II - A experiência das Nações Unidas


Como concebidas em São Francisco, no já longínquo ano de 1945, as Nações Unidas estão presentes no encaminhamento dos macroproblemas internacionais de natureza política, militar, econômica, social, ambiental e jurídica. Em outras palavras, a ONU funciona seja como instância de mediação ou interveniência em situações críticas, isto é, altamente conflituosas, seja como foro para a paulatina construção da ordem internacional. Em ambos os casos, desempenha inequívoco papel de legitimação e impõe sanções aos que rompem com seus princípios. Em anos recentes, sob o impulso dos países ocidentais, as Nações Unidas (sobretudo o Conselho de Segurança) passaram a interessar-se por situações domésticas, que – alegada ou verdadeiramente – possam ter repercussão regional ou mundial (poucas, na verdade a têm), atuando em especial nos países menos desenvolvidos do continente africano. Portanto, a ONU nem corresponde à imagem frequentemente difundida de uma organização irrelevante na política internacional, nem pode ser considerada como um "governo mundial".
Classicamente, a presença da Organização em situações críticas toma corpo principalmente na operação quotidiana do mecanismo de segurança coletiva. Seu emblema central é a aplicação pelo Conselho de Segurança de medidas coercitivas tópicas (previstas no Capítulo VII da Carta), nos casos de ameaças à paz, violações da paz e agressão internacional. As preocupações de prazo mais longo e de maior abrangência, no que se refere à formação da ordem internacional derivam, por seu turno, do próprio caráter universal e permanente das Nações Unidas, como instituição, bem como do cumprimento dos mandatos, explícitos e implícitos, que sua Carta constitutiva lhe confere.
De diferentes maneiras, as Nações Unidas foram capazes de desenvolver as virtualidades da Carta, inclusive com a incorporação à sua agenda de vastos temas inexistentes, ou não reconhecidos, quando se reuniu a Conferência de São Francisco. Entre estes, figuram o desarmamento nuclear e os usos pacíficos da energia atômica, o desenvolvimento econômico, a proteção ao meio ambiente e as atividades no espaço exterior, para alinhar apenas alguns exemplos. As questões de direitos humanos só ganharam relevância maior após a adoção pela UNESCO da Declaração Universal de 1948, embora o termo já estivesse mencionado no Preâmbulo da Carta. Nos últimos anos, os temas, similarmente de longo prazo, da diplomacia preventiva e da construção da paz (peacebuilding) aumentaram de visibilidade, sem que, todavia, soluções satisfatórias lhes tenham necessariamente sido dadas.
A segurança internacional, embora central, nem de longe esgota a agenda da Organização. Três questões importantes se colocam nesse quadro: as duas primeiras são o conflito e a equidade entre as nações, uma de expressão militar, outra com imediata tradução socioeconômica. Como observou o professor Erskine Childers, esta última se reporta às causas básicas de conflito – muitas vezes de natureza socioeconômica –, enquanto a primeira às consequências da desatenção, para tais causas, por parte da comunidade internacional, sobretudo as principais potências. A terceira questão é a cooperação, em seu sentido mais amplo e mais positivo, que, além de benefícios intrínsecos e de seu impacto institucional, constitui um instrumento de desenvolvimento das relações amistosas entre as nações, que é outra das preocupações centrais das Nações Unidas.
A propósito, note-se que o Preâmbulo da Carta vai além de uma simples formalidade e contém ideias que provaram, no tempo, ser de extrema fertilidade.
As determinações contidas no Preâmbulo dizem respeito a "Nós, os Povos das Nações Unidas" (não aos indivíduos, nem aos Estados, comente-se) e se referem a:
– salvar as sucessivas gerações do flagelo da guer- ra, que duas vezes em nossa vida (na Primeira e Segunda Guerras Mundiais) trouxeram indescritível tristeza à humanidade;
– reafirmar a fé nos direitos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, nos direitos iguais de homens e mulheres e de nações grandes e pequenas;
– estabelecer condições para que possam ser mantidos a justiça e o respeito às obrigações derivadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional;
– para promover o progresso social e melhores padrões de vida, num quadro de liberdade mais ampla.
