IV - Os órgãos principais das Nações Unidas
Assembleia Geral
Como sugere o Professor Paul Kennedy, a Assembleia Geral é o principal órgão deliberativo das Nações Unidas, um verdadeiro "parlamento da humanidade"39. Em 1947, na II Sessão Ordinária, o representante do Brasil, Embaixador João Carlos Muniz, explicava a alta relevância da Assembleia Geral nos seguintes termos:
(...) a Assembleia Geral representa a consciência do mundo e suas decisões são a personificação dessa consciência no esforço de resolver os problemas que dizem respeito a todos os povos. Sem uma profunda reflexão sobre esses problemas, nunca poderemos chegar a soluções orgânicas capazes de harmonizar interesses nacionais e promover o bem estar geral. Daí a importância da Assembleia Geral, que deve ser considerada o órgão central das Nações Unidas, e ao qual todas as outras agências estão relacionadas.
Enquanto os outros órgãos tratam de aspectos fragmentários dos problemas, a Assembleia Geral observa e fiscaliza, de modo que todas as suas agências possam funcionar corretamente. Ela é o único órgão no sistema do qual participam todos os Estados membros integrantes. É o grande foro ao qual são trazidas todas as questões que interessam à comunidade internacional. Por esse motivo, a Carta não coloca limites à sua competência; pelo contrário, ela a define nos termos mais amplos possíveis para que todos os temas que afetam as relações internacionais sejam incluídos em sua jurisdição. (...) A Assembleia Geral, com seus meios para disseminar ideias, é o órgão que está primordialmente equipado para criar uma opinião pública mundial.40
De fato e de direito, a Assembleia Geral é o órgão plenário das Nações Unidas, onde todos os seus Estados-membros têm representação permanente41 e a exercem, por meio do voto individual e unitário, sem recurso a veto. A igualdade soberana é garantida pelo caput do artigo 2 da Carta. É verdade que, durante a Conferência de São Francisco, as grandes potências, especialmente os EUA, consideraram a hipótese de reservar para si mais de um voto na Assembleia Geral, para marcar seu status diferenciado – assim como o
veto o faz no Conselho de Segurança. No fim, prevaleceu a tese de cada país um voto. A URSS valeu-se de estratégia diversa que, de certa forma, foi mais eficaz: obteve a aceitação, como membros plenos das Nações Unidas, de duas de suas repúblicas constituintes, a Ucrânia e a Bielorrússia, assegurando-se, assim, três votos favoráveis em qualquer decisão do órgão42.
A cada ano, normalmente, em setembro, inicia-se uma nova sessão da Assembleia. Ao longo de cada uma delas, os Estados debatem os mais variados temas das relações internacionais contemporâneas – tais como crise de segurança nas estradas, orçamento das operações de manutenção da paz, efeitos da radiação atômica, tratado sobre o controle do comércio de armas convencionais e a reforma do Conselho de Segurança43. Por exemplo, na 67a Assembleia Geral, iniciada em setembro de 2012, a agenda consistia em 170 itens, muitos deles divididos em vários subitens44. O Presidente da Assembleia é escolhido para mandato de um ano, entre os indicados pelos Estados, com rotatividade entre os grupos regionais45.
Como bem salientou o Embaixador João Carlos Muniz, a Carta das Nações Unidas, em seu Capítulo IV, assegura à Assembleia Geral a possibilidade de discutir quaisquer questões que sejam pertinentes à Organização. Já é pacífico que a Assembleia poderá opinar mesmo temas de paz e segurança que estejam sob consideração do Conselho de Segurança.
A Assembleia opina por meio de suas "resoluções" e "decisões", as primeiras normalmente de caráter substantivo, as outras relativas a procedimento. Erroneamente, há quem contraste as resoluções da Assembléia com as do Conselho, ao afirmarem que as últimas são obrigatórias, enquanto as primeiras constituiriam apenas recomendações. Na verdade, a Assembleia também toma decisões que criam obrigações aos Estados, por exemplo, quanto ao orçamento da ONU. Também é possível argumentar que os Estados, como devem operar com boa-fé na execução dos tratados (como a Carta), deveriam obrigar-se a cumprir todas as resoluções da Assembleia Geral. Por fim, a Assembleia, ao reiterar suas resoluções, cria costumes, que são reconhecidos pela Corte Internacional de Justiça como fontes do direito internacional.
