III - Da Liga das Nações Unidas às Nações Unidas
Tanto a Liga das Nações quanto as Nações Unidas se fundam, em última análise, na ordem internacional estabelecida em 1648 pela Paz de Westphalia, constituída basicamente por Estados soberanos, com jurisdição excludente sobre os respectivos territórios nacionais. A Liga e a ONU, por seu simples estabelecimento, representam, igualmente, passos decisivos na transformação do sistema internacional. Pela primeira vez na história, a Liga colocou, em termos multilaterais amplos, a questão da organização internacional da ordem; por seu turno, a Carta da ONU, adotada, como se viu, em nosso nome, ou seja, em nome dos "povos das Nações Unidas", afirma as dimensões da pessoa e da humanidade como fatores centrais dessa mesma ordem.
os soberanos é multissecular, mas não se divide em etapas estanques. Ao discutir o tema dos conflitos internacionais e da liberdade de ação dos Estados soberanos para conduzir seus negócios, Ramiro Guerreiro enuncia, de forma extremamente sintética, uma teoria da ordem internacional, do conflito e de suas causas imediatas e do mecanismo de segurança coletiva que começou a ser desenvolvido pela Liga e que encontrou expressão contemporânea na ONU Unidas. Guerreiro observa o seguinte:
Concretamente, as coisas se passam de forma (...) complexa e matizada. Os Estados, embora soberanos, se sentem limitados por uma teia de considerações de ordem moral, jurídica, política, estratégica e econômica. Esse conjunto de fatores limitativos normalmente atende aos próprios interesses, a longo prazo, das relações entre os Estados, na medida em que asseguram um mínimo de estabilidade e previsibilidade. Quando, porém, essa teia se transforma numa camisa-de-força, ela tenderá a ser rompida, de uma forma ou de outra. Nesse processo, surgem tensões e conflitos. O sistema internacional, para bem funcionar, deverá, pois, dispor de meios e modos para encaminhar soluções para essas situações críticas, evitando que as mesmas se transformem em conflitos abertos20.
Essas palavras a respeito do comportamento contem- porâneo dos Estados ilustram a necessidade da análise concreta, que se funda em um saudável ceticismo diante
de generalizações apressadas e que escapa da tentação da simplificação fácil, sempre embutida na aceitação acrítica dos arquétipos mais conhecidos da ordem internacional: o Estado soberano, que vai exponenciar sua liberdade de ação ao ponto de produzir a anarquia internacional; o império, que – hipocritamente – até afirma cumprir primordialmente uma missão civilizadora; a igualdade soberana dos Estados, ingênua ao extremo de estar desvinculada das circunstâncias de facto de cada país; o Estado ou diretório de Estados, que se arroga uma dita "responsabilidade especial" pela criação e gestão da ordem internacional, entre outros.
A Liga e a ONU, note-se, obviamente nascem dos conflitos mundiais e de dois momentos em que se afirmam a presença e a preponderância internacionais, inicialmente da Europa Ocidental e, mais tarde, dos EUA. O Embaixador Marcos Azambuja vê no conceito de segurança coletiva uma curiosa mistura de idealismo e pragmatismo, que talvez haja sido uma das principais contribuições dos EUA ao tratamento da vida internacional. Afirma, em consequência, que:
Tanto a Liga das Nações como as Nações Unidas serão marcadas pela impressão digital wilsoniana e rooseveltiana e, em ambas, o impulso fundamental ético e visionário veio dos Estados Unidos, que, nas duas experiências sucessivas, se contrapôs ao ceticismo ou realismo das potências europeias, sempre descrentes da capacidade de qualquer grande ordenamento duradouro e consensuado da vida internacional.