Para tais fins (se comprometem) a:
– praticar a tolerância e a vida coletiva em paz, entre uns e outros, como bons vizinhos;
– assegurar, pela aceitação de princípios e institui- ção métodos, que a força armada não será usada, salvo no interesse comum;
– e empregar os mecanismos internacionais para a promoção do avanço econômico e social de todos os povos.
Resolveram combinar esforços para alcançar tais fins.
Dessa forma, representante de nossos respectivos Governos congregados em São Francisco, havendo exibido seus pleno-poderes em boa e devida forma, concordaram com a Carta das Nações Unidas e por este instrumento estabeleceram uma organização internacional a ser conhecida como Nações Unidas.
Registra-se na Carta clara simbiose entre as dimensões políticas e econômicas, e entre o curto e o longo prazos. As Nações Unidas não devem privilegiar no processo internacional tanto a hipermetropia que significaria ignorar os fenômenos mais próximos, quanto a miopia inerente ao abandono da reflexão e debate sobre o que está mais distante, no tempo ou no espaço. A própria legitimidade das Nações Unidas, aos olhos da comunidade internacional, está baseada na complexidade de seu enfoque e na capacidade de dedicar-se a temas de interesse de cada Estado-membro, por menos poderoso que seja. Constitucionalmente, a Organização se devota à manutenção da paz e da segurança internacionais, assim como aos problemas sociais e econômicos, inclusive as questões ambientais, de direitos humanos e de cooperação para o desenvolvimento.
Note-se, como observou o Embaixador Marcos Azambuja, que, apesar da longa noite da guerra fria – que caiu sobre a cena internacional quando as Nações Unidas ainda se instalavam – é surpreendente que:
Uma organização atingida de maneira devastadora (...) no funcionamento do seu órgão central6 haja encontrado uma extraordinária legitimação periférica e estabelecido, ao longo das linhas de menor resistência, um expressivo corpo de doutrina e procedimentos que, bem ou mal, veio a conformar algumas das regras do jogo do mundo de hoje7.
E conclui Azambuja que as Nações Unidas e o conceito de segurança coletiva sobreviveram não tanto pelo êxito, em condições adversas, como pela convicção difusa, mas arraigada, de que em um mundo crescentemente interdependente e vulnerável não se poderia perder o caminho, quaisquer que fossem os obstáculos. A essas observações, o professor José Augusto Guilhon Albuquerque aduziu com clareza:
A notável expansão das Nações Unidas em organizações setoriais, comissões especializadas, conferências etc.; a universalidade de sua agenda; e o constante aumento do número de seus Estados-membros, indicam o quanto a dimensão cooperativa sobreviveu, apesar de tudo, ao caráter polarizado da guerra fria. De modo que não é possível sustentar a hipótese de que a ONU, no período da guerra fria, manteve-se essencialmente a serviço da mútua contenção das superpotências. Nesse sentido, terão podido avançar os temas da agenda não conflitantes com os interesses de uma ou de ambas as superpotências, prevalecendo o impasse com relação aos temas ou conflitos cuja resolução implicasse, ao contrário, alterar o equilíbrio existente entre elas.

Na verdade, as Nações Unidas nem de longe se configuram como um produto estático de uma ordem estagnada ou como uma faceta retardatária de uma ordem em transição. Correspondem a uma fórmula que permite acomodar e, por hipótese, resolver as tensões de um período de mudanças políticas universais. Como afirmou Inis Claude Jr., "(...) as Nações Unidas refletem a influência de uma variedade de fatores formativos. Não são apenas uma ilusão de idealistas, um arranjo de estadistas orientados pelo nacionalismo, uma flor de sementes plantadas historicamente, ou uma excrescência na superfície do mundo político contemporâneo. São tudo isso, e mais outras coisas"9.