Atualmente, a Assembleia Geral reparte sua agenda entre seis comissões principais que, em regra, contam com comitês subsidiários e órgãos consultivos integrados por peritos. As comissões são as seguintes:
• I Comissão: trata de desarmamento e não prolifera- ção. Normalmente funciona nos meses de outubro a novembro, por cerca de cinco semanas. No passado, durante a guerra fria, com o risco de uma confronta- ção nuclear, foi um dos pontos nevrálgicos da ONU;
II Comissão: lida com temas econômicos e finan- ceiros, e normalmente reúne-se durante um mês e meio no segundo semestre de cada ano. Muitas de suas resoluções refletem questões discutidas no Conselho Econômico e Social (ECOSOC). Toca também em assuntos ambientais. É de particular importância para os países de menor desenvolvimento relativo47;
• III Comissão: trata de direitos humanos, questões humanitárias e culturais. É uma Comissão que inte- rage com peritos, com a sociedade civil organizada e com o Conselho de Direitos Humanos, com sede em Genebra. Suas decisões dizem respeito também a temas humanitários, com reflexos diretos sobre diversos conflitos48;
• IV Comissão ou Comissão Especial Política e de Descolonização: reúne muitos temas de natureza di- versa, alguns agrupados sem lógica específica. Suas principais atribuições são tratar de missões de paz (no que é secundada pelo Comitê Especial de Ope- rações de Manutenção da Paz, C-34), descolonização (com apoio do Comitê de Descolonização, C-24) e dos conflitos no Oriente Médio (em que recebe insumos do Comitê para o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestino)49;
• V Comissão: lida com questões administrativas, orçamentárias e financeiras das Nações Unidas. Como tal, é responsável por decisões que afetam diretamente todo o funcionamento da Organização, uma vez que os mandatos aprovados em outras comissões e órgãos não podem ser levados adiante se não houver recursos financeiros e pessoal para implementá-los. Por isso, muitas vezes congrega alguns dos mais habilidosos delegados que os Estados designam para a Assembleia Geral. Ao contrário das outras comissões que funcionam por cerca de dois meses ao ano, a V Comissão tem três períodos de sessão de dois meses, em vista da enormidade de trabalho. Seus órgãos auxiliares principais são dois comitês de peritos: o Comitê Consultivo sobre Questões Administrativas e Orçamentárias (ACABq) e o Comitê de Contribuições (CoC)50;
• VI Comissão: é o órgão que trata de temas jurídicos. As grandes convenções internacionais, assinadas desde 1946, normalmente passam por discussões prévias na VI Comissão, que revê atentamente cada texto proposto e negocia linguagem aceitável para a maioria dos Estados. Seu principal órgão consultivo é a Comissão de Direito Internacional (CDI)51;
Todos os projetos de resoluções aprovados pelas Comissões são subsequentemente votados pelo Plenário da Assembleia Geral. Normalmente, trata-se apenas de chancelar a decisão, mas pode haver mudanças na substância dos projetos e mesmo reversão dos votos. O Plenário também trata diretamente de várias questões, como revitalização da Assembleia Geral e reforma do Conselho de Segurança.
O momento em que a Assembleia Geral recebe mais atenção da opinião pública mundial é durante seu Debate Geral, que geralmente ocorre por três semanas, a partir da última semana de setembro. O evento ganha tanta divulgação que, com frequência, a imprensa o confunde com a própria Assembleia como um todo. Nessa ocasião, um número muito substancial de Chefes de Estado e Governo, assim como Ministros das Relações Exteriores, acorre a Nova York para discursar perante a Assembleia e enunciar suas prioridades para o ano que virá, não só nas Nações Unidas, mas na política internacional como um todo. Por exemplo, foi no Debate Geral da 57a Assembleia que o Presidente George Bush, dos EUA, manifestou a intenção de invadir o Iraque, o que viria a concretizar-se no ano seguinte. Desde os anos 1950, o Brasil tem o privilégio de fazer o primeiro discurso no Debate Geral, logo após o relatório anual do Secretário-Geral e antes da fala do país anfitrião, os EUA52.
No período da guerra fria, com a paralisação do Conselho de Segurança pela bipolaridade, a Assembleia Geral ganhou grande força na Organização e na política internacional. Em 1950, os EUA e seus aliados promoveram uma estratégia – conhecida como Acheson Plan, por ter sido concebida pelo Secretário de Estado Dean Acheson – de transferir os poderes do Conselho de Segurança. Apesar das enormes controvérsias que gerou, o texto foi aprovado como Resolução 377 (V) – a Resolução Uniting for Peace – e impulsionou o papel da Assembleia Geral como principal órgão decisório. Até o fim dos anos 1960, o Conselho continuou totalmente eclipsado ante a Assembleia, que tomava inclusive decisões de paz e segurança, como o envio de tropas à Coreia em 1950 e a missão de paz a Suez em 195653.
Nas décadas de 1970 e 1980, as duas superpotências desinteressaram-se da Assembleia Geral, que passou a servir, sobretudo, de arena para a promoção dos interesses dos países do chamado Terceiro Mundo, muitos deles congregados no Movimento dos Países Não Alinhados (MNA). As decisões práticas reduziram-se, mas a Assembleia Geral continuou a ser o locus privilegiado da promoção de políticas ligadas ao desenvolvimento, como a Nova Ordem Econômica Internacional54.
Com o final da bipolaridade e a retomada dos trabalhos do Conselho de Segurança – sobretudo a partir de 1990 – a Assembleia perdeu muito de seu prestígio. O Conselho passou, com frequência, a usurpar suas prerrogativas, ao decidir sobre temas não necessariamente ligados a seu mandato de paz e segurança internacionais.
Como resultado, surgiu um movimento entre os Estados para promover a revitalização da Assembleia Geral, isto é, racionalizar seus processos decisórios e restaurar seu prestígio político. Vários métodos e fórmulas já foram tentados para a revitalização da Assembleia Geral, como o fortalecimento do papel do Presidente da Assembleia Geral, a otimização do trabalho das comissões ao longo de cada sessão e a promoção de mesas-redondas temáticas com Chefes de Estado e Governo e Ministros, de modo a garantir maior atenção para o órgão. A revitalização é um processo sem data específica para terminar, até porque visa ao aperfeiçoamento contínuo dos trabalhos das Nações Unidas55.