As vicissitudes que cercaram a criação e o funcionamento da Liga são conhecidas22. Ao observar que a Liga foi a primeira tentativa de organizar, de forma estável e institucional, a vida internacional, Azambuja sintetizou seus percalços:
A Liga das Nações:
sofreu o golpe inicial – que provou mortal – da ausência dos Estados Unidos;
foi prejudicada pela falta de sensibilidade e de sabedoria das potências vitoriosas na Grande Guerra, na sua política de cobrança de reparações contra a Alemanha;
sofreu o impacto da Grande Depressão de 1929; e teve contra o seu êxito a ferocidade das ideologias de direita e de esquerda, que fizeram com que durante a década de 20 e 30 virtualmente não houvesse espaço para as acomodações no centro e para os compromissos pragmáticos23.
Acrescenta Azambuja que:
A Liga das Nações, no seu propósito de oferecer uma moldura de segurança coletiva para o mundo de seu tempo, teve também, entre outros pecados, o de não poder, evidentemente, incorporar os povos então colonizados; os vícios do seu jurisdicismo; a sua virtual cegueira para a dimensão econômica e social dos problemas internacionais, vistos apenas na configuração clássica de poder e a sua preocupação obsessiva com a problemática do desarmamento, como se esse pudesse brotar de circunstâncias de desconfiança e ressentimento e não, como sabemos agora, fosse a resultante necessária de todo um processo de confidence building e transparência e da aplicação de métodos rigorosos de verificação e controle24.
Lista, assim, com propriedade, questões fundamentais que, ao lado de outras mais recentes, foram ou estão sendo enfrentadas pela ONU de maneira muito mais criativa e dinâmica do que a adotada pela Liga. Melhor nas Nações Unidas do que na Liga se promove, apesar de todos os tropeços, o trânsito para além da ordem de Westphalia, em direção a um sistema internacional mais perfeito que os anteriores ou o atual. O Brasil, como outros países, tem a seu crédito o de nunca haver-se conformado em ver a ONU como simples reflexo das realidades do poder mundial e sempre buscado identificar e atualizar o potencial transformador, que a distingue de sua predecessora.
A despeito do conhecido e inevitável hiato entre intenções e realidades, hiato esse que com frequência se reflete em críticas à "inoperância" da ONU, a Carta criou a única instância política de caráter universal de que a humanidade dispõe para dirimir controvérsias e assegurar a paz internacional, como originalmente assinalou o Embaixador João Augusto de Araújo Castro.
Embora nas Nações Unidas exista uma tensão institucional entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança, pois este último ainda tende a refletir antigas relações de forças, é fundamental reter que a Carta contém premissas essenciais (em gestação há mais de três séculos), como a unidade do sistema internacional, a pluralidade dos Estados soberanos e a necessidade da ação coletiva para cooperação na paz e na guerra. Ao mesmo tempo, a Carta adota, explicitamente, os princípios da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, da igualdade soberana dos Estados e da não ingerência em seus assuntos internos. Essas premissas e esses princípios são fatores basilares de estabilidade internacional, apesar de sua contestação estar em moda.
As Nações Unidas foram capazes de acomodar um processo de radical universalização de sua composição (seus Estados-membros), conquista política de extraordinário valor e em si mesma definidora, também, do mundo em que vivemos. Basta lembrar que, em sua origem, a Organização contava com uma composição razoavelmente homogênea de 51 membros, a maior parte integrante das regiões mais desenvolvidas do planeta e tendo como membros um bom número de países que, embora pobres, se identificavam profundamente com os valores centrais do sistema.
Hoje, com uma configuração quase perfeitamente universal de 193 Estados-membros, a diversidade cultural é um dos traços dominantes da Organização, que, assim, ganha uma inédita representatividade. Ao mesmo tempo, é forçoso reconhecer que a heterogeneidade cultural e de capacitação das respectivas diplomacias dos Estados- -membros constitui uma das razões que dificulta a agilização dos trabalhos. O substrato político comum tornou-se tênue e de difícil amalgamação parlamentar.
