Mais um dia de trabalho II
O portão externo da mansão estava aberto. Havia um rapaz eviscerado enfeiando o lindo jardim frontal. O portal interno estava fechado.
Syrun deu lugar a Cascalho que acelerou se chocou com violência fazendo-o ceder num estrondo. Syrun atravessou o vestíbulo e examinou o átrio. Era um espaço amplo, com uma piscina no centro e que dava acesso ao jardim fundos. Não havia ninguém ali, nem mesmo sinais de luta.
Cascalho apalpava o ombro dolorido — Esse lorde é mesmo rico, não é chefe?
— Quieto!
Syrun fungou, seguiu para as escadas e subiu. As pessoas que conviviam com ele chamariam aquilo de instinto, mas eu sabia que era algo mais.
Bateu na porta trancada e disse alto — Abram! Lorde Gremp me enviou para levá-las até ele.
Uma senhora a abriu, a adolescente atrás dela tinha os olhos inchados de chorar.
— Onde está o baú? Lorde Gremp...
A senhora apontou trêmula para o canto do dormitório. — Debaixo daquelas roupas.
— Cas, pega o baú.
Era um baú pesado, mas Cascalho deu um jeito. Ele sussurrou ao pé do ouvido do chefe — Vai dar trabalho levá-las, por que não...
— Seu molóide preguiçoso, é apenas a porcaria do nosso trabalho. Fazê-lo direito é essencial para continuar arrumando trabalho. Quantas vezes tenho que...
— Tá bom, chefe, tá bom! — o grandalhão saiu inclinado levando o baú.
— Venham comigo, tentarei mantê-las em segurança. — disse com um olhar gentil.
Aquela falsa cortesia de Syrun me fazia odiá-lo ainda mais. Cumprir contratos é tudo que ele fazia, fossem morais ou imorais.
Syrun deu uma boa olhada com desejo para a menina-moça. Ainda não era hora para aquilo. Era preciso ater-se aos negócios.
— Haja o que houver, não corram para longe de mim, entendido?
A senhora, ligeiramente gorducha e de meia idade, tremia de medo. A menina-moça, magra e com os cabelos trançados, olhava nos olhos de Syrun extraindo confiança para sair de casa e enfrentar o caos lá fora.
No jardim frontal, encontraram Mona acompanhada de mais dois membros do bando, Lindão e Pirralho. Este último, tinha um corte feio no braço. Já foi dizendo:
— Não foi nada chefe!
Lindão, chegou a assustar um pouco as damas com sua aparência repugnante. Talvez fosse o homem mais feio que elas já viram na vida. Ainda assim, foi o único que as cumprimentou com medida cortesia.
— Estou encantado, na mesma medida do vosso desencanto com a minha pessoa.
Lindão distribuiu três sacolas e logo para dividirem o conteúdo do baú. Mona encarava o lado de fora e mantinha-se concentrada. Eu podia ver a magia emanando dela a fim de camuflá-los, mas duvido que os demais pudessem.
— Tudo pronto, chefe — anunciou Pirralho, o miúdo de aparência nada amigável.
— Preparem-se — anunciou Mona antes de suspender a parede ilusória.
Syrun tomou a menina puxando-a pela mão, enquanto a senhora seguiu-os mal contendo sua tremedeira.
Quando alguns demônios chegaram para atacar, as pernas da dama pifaram de vez.
Lindão protegeu a retaguarda com duas flechas certeiras. Era um arqueiro e tanto. Derrubou um demônio horripilante.
— Atrás de mim — ordenou Syrun e avançou contra um espécime aracnóide com tentáculos. Convocada ao trabalho, Natsui esquentou para cortar a carne fazendo-a chiar. Cascalho emendou uma machadada na criatura e Pirralho arrancou uma das pernas com o golpe de seu sabre curvo. O demônio ainda estrebuchou enquanto recebia uma nova leva de golpes do trio.
Aquela cena fez a menina abafar um grito. Seu coração afundou gelando o estômago.
Syrun voltou a tomá-la pela mão para passarem pelo lado da criatura derrubada. Impaciente, ele olhou para trás e gritou — Vamos mulher! Ande!