Conselho de Segurança
O Conselho de Segurança é o órgão das Nações Unidas mais citado na imprensa. Como o nome sugere, o Conselho lida com um tema de difícil administração, a paz e segurança internacionais e por isso está exposto ao escrutínio público por suas ações e inações.
O Conselho é atualmente composto por 15 membros. De acordo com o Capítulo V da Carta, que estipula a composição e prevê as regras de votação, há cinco membros permanentes, conhecidos como P-5:
1. Estados Unidos;
2. Rússia (que sucedeu a União Soviética em 1991);
3. China (inicialmente a China nacionalista – Formosa, sucedida pela China Popular, em 1971);
4. Reino Unido; 5. França.
Anualmente, a Assembleia Geral elege cinco Estados- -membros, pelo período de dois anos (sem direito à reeleição para o período imediatamente subsequente), para ocupar vagas no Conselho. Como consequência, a cada ano o órgão renova um terço de seus membros.
De acordo com o artigo 23.1 da Carta, os membros eletivos devem ser escolhidos com base em sua contribuição para a manutenção da paz e segurança internacionais e tendo em consideração a distribuição geográfica equitativa. Até 1965, o Conselho era composto de apenas 11 membros – cinco permanentes e seis eletivos, renovados três a cada ano. Naquele ano, entrou em vigor a emenda à Carta aprovada pela Resolução 1991 (XVIII), que não só expandiu o número de membros, mas previu explicitamente que os eletivos seriam escolhidos de acordo com a seguinte distribuição geográfica: dois latino-americanos; três africanos; dois asiáticos; um do leste europeu; e dois do grupo da Europa Ocidental e outros Estados56.
Se, por um lado, essa expansão refletiu o considerável aumento no número de Estados-membros ocorrido desde 1945, por outro, diluiu ainda mais os votos dos membros eletivos, resultando em mais poder para os membros per- manentes. Ademais, a divisão por áreas geográfica – que ia ao encontro das reivindicações do MNA – facilitou ainda mais a eleição de Estados sem que fosse levado em conta o critério básico de sua contribuição real para a manutenção da paz57. Apesar da expansão, um número significativo de países das Nações Unidas, cerca de 36% deles, nunca foi eleito para exercer um mandato no Conselho. Poucos, como o Brasil e o Japão, com dez mandatos cada, têm participado ativamente, como membros não permanentes, das decisões do órgão ao longo do tempo58, o que os estimula a capacitar suas delegações.
Os cinco membros permanentes, embora tenham interesses em comum no Conselho, nem sempre formam um grupo em si. Até meados dos anos 80, as desavenças entre EUA e URSS eram as grandes responsáveis pela pouca relevância do Conselho. Somente com o fim da guerra fria, passou a haver uma interação mais cooperativa entre os P-5. Quando isso ocorreu, sobretudo até 1998, eles ameaçaram excluir os demais Estados do processo decisório, deixando aos Membros eletivos a simples tarefa de chancelar textos prontos. Desde 1999, os P-5 continuam a interagir positivamente, mas suas discordâncias em vários temas aumentam a margem de manobra dos demais membros59. Os dez eletivos (E-10), por seu turno são ainda menos orgânicos do que os permanentes, porque têm metade de sua composição renovada a cada ano. São vistos como "turistas" ou "cidadãos de segunda classe" pelos P-5, e sua articulação política como um grupo tem-se limitado nos últimos anos a algumas questões de procedimento60.
Uma das características mais conhecidas do Conselho de Segurança é seu sistema de votação, no qual os membros permanentes, em decorrência do artigo 27 da Carta, detêm o poder de veto sobre suas decisões. O texto da Carta não fala especificamente de "veto", mas da necessidade de votos concorrentes dos cinco permanentes. A prática levou à interpretação de que a abstenção não é a mesma coisa que um voto negativo. Como resultado, para que o Conselho adote uma decisão, ela deve contar com, ao menos, nove votos afirmativos, desde que nenhum dos membros permanentes vote negativamente61.
A maioria das decisões do Conselho, nos últimos vinte anos, entretanto, é aprovada por unanimidade. Essa capacidade de adotar decisões com a concordância de todos depende da prática – desenvolvida desde os anos 1970 mas aperfeiçoada após 1991 – de realizar reuniões informais, conhecidas como "consultas informais", a portas fechadas, em que os membros do Conselho negociam a linguagem a ser adotada, até que seja aceitável para todos ou para a maioria. Claramente, nem sempre esse processo decisório resulta na concordância de todos e, ocasionalmente, um dos membros permanentes acaba por vetar um projeto de resolução. No entanto, nas últimas décadas, o Conselho de Segurança tende a adotar algumas dezenas de decisões por ano e, quando existem, os vetos não passam de dois ou três no mesmo período62. Nesse sistema, o papel do Presidente de turno do Conselho é fundamental, ao conduzir as negociações e formular o programa de trabalho do mês, de modo a dar conta de todas as demandas63.
Outra característica das atividades do Conselho de Segurança no período pós-guerra fria é a expansão da agenda, ou seja, dos temas de que se ocupa o órgão. Uma das características do período da bipolaridade era a tendência das superpotências de delimitarem sua zona de influência e tentar impedir que outros ali atuassem. Essa atitude afastava as outras potências, mas também impedia que o Conselho de Segurança cuidasse ou sequer debatesse um grande número de conflitos. A partir de meados da década de 1980, os P-5 gradativamente conseguiram encontrar maior zona de cooperação em seus interesses, o que permitiu o destravamento da agenda do Conselho. Inicialmente, a expansão foi geográfica, incluindo temas como Namíbia, Angola, Camboja, Afeganistão, anteriormente considerados tabu.