A esfera multilateral em sua generalidade se colocou no próprio cerne da diplomacia contemporânea. Política e segurança, finanças e comércio, diplomacia intergovernamental e diplomacia pública, todas essas facetas compõem um todo complexo operado pelas Chancelarias nas mais variadas capitais.
Para o tratamento das questões internacionais, manejo da ordem e exploração de caminhos para seu desenvolvimento qualitativo, o exercício diplomático multilateral constitui uma técnica de trabalho tão valiosa quanto a do relacionamento bilateral. A este, adiciona um quadro abrangente de obrigações jurídicas10, um ambiente ético e de legitimação política universal e um tipo dinâmico de negociação em que variados interesses estão, simultaneamente, representados pela voz dos Estados participantes.
Nas Nações Unidas, as transformações avançam, apesar de ocasionais tentativas de reedição do passado. No início da década de 1990, na esteira do colapso da URSS e da vitória militar sobre o Iraque, fizeram-se notar devaneios milenaristas com relação ao papel mundial da Organização, como se a época de seus fundadores ainda pudesse, ou devesse, voltar. Os redatores da Carta foram sábios, ao preverem mecanismos para sua emenda e revisão11, de forma que se possa adaptá-la às realidades emergentes. O fim da guerra fria levou a novos avanços institucionais, não à preservação, ou ao retorno, de fórmulas lastreadas em predomínios perdidos no tempo.
Desde sua fundação, as Nações Unidas ocupam posição focal no sistema de poder internacional12. Projetados para impedir o retorno do flagelo da guerra, os mecanismos de segurança coletiva se viram paralisados, durante décadas, pelo terrível complicador da guerra fria. Distorceu-se a evolução institucional da Organização, com consequências que até hoje podem ser percebidas em termos de procedimentos, composição, mandato e atuação de seus órgãos.
Como reza seu Preâmbulo, a Carta das Nações Unidas objetiva "preservar as gerações futuras do flagelo da guerra". No século XXI, a paz, esperavam os fundadores da ONU, já deveria ser o "estado normal" do sistema internacional; seriam anomalias a tensão, a hostilidade e o conflito armado. As relações internacionais, entretanto, ainda estão longe desse ideal. Desde 1945, esteve o mundo sob contínua ameaça atômica e diante de graves conflitos em todas as regiões. Se, agora, o terror nuclear se encontra mitigado, as armas nucleares permanecem presentes na cena mundial, e em quantidade e qualidade superiores aos arsenais de 1968, ao ser firmado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares13.
Enquanto concepção jurídico-política, o mecanismo de manutenção da paz e segurança, que tem no Conselho de Segurança seu principal instrumento, visa a tornar mais ordenada – e por conseguinte mais previsível – a vida internacional, pois organiza a comunidade para harmonizar as ações de Estados14, resolver controvérsias, dissuadir as ameaças e penalizar a agressão. Em São Francisco, contudo, a entronização da faculdade do veto reduziu essa concepção às realidades da preponderância dos membros permanentes do Conselho de Segurança.
Na falta de acordo entre os grandes, paralisava-se o Conselho de Segurança e, ainda mais grave, a repetida utilização do veto atribuía, na prática, aos membros permanentes, uma imunidade político-jurídica em relação à operação do mecanismo coletivo. No clima de guerra fria e de impasse, proliferaram arranjos de segurança regional, dos quais o Tratado do Rio de Janeiro (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca – TIAR15) é um protótipo, logo seguido pela OTAN e outros pactos regionais. O espelho dessa imagem foi a constituição do Pacto de Varsóvia, do outro lado do espectro político-estratégico.
