sorriu e ficou vermelho. Fez um gesto que deu a entender que sim.

— Viu, Locas? Eu disse a você que não foi um sonho!

Todos caíram na gargalhada.

— Muito bem, pessoal. — Rolok bateu palmas — Vamos fazer essa patrulha de uma vez. Toró, vem comigo. Escau, vai com o Locas...

— Vejo vocês no jantar — Kurdis desceu na direção do acampamento.

Pouco antes de firmar o acampamento, Rolok avistou um cabrito-montês que abateram com suas flechas. Assariam as partes macias e com os miúdos, ossos e partes duras, já faziam três panelas de cozido.

Kurdis chegou perto da fogueira e disse.

— Pedi para fazerem uma patrulha nos arredores só para termos certeza de que não há kunes por perto.

— Todos eles? — indagou Estirga, que estava recostada numa pedra mais alta

— É. Assim cobrimos mais terreno, mais depressa.

Mol'dan estava melhor depois de dois dias de viagem. Estava sentando perto do fogo com uma bengala improvisada que fazia papel de cajado. Usava magia para mexer, à distância, as três panelas com uma colher de pau.

— Está cheirando bem — Kurdis se sentou perto deles.

— Certamente tem um cheiro melhor que o seu, Daman. Você continua fedendo a sangue de kune.

Ao lado da fogueira, as peças de carne cortadas e amontoadas em cima de uma lona já atraíam algumas moscas. Kurdis ignorou o comentário e esticou-se para abanar as carnes com as mãos e espantar os insetos.

— Espero que isso seja melhor que carne de murrão.

Estirga torcia o nariz para aquilo tudo.

— Pois vou passar bem a base de pão, castanhas e frutos secos.

— Você não come carne, não é mesmo? — indagou Mol'dan.

— Não sou a favor do canibalismo.

— Como é? — Kurdis já estava se cansando de abanar e bateu o cajado no chão lançando um jato de fogo que torrou mais de vinte moscas de uma vez.

— Não precisava ter feito isso. Os animais são nossos irmãos.

— Está falando sério? Moscas são nossas irmãs? — Kurdis deu uma gargalhada.

— Não espero que nenhum de vocês compreenda.

Mol'dan coçou as cascas de feridas em seu coto de perna. — Certo, faz sentido. Não devemos matar moscas e cabritos. Mas está tudo bem se matamos kunes, né? Afinal, eles não são nem animais...

Kurdis riu muito e Estirga apenas fechou os olhos e colocou as mãos sobre as costelas, como se tateasse a dor.

— Podem rir, mas a única razão pela qual estamos envolvidos nisso, Daman, é devido à magia das trevas praticada pelos feiticeiros kune.

— O tal mago Gong, que enfrentamos... Não vi nada além de magia elemental. O que é essa magia das trevas?

— O demônio de ossos e aquela foice amaldiçoada são bons exemplos.

— Lamento ter perdido a foice. Suponho que tenha sido sorte eu conseguir tirar vocês de lá com vida.

— Não se lamente por isso. Eu diria foi a providência de Fiste que o salvou de maiores problemas com aquela coisa. — Mol'dan segurou o seu coto fazendo uma careta. Doeu só de lembrar do toque gelado da lâmina da foice.

— Está doendo muito? — Kurdis apontou para a ponta enfaixada.

— Dorzinha besta, mas se não fossem os elixires de Estirga eu estaria urrando em falsete, como uma shuna no cio.

— É jovem Daman... — Estirga apertou as costelas que agulhavam de dor. Respirou com calma e então olhou-o de forma insinuante — Quando eu estiver melhor, esteja certo que vou lhe arranjar muitos meios de recompensá-lo propriamente por salvar a minha vida.

Kurdis estampou um sorriso bobo na face.

— Vou fingir que não estou aqui — disse Mol'dan embaraçado.

— O que vai fazer quanto a sua perna — Kurdis mudou de assunto.