Em 1991, dois fatos levam a uma expansão ainda maior da área de atuação do Conselho: a campanha militar bem-sucedida contra Saddam Hussein, sob a égide das Nações Unidas, mas comandada pelos EUA; e o colapso da URSS, que deixou de contrapor-se aos interesses de Washington. Nos anos a seguir, o Conselho de Segurança não só expandiu geograficamente sua área de atuação, mas também incluiu novos temas, como tráfico de drogas, aspectos de direitos humanos, combate ao terrorismo e consequências de danos ao meio ambiente. Se, por um lado, esse novo ativismo levou ao tratamento de conflitos antes negligenciados, e à impressão errônea de que o número de conflitos aumentava; por outro, marcou uma usurpação do Conselho de Segurança, agora mais prestigiado, de temas de competência da Assembleia Geral e de outros órgãos. Em alguns casos, o Conselho chegou mesmo a tentar legislar, como na Resolução 1373 (2001), sobre terrorismo, adotada logo após os atentados de 11 de setembro64.
Um dos grandes debates a respeito do Conselho de Segurança diz respeito ao caráter obrigatório ou recomendatório de suas decisões. O artigo 25 da Carta determina claramente que os Estados comprometam-se a executar e obedecer as decisões do Conselho, o que sugere fortemente que todas as suas decisões são obrigatórias. Com o tempo e por influência dos P-5, difundiu-se o entendimento de que somente as decisões relativas a ações ligadas a rompimentos ou ameaças de rompimento da paz criariam obrigações. Para entender melhor essa discussão, é necessário brevemente explicar os poderes do Conselho com base nos Capítulos VI e VII da Carta:
• Capítulo VI: diz respeito à solução pacífica de controvérsias e prevê ações como investigação,
missões de bons ofícios arbitragem e soluções negociadas;
• Capítulo VII: trata de ameaças à paz ou rompimento da paz. Prevê medidas coercitivas, como a imposição de sanções ou ações militares para garantir a restauração da paz.
Embora esses Capítulos da Carta tratem de medidas diversas, as decisões do Conselho, com frequência, combinam medidas previstas em ambos ou, simplesmente, não especificam a qual Capítulo fazem referência. Ademais, mesmo que haja alusão clara ao Capítulo VII, o Conselho de Segurança pode apenas sugerir ou encorajar um curso de ação. Tal foi o caso, na década de 1970, das sanções voluntárias à antiga Rodésia do Sul (hoje Zimbábue). Por essas razões e em vista do enunciado do artigo 25, todas as decisões do Conselho devem ser consideradas obrigatórias65.
Um dos instrumentos mais utilizados pelo Conselho de Segurança na atualidade – ao ponto de ser incorretamente visto por alguns como panaceia – são as operações de manutenção da paz66. Trata-se de um tipo de ação que não está previsto na Carta e que foi desenvolvida pelas Nações Unidas ao longo das décadas, como modo de superar a paralisia do mecanismo de segurança coletiva previsto na Carta. As missões de paz são organizadas pelas Nações Unidas, com base em contingentes militares, policiais e civis cedidos pelos Estados, para conter ou resolver conflitos. Seus princípios operacionais são:
• Uso da força somente em legítima defesa, o que significa não só defender a incolumidade física de seus integrantes, mas assegurar que o mandato recebido do Conselho de Segurança seja cumprido;
• Imparcialidade, o que indica que a missão não é aliada de nenhuma das partes em conflito, mas um tertius, que se interpõe para facilitar a solução do conflito;
• Consentimento das partes, que diz respeito a obter dos grupos que estejam em conflito a concordância para que tropas sob comando das Nações Unidas sejam enviadas67.
As missões de paz representam um enorme empreendimento das Nações Unidas, que mantêm o segundo maior contingente militar desdobrado no mundo, atrás apenas dos EUA. Em início de 2013, havia 14 operações de manutenção da paz em curso, incluindo 80 mil militares, 12 mil policiais e 16 mil civis. O custo anual dessas operações é de cerca de US$ 7,3 bilhões – uma fração ínfima dos orçamentos militares dos mais poderosos Estados-membros das Nações Unidas.
Outro instrumento cujo uso pelo Conselho de Segurança se tornou comum nas últimas décadas são as sanções. Essas medidas estão previstas no artigo 40 e visam não a punir os Estados, mas a mudar seu comportamento, de modo a garantir que cumpram as prescrições da Carta e de outros instrumentos de direito internacional.
Em 1990, o Conselho impôs sanções amplas ao Iraque, em reação à invasão do Kuaite – mas essas medidas acabaram por prejudicar a população iraquiana e não surtiram o efeito desejado de alterar o comportamento do Governo de Saddam Hussein. Após essa experiência, o Conselho não abandonou o uso das sanções, mas procurou torná-las mais precisas, visando especificamente às classes governantes e seus agentes. Em décadas recentes, para cada regime de sanções, existe um comitê do Conselho de Segurança que gerencia sua execução69.