O profundo impacto psicológico e político dessa ampliação pode muito bem ser medido pela avaliação que fez, em 1975, o então Ministro Italo Zappa:
A meia centena de países-membros das Nações Unidas no momento de sua fundação, há trinta anos, triplicou. Não são mais 50, como em 1945; são agora quase 150. O acréscimo provém da África, Ásia e Oceania. Quer dizer, uma Organização que reflete em sua estrutura os desígnios ditados por esquemas abstratos do Poder; uma entidade criada para consolidar privilégios ou responsabilidades, como quer que os chamemos; preparada para impor a disciplina, dividir os frutos da vitória na Segunda Guerra; enfim, uma tentativa de estabelecer o diretório do poder mundial na base de concepção simplificada a respeito dos meios para o exercício desse Poder; todo esse edifício, labiríntico, frondoso, repartido em um sem-número de Conselhos, Comissões, Grupos de Trabalho, organismos especializados, Institutos, vê-se progressivamente invadido por uma crescente massa de frequentadores, aos quais se tem de conferir o título de sócios27.
Em contrapartida, verifica-se que o Conselho de Segurança era, em sua origem, composto de onze membros, cinco dos quais permanentes (China, EUA, França, Reino Unido e União Soviética), numa proporção de cinco para um, no universo de membros da Organização. No início da década de 1960, registrou-se no Conselho a expansão para quinze membros, vigente até hoje, com a manutenção do mesmo número de membros permanentes, contra um universo expandido de países recém-descolonizados. À época, o conjunto dos países-membros chegava a mais de uma centena, ou seja, o dobro do quadro de membros originais das Nações Unidas.
O processo de universalização continuou em andamento, com novas admissões, e, no imediato pós-guerra fria, trinta novos membros aderiram à Organização, o que representa um acréscimo de cerca de 20% na composição, em prazo relativamente curto. É relevante observar que a metade desses novos membros é composta de países europeus e que, destes, quatro têm dimensões mínimas – Andorra, San Marino, Mônaco e Liechtenstein28. Esses inéditos fatos políticos demoraram a ser inteiramente assimilados pelas estruturas da Organização.
Para além das concepções dominantes na Liga, as Nações Unidas, desde sua fundação, foram capazes de dirigir-se com criatividade a certas questões emergentes. Observa o Dr. Luiz Olavo Baptista que na Carta:
(...) foi incluído – ao contrário do que se diz em alguns manuais – o indivíduo entre os sujeitos do direito internacional. O indivíduo aparece sob duplo enfoque – o de objeto de uma declaração que lhe reconhece direitos, e o de sujeito dos direitos –, que caberia a todos, em especial aos Estados, assegurar na nova Organização.
Ao introduzir uma declaração, realmente universal – pelo alcance e pela amplitude – dos direitos do Homem, o ser humano passou a tê-los reconhecidos oficial e formalmente, e a ter o foro no qual a defesa desses direitos passaria a ser assegurada. Não mais como ação do suserano- soberano protegendo o seu súdito – como ocorria
antes – mas, sim, de toda a humanidade, atuando em defesa de um semelhante. Daí a proteção dos direitos humanos passa a ser um dever de todos os Estados, e reconhece-se e existência dos crimes contra a humanidade e o dever de respeitar os direitos humanos (...).
A partir da Carta de S. Francisco – e daí sua impor- tância como elemento de constitucionalização do direito internacional – desenvolveram-se vertentes novas, não só na definição de direitos, como na implementação e garantia dos mesmos. Os direitos de mulheres, crianças e adolescentes, minorias, foram definidos, e sua defesa foi implementada com sucesso e empenho variável29.
Desde seu estabelecimento, as Nações Unidas se beneficiaram da convicção de que, apesar das concessões feitas aos ditames do poder (ou talvez até por causa dessas concessões), havia-se obtido para o problema da ordem internacional uma solução política razoavelmente equilibrada. A Organização provê um foro e assegura uma normatividade que abre espaços políticos e jurídicos para que as aspirações das nações se expressem e tenham tratamento. As realidades estratégicas e aspirações políticas acabam por coexistir de maneira dinâmica, mas não necessariamente equilibrada.