— Estou certo que os artífices de Tédris darão um jeito nisso. Vou conseguir uma licença de pelo menos dois meses por isto.

— Isso se não colocarem você para trabalhar em algum laboratório, ou pior, como professor na escola de Val...

Estirga pressionou os lábios e olhou para baixo... Ainda não estava habituada à ideia de terem perdido o controle de Valta para os kunes.

— Nós vamos vencer essa guerra!

— Eu queria ter esse seu otimismo jovial, Daman. — Estirga ajeitou-se, puxando as pernas.

— Talvez eu esteja otimista. Acredito que é melhor crer na vitória do que esperar pela derrota.

— Minha mestra diria que isso é tolice. Ela tentou me ensinar que é preciso ver a realidade. Observar. Reconhecer a verdade por si só, e não projetar nossas ideias a respeito dela. Eu entendo as palavras dela, mas nunca consegui fazer isso.

— O Grão-Mestre me disse algo parecido. — lembrou-se Kurdis.

Mol'dan fez a colher flutuar até sua boca e experimentou o caldo de ossos. Fez uma careta e disse — É por isso, meu jovem, que mestres são o que são, e nós não.

— Vocês acham que depois dessa experiência juntos, poderíamos partilhar nossos nomes leigos?

Estirga fechou os olhos e apoiou a cabeça nos joelhos.

— Para que isso? — Mol'dan torceu os lábios.

— Sei lá? Vocês não sentem curiosidade?

— Você usa o nome de sua família... Não é mesmo, filho de Jan Mussak?

— O que sabe sobre meu pai?

— Muito pouco, comparado ao que sei sobre sua mãe.

Kurdis arregalou os olhos.

Mol'dan sabe o nome de meu pai? E conhecia a minha mãe? Nunca pude imaginar...

— Sua mãe, Plínia Janden, era minha prima. E sim, sei seu nome leigo, Kurdis. Penso que não faz mal que Estirga o saiba, já que vocês dois se tornaram íntimos.

Somos parentes? Os avós de Mol'dan são meus bisavós?

— Não fique assim tão surpreso, Kurdis. O parentesco entre feiticeiros é bem mais comum do que você imagina. Afinal, o sangue de bruxo é um atributo hereditário. E dada sua raridade, nos torna quase uma grande família.

— Ele está certo. Eu e minha mestra temos parentesco. Ela é minha tia-avó.

— Eriana é sua tia-avó? — Mol'dan deu uma gargalhada!

— O que foi? — indagou Estirga.

— Eriana é prima de minha falecida mãe.

Kurdis olhou para Estirga franzindo o cenho — Isso quer dizer que nós três somos parentes? Não é possível!

Mol'dan e Estirga caíram na gargalhada, enquanto Kurdis coçava a cabeça de nervoso.

— Já que estamos em família, não faz mal dizer nossos nomes leigos. Irina Svartlet, da casa Dassan. Quando a magia despertou em mim, tinha apenas treze anos e fiquei imensamente feliz, pois isso me salvou de um casamento arranjado com um homem horrível.

— Que interessante! O meu é Donemir Janden, meu mestre me batizou como Mol'dan em homenagem a Tus'mol'dan, o inventor da cornucópia.

— Inventor da cornucópia? Isso existe?

— Lorran me disse que fez você passar em história da magia e mais algumas disciplinas...

Kurdis encolheu os ombros.

— Se todos os bruxos são parentes, por que a ordem não mapeia as famílias para descobrir onde vão nascer os novos bruxos?

Mol'dan deu um risinho sarcástico — Você acredita que Lorran era seu vizinho por pura obra do acaso?

Kurdis ficou travado, sem saber o que pensar. Assim que uma nova pergunta surgiu em sua mente, foi atropelada pela voz de Rolok. Ele e Toró traziam grossos feixes de gravetos sobre os ombros.

— E então? Vamos aumentar esse fogo e assar esse cabrito?

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