Ao se tratar do Conselho de Segurança, não se pode deixar de mencionar o tema da reforma. Atualmente, há uma ampla percepção de que o órgão reflete a realidade de 1945, quando foi criado e, ainda menos, a de 1965, quando foi reformado para incluir novos membros eletivos. Houve reformas inconfessas, quando, em 1971, a China nacionalista foi substituída pela China comunista; ou em 1991, quando a URSS foi sucedida pela Rússia. Mas o órgão carece claramente de uma reformulação que dê conta das novas realidades políticas e econômicas das relações internacionais e supere o congelamento de poder do P-5 consagrado na Carta.
A partir de 1993, o tema da reforma do Conselho de Segurança tem sido discutido anualmente nas Nações Unidas, mais precisamente pela Assembleia Geral. Em ao menos duas ocasiões, em 1997 e 2005, houve uma possibilidade real de que a mudança fosse operada. A reivindicação mais clara é a expansão do número de membros do Conselho e, a maioria dos países acredita, com novos membros permanentes e eletivos. Outra possibilidade relevante é a mitigação do poder de veto, que não deveria poder ser exercido sem limites.
As propostas mais consistentes de reforma foram apresentadas pelo chamado Grupo dos 4 (G-4), constituído por Brasil, Alemanha, Índia e Japão. Esses países advogam que o Conselho de Segurança passe a incluir novos membros permanentes (inclusive da África e da América Latina, regiões que não figuram entre os atuais P-5) e eletivos. A essa percepção, opõe-se o grupo denominado União para o Consenso, que deseja ver apenas novos membros eletivos e acaba por obstruir inteiramente a reforma. Enquanto isso, os P-5, aberta ou discretamente, não veem motivo para favorecer uma mudança que reduziria seus privilégios70.
Conselho Econômico e Social (ECOSOC)
O Capítulo X da Carta estabelece um Conselho Econômico e Social (ECOSOC, no jargão das Nações Unidas), para produzir estudos e relatórios sobre aspectos econômicos, sociais, culturais, educacionais e de saúde, bem como para formular recomendações sobre direitos humanos. O ECOSOC cuida também da cooperação internacional econômica e social, tal como estabelecida pelo Capítulo IX da Carta.
O órgão é composto por 54 membros, eleitos para mandatos de três anos, sendo possível a reeleição. A cada ano, o ECOSOC renova um terço de seus membros. O ECOSOC era inicialmente composto por 18 membros (de um total de 51 países). Sua composição foi ampliada duas vezes: em 1965, passou a ter 27 membros; em 1973, passou a contar com os atuais 54 integrantes. Suas decisões são tomadas por maioria simples, e sua presidência é ocupada por um ano71.
As duas ampliações do ECOSOC para que fosse mais representativo de um número crescente de Estados-membros denunciam sua origem. A Liga das Nações não contava com um órgão principal que tratasse do desenvolvimento econômico, tampouco havia essa previsão no projeto original das Nações Unidas. Sua criação e estruturação como órgão principal derivou dos interesses dos pequenos e médios Estados que, antes mesmo da Conferência de São Francisco, indicavam não ter interesse em uma organização internacional cujo foco fosse exclusivamente a paz e a segurança internacionais72.
O ECOSOC é possivelmente, entre os órgãos principais das Nações Unidas, o mais negligenciado pela imprensa e pela opinião pública. No entanto, suas responsabilidades são altamente significativas. Cabe ao ECOSOC fazer a conexão com a maioria das agências e programas da família das Nações Unidas, como UNESCO, UNICEF e FAO, bem como a Organização Mundial da Saúde e a Organização Internacional do Trabalho. Suas comissões funcionais lidam com temas de interesse imediato das populações do mundo, como desenvolvimento sustentável, crescimento populacional, combate às drogas e ao crime organizado, ciência e tecnologia, status das mulheres e direitos humanos.
Ganha força, nos últimos anos, a relação entre as Nações Unidas e a associações da sociedade civil, conhecidas normalmente como organizações não governamentais (ONGs). É função do ECOSOC avaliar a conveniência de estabelecer uma parceria entre a Organização e as ONGs. Para muitas delas, a condição de "registradas no ECOSOC" é essencial para poderem obter legitimidade no cenário internacional e conseguir financiamento73.
Outro papel importante do ECOSOC é o de canalizar e debater os relatórios e sugestões das comissões econômicas regionais, que são cinco atualmente: África; Ásia e Pacífico; Europa; América Latina e Caribe; e Ásia Ocidental (Oriente Médio). A pioneira foi a Comissão Econômica para a América Latina, criada em 1948, por inspiração, entre outros, do economista argentino Raúl Prebisch74. A CEPAL foi de extrema importância no estudo dos problemas típicos do subdesenvolvimento na América Latina, tornando-se uma verdadeira escola de pensamento econômico, dito cepalino.
O Brasil tem insistido muito sobre a relevância do artigo 65 da Carta, que estabelece os meios de cooperação entre o ECOSOC e o Conselho de Segurança. Na concepção brasileira, a paz e segurança internacionais não podem efetivamente ser atingidas de modo estável se não houver um atendimento das necessidades socioeconômicas dos seres humanos. Nesse contexto, a cooperação entre os dois órgãos seria essencial, mas é, em realidade, insuficiente.