Em consequência, as Nações Unidas sempre foram mais significativas e importantes que um reflexo das relações de poder e puderam abrigar a luta contra o colonialismo, ainda quando aquelas relações eram profundamente desfavoráveis às antigas colônias. Similarmente, permitiram aos países pobres, já no início da década de 1950, abrir o debate mundial sobre a questão do subdesenvolvimento, o qual desaguou no extraordinário esforço multilateral acerca da temática do comércio e desenvolvimento, na década subsequente. A Assembleia Geral foi o foro privilegiado para todas essas questões.
Tudo isso vem reforçar três percepções centrais. A primeira é a de que a política praticada no âmbito da ONU é parte de um todo maior – a política internacional –, parte essa progressista sempre que corresponde às aspirações da maioria da humanidade30. A segunda é a de que, em crises específicas, a Organização pode, e constitucionalmente deve, ter atuação decisiva no sentido de obter soluções políticas coletivamente aceitáveis.
Como instância do processo internacional, as Nações Unidas competem, na prática, pelo foco das atenções mundiais, não apenas com os principais ou mais poderosos Estados-membros – aos quais os caminhos unilateralmente trilhados podem parecer mais atraentes que a vereda multilateral –, mas também com outras entidades e organismos. Basta recordar o GATT, hoje Organização Mundial de Comércio (OMC), ou as entidades que integram, um tanto teoricamente, a chamada "família das Nações Unidas", como o Banco Mundial e o FMI, e até organizações de composição e âmbito geográfico mais restritos como a OTAN –, que tanta influência teve durante toda a guerra fria, época em que a ONU esteve em frequente eclipse político –, e que, agora, apesar das transformações político-estratégicas, conserva sua influência. Além disso, as ONGs, em especial as de base internacional, agora amplamente usam a ONU e por ela são usadas, o que cria novos e variados tipos de interações31.
As Nações Unidas têm ainda convivido com o desafio crescente de uma série de regimes, seja os tradicionais que decorrem essencialmente da Conferência de Bretton Woods na área financeira, monetária e comercial, seja outros, que vão do controle de tecnologias de uso duplo (nuclear, espacial, químico) aos espaços fora de jurisdições territoriais. Em tais regimes, muitas vezes administrados de maneira informal, é visível o papel estabilizador, gerenciador, coordenador, integrador e repressivo das potências dominantes. Na operação dos regimes, coloca-se, em consequência, o permanente conflito entre os interesses gerais e os ditames da hegemonia32.
A terceira percepção é a de que a linguagem da Carta é eloquente, elevada e inspiradora em tudo o que se refere à enunciação de Propósitos e Princípios. Ao mesmo tempo, é minuciosa, prescritiva e realista – no sentido forte do termo – no que diz respeito às regras de operação do poder internacional. Tais regras são sentidas no âmbito da Organização, ainda que de modo mitigado. As mutações da grande agenda da ONU – sua transformação qualitativa plurianual – se expressam por meio da inclusão ou do esquecimento de certos temas e pela ênfase diferenciada com que são tratados. Todo esse processo repousa sobre uma nítida especialização de tarefas entre os diferentes mecanismos multilaterais, que nada tem de neutra ou apolítica, pois está obviamente embasada nas relações de poder.
A ONU foi concebida como a pedra de toque da macroestrutura internacional. Na origem, sua Carta pôde ser interpretada – tendo em vista os Propósitos e Princípios que consagra – como um pacto horizontal entre Estados igualmente soberanos (embora díspares em poder). A Carta deveria ter papel constitutivo da ordem internacional, com base no princípio da responsabilidade coletiva pela paz.
Observa Baptista que:
...a Carta de São Francisco sucede, como marco histórico (...), pelo fato de ter sido também uma tentativa de constitucionalização do direito internacional. Desde 1945, porém, a realidade política revelou-se intratável. Os blocos antagônicos a Leste e a Oeste, obstaculizaram a observância dos Propósitos e Princípios da Carta e o desempenho daquela responsabilidade coletiva33.