— Vem mamãe! — emendou a jovem.
Mas a senhora, em prantos, tremia toda e não conseguia dar um passo. Talvez pela vergonha de ter se molhado toda.
— Cas, carregue a dama! — ordenou Syrun.
O grandalhão protestou — Porra chefe, ela tá toda mijada!
— Vai logo, eu eu vou extripar você!
Cascalho girou os olhos e voltou contrariado. Ergueu-a emitindo um misto de gemido, lamento e protesto. — Oh, bosta! — disse ao sentir o cheiro de merda. — A porra da dona também se cagou!
— Olha o respeito! — Lindão o repreendeu ríspido.
— Vá se fuder, Lindão!
O mercenário respondeu com um sorriso entre o disparo de uma e outra flecha. Pois mais inimigos vinham na direção deles.
— Um grandão! — avisou Pirralho.
Era um demônio enorme. A boca podia bem comer uma pessoa de uma só vez. Não faltavam tentáculos e olhos também.
— Moonaaa! — suplicou Lindão.
A feiticeira gemeu ao derramar um pouco do próprio sangue com o corte de uma faca. Tentar enganar uma entidade poderosa ia exigir toda sua perícia e também, sua força vital.
— Leve a menina — Syrun empurrou-a contra Pirralho. — Eu vou distraí-lo.
O comandante correu à frente do grupo na avenida larga.
— Ô coisa feia! — berrou, fazendo as veias do pescoço saltarem.
Dúzias de olhos do demônio se fixaram nele. Sacou Fuyui e disparou uma rajada de lâminas de gelo. A maior parte das lâminas se quebrou contra a carcaça do demônio, mas algumas encontraram pontos moles e penetraram. A resposta do demônio foi um bramido que mesclava timbres agudos e graves e que estremeceu as janelas de vidro das casas próximas. A esta altura, o restante do grupo mergulhou no véu ilusório criado por Mona e foi passando ao largo da criatura.
O demônio avançou contra Syrun que embainhou as duas espadas para escalar uma casa. Porém, quando estava no segundo pavimento, veio o golpe violento de um volumoso tentáculo do demônio. Ele se jogou de lado e agarrou-se a uma protuberância de madeira na estrutura. A janela e parte da parede da casa ruíram sob um estrondo ao serem atingidas pelo músculo do abissal. Syrun girou o corpo num ângulo improvável e demonstrando força incomum, balançou para se atirar em direção ao beiral. Um novo giro e impulso o colocaram com os pés sobre o telhado da casa. Outro tenáculo veio de cima para baixo, mas ele escapou com a sua agilidade inumana. Um salto, rolamento, tomada de equilíbrio e novamente estava de pé e correndo para o ponto mais alto do telhado.
A criatura cresceu sobre a lateral empenhada para abocanhá-lo. Telhas voaram para cima e Syrum saltou para o outro lado. Rolou até cair na rua. Qualquer pessoa normal teria se esborrachando contra o pavimento, mas Syrun se contorceu como um gato, caiu com pés, depois mãos e ombros. Um rolamento veloz, e pronto. Correu pela rua, o rosto contraído, sentindo as contusões. O demônio veio por cima da casa, a demolindo à medida que avançava. Mas o esforço de perseguição já era inútil, pois o mercenário corria com velocidade invejável.
Alguns quarteirões adiante, Syrum colocou as mãos sobre os joelhos para recuperar o fôlego. A respiração rápida dividia a busca por ar, com o desperdício deste, já que deixava escapar uma gostosa gargalhada. Aquele tipo de coisa o fazia, talvez, se sentir tão feliz e vivo, quanto as noitadas com suas esposas favoritas. Já estava próxima da linha de defesa da cidade contra a invasão.
— Do que está rindo, desgraçado? — indagou membro da milícia.
Syrun ficou sério e respondeu — É que estou vivo, só isso!
— Então vamos — o soldado apontou — ali, precisam de nosso apoio!
Syrun olhou-o de cima-abaixo, com certo desprezo.
— Desculpe, mas tenho um contrato a cumprir. Boa sorte... — disse deixando o miliciano para trás.
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