O Secretário-Geral e o Secretariado
A Carta das Nações Unidas prescreve, em seu Capítulo XV, que a Organização contará com um Secretário-Geral e pessoal para apoiá-lo, como for necessário. Trata-se de um corpo de funcionários públicos internacionais que existe para, supostamente, servir aos Estados-membros e executar suas decisões que não dependem de atos internos aos Estados. Por exemplo, se a Assembleia Geral necessita de informações sobre a implementação de um determinado tratado, cabe ao Secretariado redigir um relatório que dê aos países uma base para seus debates. Quando o Conselho de Segurança decide criar uma operação de manutenção da paz, caberá ao Secretariado administrar seu funcionamento, embora as tropas venham dos Estados. Na opinião de Inis Claude Jr., o Secretariado representa as Nações Unidas mais visíveis. É aquele que, em momentos de crise, é visto como o culpado pelas falhas da Organização, absolvendo, assim, os pecados dos Estados76.
O Secretário-Geral das Nações Unidas (S-G) é o chefe do Secretariado. De acordo com a Carta, ele é o Chief Administrative Officer (artigo 97), mas também recebe funções políticas, podendo trazer ao conhecimento dos órgãos intergovernamentais questões que considere relevantes, inclusive de paz e segurança internacionais, para consideração do Conselho de Segurança (artigo 99).
A história do cargo de Secretário-Geral tem sido marcada justamente por essa diferença entre o papel político e a função administrativa. No início, como tinha sido o caso na Liga das Nações, pensava-se, sobretudo, em um funcionário para administrar as reuniões e conferências dos Estados. Essa era a particular preferência da União Soviética, que não confiava em ceder qualquer autoridade política a um corpo de funcionários internacionais que, acreditava, seria dominado pelas potências ocidentais. A história das Nações Unidas mostrou, porém, que essa concepção mais restrita do papel do Secretário-Geral não seria sustentável. Conforme as crises se avultavam, crescia a necessidade de que certas medidas de implementação e informação não dependessem diretamente dos Estados. Ademais, nos primeiros anos da Organização, uma de suas principais funções era a de promover a cooperação técnica entre os Estados, para o que a existência do Secretariado com relativa autonomia foi fundamental. Para esse ganho de autonomia, foram fundamentais a personalidade carismática do segundo S-G, Dag Hammarskjöld, e o desenvolvimento das operações de manutenção da paz, que concedeu ao Secretariado responsabilidades nunca pensadas para uma organização internacional77.
Atualmente, a capacidade política do Secretário-Geral não mais está em discussão, apenas os limites de sua atuação podem causar controvérsia entre os Estados. Por exemplo, desde 2003, o S-G integra o "Quarteto Diplomático", que congrega também EUA, Rússia e União Europeia, para lidar com o conflito israelo-palestino. Trata-se de função eminentemente política, que foi assumida junto a uma entidade que não pertence às Nações Unidas.
Note-se que a Palestina, em vista dos obstáculos a sua admissão como membro pleno, optou por pleitear a eleva- ção de seu status na ONU para o de "Estado Observador não membro", o que foi aprovado pela Assembleia Geral em 29 de novembro de 2011 (pela Resolução 67/19).
É comum que o Secretário-Geral se manifeste sobre todo tipo de eventos e por vezes, se apresente ou escolha representantes para mediar conflitos. Em alguns momentos, ele pode ser censurado pelos Estados por ter ido longe demais sem ter solicitado um mandato dos membros da Organização, o conjunto dos países.
Desde 1946, as Nações Unidas tiveram oito Secretários- -Gerais. A Carta prevê que o Conselho de Segurança reco- mende à Assembleia Geral os candidatos a S-G e que esta escolha quem ocupará essa função. Apesar dos protestos de muitos Estados, o Conselho de Segurança e seus membros permanentes preferem manter um controle estrito sobre a escolha e indica à Assembleia somente um candidato78, o que impede a possibilidade de um debate de todos os Estados sobre quem seria o melhor candidato a S-G. A Carta não estabelece qual será a duração do mandato do S-G, mas a prática tem sido que a Assembleia Geral estabelece um período de cinco anos e permita uma reeleição pelo mesmo prazo.
O quadro abaixo mostra os Secretários-Gerais de 1946 a 2013, seus períodos no cargo e sua origem nacional:
Gradativamente, novos países ingressaram da África e da Ásia, sobretudo, levando a uma diversificação da origem dos Secretários-Gerais. Também é importante notar que não houve S-G originado em uma grande potência, espécie de acordo tácito para que os membros permanentes do Conselho de Segurança não concentrem ainda mais poder e desequilibrem a Organização.
O S-G é apoiado em suas tarefas pelos funcionários do Secretariado. Originalmente, tratava-se de um pequeno corpo de funcionários, com um orçamento de poucos milhões de dólares. Hoje, o orçamento do Secretariado excede um bilhão de dólares, e seu pessoal é de cerca de oito mil pessoas em Nova York e 43 mil no mundo todo79. Esse crescimento reflete, sem dúvida, um inchaço burocrático, mas principalmente um aumento da demanda por serviços que as Nações Unidas prestam aos Estados-membros, em áreas como paz e segurança, assuntos econômicos e sociais, direitos humanos e meio ambiente.
Em seu artigo 101.3, a Carta prevê que o critério básico para o emprego no Secretariado será a competência, mas que as Nações Unidas deverão também levar em conta a distribuição geográfica dos candidatos. Essa cláusula foi redigida como um acordo entre EUA e URSS, que receavam o domínio do Secretariado um pelo outro. Atualmente, é perceptível que os países ocidentais, sobretudo os EUA, continuam a dominar, em altos cargos e no nível médio da burocracia, o Secretariado, o que tem reflexos políticos no comportamento das Nações Unidas.