Durante o período inicial da guerra fria, mobilizavam-se automaticamente maiorias em todas as questões de segurança e mesmo as de cunho econômico e social que pudessem ser colocadas em termos ideológicos. Por seu turno, a URSS, minoritária, se colocava no foro multilateral com posições irredutíveis. A ONU, em consequência, se converteu em palco para a guerra de propaganda, em detrimento de suas funções negociadoras e de foro implementador do mecanismo de segurança coletiva. A Organização se descaracterizava e, por muito tempo, foi relegada ao descrédito, configurando-se, em última análise, o que viria a ser chamado de "crise do multilateralismo".
Não mais têm vigência os pressupostos políticos, econômicos e estratégicos que produziram a Carta e a própria Organização. Salvo emendas ocasionais, a Carta é ainda a de 1945 e espelha uma situação ultrapassada. Suas estruturas institucionais não respondem às necessidades e, por esse motivo, necessitam ser repensadas e reorganizadas. Os procedimentos no Conselho de Segurança, por exemplo, são arcaicos e pouco transparentes, senão mesmo opacos, enquanto é igualmente antiquada a maneira pela qual aquele órgão é composto.
Há, porém, questões em que a Organização pode estar à frente da realidade política e criar condições para a promoção da reforma e correção de injustiças, mesmo as amparadas pelos esquemas dominantes. Assim ocorreu na luta anticolonial e na campanha contra o apartheid na África do Sul. Em outras vertentes, contudo, como ocorreu em todas as fases da guerra fria, inclusive as últimas, a ONU simplesmente representou a operação dos esquemas de poder. Seu papel é, portanto, muito variável, e pode, sem dúvida, servir de suporte ao "congelamento do poder"34. Não há como idealizá-la ou demonizá-la, lançar críticas e condenações por não atuar para além dos limites da ordem que a encapsula e determina suas regras formais ou informais de funcionamento.
As Nações Unidas reagem às mutações da cena internacional – são um organismo que, se às vezes é lento nessa reação, em outras, até as antecipa e as promove. Para ilustrar as diferenças entre suas expressões institucionais, em décadas anteriores e neste momento, bastaria contrastar o comportamento da Assembleia Geral e a do Conselho de Segurança em diferentes cortes temporais e temáticos.
A Assembleia atuou como uma vanguarda da emancipação colonial e da igualdade étnica. Em tais questões, o Conselho, porém, esteve por décadas fundamentalmente emperrado pela tenaz resistência oposta ao tratamento dessa temática pelas então metrópoles. O próprio Brasil teve, em anos anteriores, sua latitude de atuação no Conselho limitada, enquanto a presença brasileira no Conselho em 1988-89 e, em particular em 1993-94, teve como pano de fundo um cenário mais complexo e fluido, onde os parâmetros de poder passavam por processo de desconstrução.
O fim da guerra fria permitiu ao Conselho um nível de atividades e um prestígio que não conhecia desde a fundação das Nações Unidas (em 1990, foram aprovadas pelo Conselho 37 resoluções; em 1991, 42; em 1992, 74; em 1993, 93; e em 1994, 76).
Por um breve momento, sob o estímulo da Guerra do Golfo, em 1991, e do consequente ativismo do Conselho, chegou a esboçar-se um movimento na ONU em direção ao supranacionalismo que a Agenda para a Paz, do então Secretário-Geral Boutros Ghali, tentou operacionalizar. Surgiu, também, um novo enfoque político que utilizou o chamado "dever de ingerência" como bandeira principal. Depois, entretanto, das más experiências da Somália, de Ruanda e da Bósnia-Herzegovina e tendo presente a crise financeira da Organização, certamente passou a predominar uma atitude mais sóbria e mais consciente das limitações políticas e psicológicas que pesam sobre o uso multilateralizado da força.
Ainda assim, a multiplicidade de tarefas atribuídas ao Conselho facilitou a expansão de suas atividades. O Conselho é um órgão executivo na medida em que tem a faculdade de determinar ações concretas e obrigatórias para a manutenção da paz e segurança internacionais, em situações específicas, e de velar por sua execução. Seu caráter pode ser diplomático, na medida em que permita a produção de soluções negociadas entre as partes; cominatório, quando as soluções são baseadas no Capítulo VII da Carta; e quase judicial, quando árbitro de situações sobre as quais se arroga decidir sem possibilidade de revisão do mérito jurídico ou político.