No Brasil – por convivermos de modo pacífico, há bem mais de século, com nossos vizinhos – talvez nos tenhamos acostumado a tomar a paz como permanente, imutável. Em termos regionais é verdade que predominam as perspectivas de paz, apesar de ocasionais conflitos. Sua substância global, porém, não pode cingir-se apenas à ausência da guerra nuclear ou à redução da ameaça a ela conexa: proliferam os conflitos convencionais e a verdadeira paz teria que incorporar de forma criativa e transformadora as múltiplas dimensões que espelham o espírito de nosso tempo. Surgem, por outro lado, novas preocupações que podem ter impacto sobre a segurança internacional e o bem-estar dos povos e que, por isso mesmo, merecem acompanhamento cuidadoso.
Na ótica das atribuições das Nações Unidas, a paz verdadeira inscreve-se numa esfera ampla, que incorpora os anseios de tranquilidade e bem-estar dos povos (cujos padrões de vida são com frequência marcados por extremas desigualdades) e abrange considerações de justiça, Estado de direito e democracia. Dada a novidade da presente macroestrutura de globalização mundial, de ênfase aparentemente menos ideológica e militar, a paz se coloca não mais como utopia, mas como um projeto prático e realizável. De forma alguma, chegou-se a antecipar a dramática reviravolta que o sistema internacional sofreu desde a década de 1990 ou os atuais eventos de índole predominantemente regional.
Em 1969, por exemplo, ao procurar identificar as tendências e perspectivas da futura ordem jurídica internacional, o professor Morton Kaplan sugeriu possíveis estruturas e processos constitucionais na arena internacional, que deveriam, a seu ver, afirmar-se, quais sejam:
(a) equilíbrio de poder puro e simples;
(b) o modelo bipolar flexível;
(c) veto unitário, no qual cada membro tem a possibili- dade de paralisar o sistema político;
(d) a distensão político-militar;
(e) uma ordem composta por quatro blocos (incluindo o socialista) de nações;
(f) o surgimento de muitos blocos instáveis ou de grupos regionais;
(g) uma alternativa global configurada pelo gerencia- mento da herança comum da humanidade pelas Nações Unidas, desnuclearização das potências nu- cleares menores, intervenção coletiva principalmente por meios regionais16.
Esse catálogo amplo, visionário mesmo, tem interesse pela disposição de Kaplan de encarar um número significativo de hipóteses, nenhuma delas, porém, sequer próxima à realidade que se construiu após o fim da guerra fria. Tal catálogo permite avaliar a enorme distância entre as opções realmente feitas desde a década de 1990 e as melhores estimativas que existiam sobre sua possível transformação. De toda forma, as Nações Unidas têm sido historicamente permeáveis às realidades da arena internacional, quer ao refletirem, quer ao moderarem e modularem as injunções de poder.
A atuação e os destinos das Nações Unidas só se fazem inteligíveis a partir da consideração da natureza da ordem internacional que a engendrou e do quadro de sua evolução desde 1945. Sua relação com as realidades políticas não é, porém, unívoca ou mecânica. Expressa, mesmo, uma tensão dinâmica entre as funções da ONU como produto da ordem internacional e seu papel como possível veículo de transformação dessa ordem. A performance da Organização combina realizações e desapontamentos, esperanças e frustrações. Muitos dos sonhos de 1945 se esfumaçaram ou se perderam nos sucessivos embates internacionais e as tentativas de revivê-los não resistiram a pressões mais recentes.
Ao examinar a construção da nova ordem, o então Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro indicou, de forma objetiva, o tema da contribuição tanto dos Estados quanto das Nações Unidas e de outros organismos internacionais:
Para ser alcançada, essa nova ordem internacional dependerá da participação, de forma apropriada, de todos os Estados, grandes e pequenos, no processo decisório internacional. Não basta, portanto, imaginarmos construções jurídicas ou éticas desligadas do contexto político concreto, pois nem são de natureza judiciária os meios de que dispõem os Estados para estabelecer uma ordem mais pacífica e mais justa, nem os organismos internacionais atualmente existentes, inclusive a ONU, são tribunais para julgar o comportamento dos Estados, mas "centros para a harmonização da ação dos Estados.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top