Os principais departamentos do Secretariado são:
• Departamento de Assuntos Políticos (DPA), que acompanha o desenvolvimento de conflitos, trabalha em sua prevenção, ajuda a organizar eleições80;
• Escritório para Assuntos de Desarmamento (ODA), que trata das iniciativas de desarmamento e não proliferação81;
• Departamento de Operações de Manutenção da Paz (DPKO), que faz o planejamento estratégico das missões de paz, estabelece regras de conduta para seus participantes e mantém o Conselho de Segurança informado sobre o que acontece no terreno82;
• Departamento de Apoio ao Terreno (DFS), trabalha em cooperação com o DPKO e o DPA para prover o apoio logístico necessário para todas as ações das Nações Unidas fora de Nova York e, sobretudo, as que ocorrem em áreas de conflito83;
• Escritório do Coordenador para Assuntos Humanitá- rios (OCHA), coordena a atuação das Nações Unidas seja no apoio às vítimas de desastres, sejam natu- rais, seja em resultado de conflitos84;
• Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (DESA), trata de temas como desenvolvimento sustentável, meio ambiente, crescimento demográ- fico, desenvolvimento econômico e tem particular importância para os países do Sul85;
• Departamento da Assembleia Geral e Organização de Conferências (DGACM), responsável pelas funções mais clássicas do Secretariado, de dar apoio logístico às reuniões dos Estados86;
• Departamento de Informação ao Público (DPI), traça a estratégia de divulgação das Nações Unidas e de suas atividades, bem como torna público o resultado das reuniões em Nova York87.
O Secretariado conta ainda com diversos serviços de supervisão interna, consultoria jurídica e segurança, bem como com um amplo Escritório do Secretário-Geral que inclui um Vice-Secretário-Geral, que não é eleito pelos Estados.
Corte Internacional de Justiça
A Corte Internacional de Justiça (CIJ), pode-se dizer, é uma herança da Liga das Nações, que havia criado a Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) em 192188. Sua estrutura foi basicamente transferida para a nova Organização constituída em 1945 e consagrada no Capítulo XIV da Carta e no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, anexo à Carta.
Conforme seu Estatuto, a Corte é composta de 15 juízes, todos de nacionalidade diferentes, eleitos para mandatos de nove anos, sendo permitida a reeleição. O processo eleitoral é complexo e envolve a indicação dos grupos nacionais representados na Corte Permanente de Arbitragem e escrutínios simultâneos da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. Somente é escolhido o candidato que obtiver dois terços dos votos em ambos os órgãos. Os juízes devem ter notório saber jurídico, embora não tenham necessariamente que advir da carreira de magistrados em seus países de origem89. Embora não exista qualquer regra nesse sentido, os membros permanentes do Conselho de Segurança sempre se asseguram de manter um de seus nacionais como juiz da CIJ.
As decisões da CIJ são tomadas por meio de método que se assemelha ao da Suprema Corte dos Estados Unidos. Nesse sistema, depois de ouvir peritos, testemunhas e receber evidências em audiências públicas, os juízes reúnem-se em privado para debater o caso. Um entre eles, o relator, tem a tarefa de redigir e ler em audiência o voto que reflete a opinião da maioria. Os juízes que discordarem da maioria, no todo ou em parte, podem ler votos em separado na sessão pública. Para fazer uma comparação, o método do Supremo Tribunal Federal brasileiro é completamente diverso. Nele, os Ministros leem, em sessão pública, seus votos, respondendo a uma séria de quesitos sobre o caso em análise. Ao final, contabilizam-se as opiniões dos Ministros como votos em cada quesito. Após o julgamento, o STF redige um acórdão que sumariza os argumentos e a decisão.
Ao contrário do que podem pensar alguns desavisados, a Corte Internacional de Justiça não funciona como um Poder Judiciário que revê e julga as decisões dos órgãos intergovernamentais das Nações Unidas. Essa percepção errônea decorre de considerar as Nações Unidas como uma espécie de governo internacional, que teria em seus órgãos principais uma analogia com o Legislativo (Assembleia Geral e ECOSOC), Executivo (Secretariado e Conselho de Segurança) e Judiciário (Corte Internacional de Justiça).
As Nações Unidas, entretanto, são uma organização internacional. As decisões de seus órgãos, como a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, decorrem da soberania dos Estados e não estão, em princípio, submetidas à revisão da CIJ. No imediato pós-guerra fria, quando o Conselho de Segurança expandiu suas competências por meio de arranjos políticos e reinterpretações da Carta, houve muito debate acadêmico sobre a possibilidade de que a CIJ julgasse a legalidade das ações do órgão em face da Carta, como documento fundador, que seria assemelhado a uma Constituição. Esse debate permaneceu apenas no campo acadêmico, não havendo decisão da CIJ sobre essa possibilidade.