O Conselho passou a ampliar suas atribuições juris- dicionais, sob o impulso das grandes potências e países médios ocidentais. A posição de que essa ampliação não fere a "letra" ou o "espírito" do texto constitucional busca maximizar as Nações Unidas como instância legitimadora para a sustentação dos atuais arranjos de poder. Sob o in- fluxo dessas ideias, o Conselho buscou chamar a si funções normativas, seja pela discussão de temas de alcance uni- versal, seja pela criação de precedentes como fontes de um case law constitutivo, cuja formulação é subtraída da participação da comunidade internacional mais ampla. As ações inovadoras, por assim dizer, do Conselho pressu- põem as chamadas "interpretações criativas" da Carta que funcionam como "reformas brancas" e a reinterpretam sem passar pelo penoso processo de adoção de emendas.
Nesse sentido, renovada ênfase foi atribuída às questões de "diplomacia preventiva", peacemaking e "imposição da paz", com esmaecimento das fronteiras que as separam35. A despeito das dificuldades financeiras e operacionais por que passavam as Nações Unidas em meados dos anos 1990, vislumbrou-se a ideia de dotar diretamente as Nações Unidas de uma espécie de "exército permanente" para pronto posicionamento em situações de crise.
No entanto, a expectativa ingênua de que a Organização poderia desempenhar papel proativo como guardião militarizado da paz, por meio de operações de nova geração com a irônica "imposição da paz pela força", foi dissipada quando se percebeu a dimensão dos riscos militares inerentes às crises que se seguiram ao fim da bipolaridade, com ênfase no nacionalismo, nas guerras civis e nas disputas sectárias fratricidas, nos países do Sul. Em última análise, não chegou a concretizar-se a relativização da diplomacia, em função do uso ou ameaça da força armada por parte da ONU.
Da euforia pelos aparentes êxitos iniciais no imediato pós-guerra fria, passou-se logo para a sóbria verificação do impasse em que se encontrava a ONU, em diversas regiões do mundo, muitas vezes colocada em meio a atoleiros políticos e militares e hostilizadas por todas as partes em conflito.
As Nações Unidas passaram por uma etapa crucial, não só em termos da hipertrofia do Conselho de Segurança até 1993, mas também ao longo da década de 1990 por uma percepção de sua incapacidade – mesmo vencida a etapa da guerra fria – de resolver conflitos espinhosos. O grande número de operações de paz de longa duração (em Chipre, no Congo, no Líbano, no Haiti, etc.) é uma boa evidência dessa situação.
Outros problemas centrais que surgiram nos anos 1990 com o ativismo do Conselho de Segurança são a necessidade de buscar o equilíbrio entre a Assembleia, o Conselho de Segurança e o Conselho Econômico e Social (ECOSOC); de criar instâncias para acompanhar o papel crescentemente ativista do Secretariado e de um mecanismo de equilíbrio entre o peso político dos países industrializados e a crescente capacidade parlamentar dos numerosos países em desenvolvimento e não alinhados.
Mesmo a crise gerada pela invasão do Iraque pelos EUA em 2003 não resolveu esse desequilíbrio. Passada a primeira fase de descrença nas Nações Unidas por Washington e de desconfiança mútua entre os membros permanentes do Conselho, o órgão retomou seu ritmo de atividades. O Governo Obama e, em 2011, a crise na Líbia deram mostras do interesse e capacidade dos EUA de utilizarem as ONU para seus próprios objetivos.
Nos trabalhos do Conselho reflete-se, em última análise, uma contradição entre os anseios por maior democratização da ordem internacional e as necessidades de maior efetividade política na vida internacional. Se, de um lado, é lícito defender que todos os países têm iguais direitos de acesso a um assento no Conselho, é igualmente forçoso reconhecer que uma composição desequilibrada, em deliberações de questões cruciais sobre a paz e a segurança, compromete os fundamentos políticos que deveriam embasar a atuação da ONU e sua avaliação.