A CIJ toma decisões sobre casos que são apresentados por dois ou mais Estados. Isso significa dizer que os Estados apresentam seus diferendos perante a Corte em petições previamente acordadas que determinam quais os limites da decisão a ser tomada. A jurisdição da Corte pode ser obrigatória se os Estados tiverem assinado previamente um tratado em que esteja previsto que um diferendo será necessariamente levado à consideração da CIJ. Normalmente, porém, em razão do artigo 36 de seu Estatuto, a jurisdição da Corte é facultativa, isto é, os Estados deverão concordar em submeter cada um de seus litígios ao órgão da ONU. Se uma das partes assim não o desejar, a CIJ não poderá opinar sobre aquele tema específico91. Muitos dos casos levados à Corte são diferendos territoriais e, após a decisão judicial, as partes muitas vezes solicitam que o Conselho de Segurança ajude em sua implementação.
A outra grande área de atuação da Corte Internacional de Justiça são as opiniões consultivas. De acordo com o artigo 96.1 da Carta, a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança podem solicitar à Corte opiniões sobre temas jurídicos. Não se trata de um litígio, mas de uma consulta dos órgãos políticos da ONU sobre questões pouco claras de direito internacional. Seu resultado não pode ser tornado obrigatório para os interessados, que não assumiram essa responsabilidade. Claro está que as opiniões consultivas, embora de natureza jurídica, têm profundo impacto político, pois as decisões da CIJ são consideradas veneráveis pelos Estados.
Historicamente, as opiniões consultivas da CIJ foram de extrema importância no encaminhamento de questões substantivas e na consolidação institucional das Nações Unidas. No primeiro caso, pode-se citar a opinião "Legality of the Use by a State of Nuclear Weapons in Armed Conflict", de 1993, que, no contexto do fim da guerra fria, foi relevante para balizar a ilegalidade das estratégias de guerra nuclear. Outra foi a "Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory", de 2003, que julgou desprovido de qualquer base legal e em violação da IV Convenção de Genebra a construção de um muro de separação por Israel nos Territórios Palestinos Ocupados93.
Na segunda categoria, é necessário citar, já em 1948, a opinião "Reparation for Injuries Suffered in the Service of the United Nations". Essa deixou claro que o Secretariado tinha liberdade de ação e competência em temas que não necessariamente estavam explícitos na Carta e, com isso, permitiu que o Secretariado ganhasse autonomia em relação aos Estados. Deve-se acrescentar ainda a "Certain Expenses of the United Nations (Article 17, paragraph 2, of the Charter)", de 1961, que afirmou a obrigação dos Estados de cumprirem as decisões das Nações Unidas, como previsto na Carta, mesmo que não concordassem com o conteúdo delas.
Conselho de Tutela
O Conselho de Tutela foi estabelecido pela Carta das Nações Unidas como um dos órgãos principais da Organização, para administrar o "sistema internacional de tutela". Ao espírito da época, tratava-se de governar territórios considerados ainda politicamente imaturos e conduzi-los seja à soberania, seja à autonomia em parceria com um país, seja ainda à união com um Estado-membro das Nações Unidas.
Estavam incluídos originalmente no sistema de tutela os territórios que haviam sido mandatos da Liga das Nações, aqueles destacados dos "Estados inimigos" ao fim da Segunda Guerra Mundial ou os colocados nessa categoria pelas potências administradoras. Em 1945, eram 11 territórios, supervisionados por 7 potências. O Conselho de Tutela reportava-se geralmente à Assembleia Geral, mas, quando o território era considerado como área estratégica, o relacionamento passava a ser com o Conselho de Segurança.
Em 1994, o último território tutelado, Palau, "graduou-se", escolhendo inicialmente a associação livre com os EUA e, logo depois, a independência plena. O Conselho de Tutela foi desativado e, hoje, funciona apenas por formalidade95.
O Conselho de Tutela foi parte de uma luta maior que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, pela autodeterminação dos povos, na qual as Nações Unidas desempenharam papel central, por intermédio também da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança. Trata-se do conhecido processo de descolonização, no qual os povos das colônias européias tornaram-se independentes e passaram a ser parte das Nações Unidas. Desde 1945, mais de 80 países emergiram da opressão colonial e modificaram fundamentalmente a face das relações internacionais, trazendo à baila novas reivindicações políticas, econômicas e sociais.
A própria Carta já trazia uma declaração sobre territórios não autônomos em seu Capítulo XI, e as superpotências tendiam a favorecer a descolonização. A partir do fim da década de 1950, foram os próprios novos Estados que conduziram a luta, aprovando, em 1960, a famosa Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral, que criou a base para acelerar a descolonização. A declaração não se aplicava somente aos territórios sob tutela, mas se estendia a todos os povos que julgassem estar subjugados por outros. As Nações Unidas foram essenciais para trazer ao proscênio internacional os direitos humanos, políticos, econômicos e sociais desses grupos cuja existência sequer era notada vinte anos antes.
Casos célebres foram a Namíbia – que só em 1989 livrou-se do jugo sul-africano – e Timor-Leste, que esperou até 2002 para tornar-se soberano. Em ambos os casos, as Nações Unidas foram centrais em assegurar a transição negociada e a construção de novas instituições nacionais. O caso do Saara Ocidental, porém, continua indefinido, pendente o plebiscito que deveria decidir seu futuro político e que nunca foi realizado.
Na América do Sul, as Ilhas Malvinas permanecem como um caso de descolonização incompleta. Por direito argentinas, as ilhas foram ocupadas pelo Reino Unido em 183397. O Governo britânico transplantou para o arquipélago sua própria população, chamados de kelpers, e nunca reconheceu as reivindicações argentinas. As Malvinas estão ainda inscritas na lista de territórios não autônomos das Nações Unidas.
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