O conspícuo esvaziamento da Assembleia Geral é outro fator de preocupação. A Assembleia está, em realidade, imprensada entre o universalismo de sua composição e a extensão de sua agenda (mais de 160 itens). Não se poderia, porém, aceitar passivamente o argumento simplista de que a eficácia de um órgão de composição restrita seria preferível à representatividade de um órgão universal, como fator de legitimação. O Conselho é justamente um órgão de composição extremamente restrita, que se beneficia, por isso, de uma agilidade decisória, mas que se ressente da falta de legitimidade representativa. A Assembleia, por sua vez, é o órgão mais democrático e representativo da comunidade internacional contemporânea, por sua composição universal e pela fórmula "um Estado membro, um voto", mas se tem mostrado, em anos recentes, inoperante no tratamento das questões cruciais de sua alçada.
Sempre houve nas Nações Unidas alguma tensão entre o realismo e o idealismo político. Sempre houve, em consequência, um espaço para o debate das questões políticas, econômicas, ambientais, sociais e jurídicas, que não encontra paralelo em outros foros, onde o realismo ganha todas as batalhas.
Como assinalava Childers37, já em 1995, o realismo político indicava que o poder (econômico e militar) sempre determinaria o rumo das relações internacionais e das Nações Unidas. A escola idealista – que é utópica, aos olhos do realismo – apela para ética, o direito internacional e os princípios democráticos e, em sua faceta mais radical, para os desejos da maioria da humanidade. As duas tendências se chocam, em consequência, em grande número de temas em discussão nas Nações Unidas, como, por exemplo, a reforma e a composição do Conselho de Segurança e do ECOSOC e a escala das contribuições financeiras pagas pelos Estados-membros. Evidentemente, a posição realista é usualmente assumida pelas potências "satisfeitas", em oposição às demais que buscam mudanças genéricas ou localizadas.
Nunca é demais sublinhar que as atividades econômicas e sociais da ONU, conduzidas especialmente por intermédio do ECOSOC, estão disciplinadas na própria Carta. Já o seu Preâmbulo expressa, sem qualificações, a determinação de promover o progresso social e melhores padrões de vida e de empregar a máquina internacional para o avanço econômico e social de todos os povos. Essa é a base jurídica e política dos estudos, debates, e resoluções, de caráter tanto abrangente quanto especializado, que as Nações Unidas promovem. É significativo que, desde o primeiro discurso brasileiro no Debate Geral da Assembleia Geral, em janeiro de 1946, tenha sido sublinhada a importância do ECOSOC, havendo o Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas então afirmado:
A Carta das Nações Unidas aponta claramente o caminho a ser tomado, ao posicionar o Conselho Econômico e Social lado a lado com o Conselho de Segurança. Contanto que aquele honre seus com- promissos, é de se esperar que este jamais terá de intervir38.
O artigo 55 da Carta estatui que sejam criadas "as condições de estabilidade e bem-estar necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as nações", significativamente no contexto do respeito ao princípio de direitos iguais e autodeterminação dos povos. A par de alinhar o roteiro das tarefas socioeconômicas, esse artigo as articula claramente com as dimensões políticas e as correlaciona com a já mencionada preocupação fundamental da Carta de preservar as gerações futuras do flagelo da guerra.
Esta é uma diferença crítica entre o mandato da ONU e a atuação dos organismos financeiros de Bretton Woods e da OMC. O debate econômico nas Nações Unidas é politicamente enriquecedor porque adota uma perspectiva muito mais ampla do que o conduzido em outros foros multilaterais. Além disso, é possível argumentar, como Childers o fez, que a Carta reconhece nos fatores socioeconômicos a causa última dos conflitos e, com essa base, determina que a Organização promova níveis mais altos de vida e as condições progresso e desenvolvimento, bem como soluções para os problemas internacionais de caráter econômico, social, sanitário e conexos e a cooperação cultural e educacional, além do respeito universal e observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
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