Capítulo Um.
– Chega, Raíssa! – ofegante, Saory implorou, sentindo os músculos de seus braços queimarem e seu rabo de cavalo grudar em sua nuca suada.
O dia em Primavera ainda estava tipicamente agradável naquele ponto. Enquanto as duas treinavam no exterior da pequena casa de madeira amarelada, o sol preguiçoso da manhã ainda esquentava as suas cabeças e a grama neon ainda pinicava seus calcanhares. Naquele ponto, aquele primeiro dia da semana ainda se tratava de um dia convencional dentro da nova realidade na qual Raíssa e Saory Cartelli estavam inseridas. E, como de praxe, ambas treinavam luta corporal no quintal infinito que a mais velha possuía em sua humilde casa afastada, com uma familiaridade levemente forçada.
– É isso por hoje – reafirmou, rendendo-se, enquanto desgrudava seus fios de seu pescoço com uma careta no rosto. – Não dá mais.
Soltou todo o ar de uma vez, apertando seu abdome dolorido. Realmente, não dava para continuar naquele ritmo. Queria um banho refrescante e um suco de melancia. E, talvez, meses de folga.
Era fato que aos poucos a princesa de Jasmim ganhava mais resistência física. E que, depois de quase dois meses de treinamento, sentia-se em forma o suficiente para aguentar todos os exercícios que recebia de sua treinadora experiente. Contudo, tinha certeza de que nunca se acostumaria com o suor nojento que impregnava em seus cabelos bem cuidados em todos os treinos, muito menos com o princípio de morte que sentia no final de todos eles.
Já perdera a conta de quantas manhãs e fins de tarde se dedicara por completo àquela prática. Nos dois meses que se hospedara na casa amarela de Raíssa, treinaram quase todos os dias, e aquilo era quase assustador de se pensar. Tanto a parte do treino extensivo quanto a de sua mais nova moradia.
Ela estava hospedada na casa de Raíssa, e pensar sobre isso ainda a fazia sorrir sozinha, ciente da loucura que aquela situação implicava. Do ataque cardíaco que provocaria em qualquer um que soubesse. Do surpreendente bem que aquela insanidade a estava fazendo.
A princesa não saberia citar, se a perguntassem, o que de fato a levara a tomar essa decisão fatalista. A verdade era que não havia um motivo específico, mas sim um agregado de fatores que a fizeram morar por dois meses quase completos com uma assassina. Foram várias pequenas coisas que a levaram a de fato se sentir em casa em um casebre precário e sem ar condicionado.
Ela poderia citar como uma delas a briga que teve com seu irmão quando ele voltou para a casa do hospital e, indiretamente, a culpabilizou pela morte de seu pai ao afirmar que "Saory não devia ter se metido em algo que não entende".
Poderia citar, claro, a tristeza que assombrou seus dias no endereço novo que estipularam para sua família: uma mansão provisória a 15 minutos do antigo castelo enquanto este era reformado. A menina sentira uma aflição crônica a sufocar por completo durante aqueles dias, a fazendo quase deprimida. Fazendo-a se sentir doente. Nos dias que se seguiram ao velório de seu pai, Saory se sentira completamente sozinha, e, logo em seguida, amargurada, ao saber da tragédia que se dera com o sucesso do feitiço. E ela não achava que tinha forças o suficiente para segurar o peso da morte de seu pai e o fracasso que a levou àquele ponto sozinha.
Poderia citar também os olhares de pena e o luto que amassavam aquela mansão e a consumiam noite e dia. Poderia citar o fato de que precisava de apoio, e incrivelmente só o sentia quando se misturava no quintal e capturava alguns vagalumes com as suas mãos em concha. Quando saía de dentro daquele mausoléu amaldiçoado e solitário.
Sua mãe passava o dia inteiro em seu escritório. Seu irmão idem. Seus sobrinhos passavam o dia na escola ou na psicóloga, e Violeta não a passava a mínima confiança. No fim, todos que a sustentavam tinham morrido ou se afastado. E ela sabia que não podia continuar ali, daquela forma. Mais que isso, sabia que a decadência não combinava com ela. Queria sair daquela onda de desalento, daquela maldita sensação de desespero. E sabia onde poderia encontrar algum tipo de recomeço.
Ela sempre soube que seu recomeço tinha um nome, desde o momento em que tomou coragem para telefonar ao número que Raíssa a havia dado antes de fugir no velório de seu pai. Sua irmã era a única que de certa forma, entendia tudo o que se passava com ela. A única que prometia a tirar dali. Então ela fez a loucura de aceitar ser levada.
E havia sido assim que ela terminara onde estava. Na ânsia de fugir de sua ruína, havia pedido socorro a uma caçadora aposentada e ligeiramente desconhecida. Na ânsia de começar de novo, permanecia ali. Mesmo que o mundo se encontrasse uma tragédia por sua causa, ela estava bem. Raíssa a fazia bem, contrapondo-se a todo o resto. E ela não se importava mais com o que os outros iam pensar de tudo aquilo. Estava vivendo o tipo de sonho que faria de tudo para nunca mais acordar.
– Não fizemos quase nada – protestou a mais velha, claramente decepcionada, marcando cada sílaba de sua frase como sempre fazia.
Enquanto Saory estava pálida e dolorida depois de meia hora de treino, Ray estava quase revigorada. Era assim em todas as práticas. Raíssa nunca cansava, a ponto de Saory duvidar que ela fosse verdadeiramente humana. Bom, a verdade era que a haviam transformado em uma esplêndida máquina.
– Eu estou com cólica – apontou, enrolando a ponta de seus cabelos. Elas estavam cacheadas, o que era mais uma das novidades que morar com aquela mulher a proporcionou.
Depois de mentir para sua mãe afirmando que ia morar na casa de uma amiga e se mudando para o meio do mato com Raíssa, a menina se aventurou a usar alguns produtos que sua irmã usava no cabelo. Produtos naturais que ela mesma fazia ao misturar coisas que Saory ao menos sabia pronunciar o nome. E, sem a quantidade de química a qual sempre expusera seus fios, eles se tornaram mais volumosos. Mais indecisos. Mais cacheados. E surpreendentemente, ela adorou isso. Sentia-se mais selvagem, como sua irmã.
– Você não recita sua fraqueza ao seu oponente – Ray insistiu, cruzando seus braços e a encarando com seus olhos azuis intensos e contornados por olheiras persistentes.
– Não é fraqueza – argumentou, imitando a pose da mais velha. – Meu útero está se desfazendo.
– Isso é natural, irmã – retrucou, pronta para mais horas de treinos de socos, mas sendo obrigada a ceder ao encarar o biquinho no rosto da mais nova.
No fim, Saory sempre conseguia o que queria quando se tratava de Raíssa.
– Ok, podemos continuar amanhã – afrouxou sua posição, limpando os dentes com a língua em um gesto que sua irmã já percebera que sempre fazia ao raciocinar. – Vou fazer um chá.
– Não precisa! – anunciou, imediata. – Eu tenho remédio – Ray arqueou uma de suas claras sobrancelhas, o que fez Saory sorrir antes de continuar: – Sim, eu aprendi e trouxe meu estoque da última vez que visitei mamãe.
Apesar de estar teoricamente morando com sua irmã mais velha sequestrada, Saory se esforçava para visitar uma semana sim e outra não, sua mãe. Afinal, a rainha não demonstrava, mas sua filha sabia que ela ainda estava mortificada com toda a situação. Além de ter começado a tomar remédios demais. Aquilo a preocupava.
– Isso não é natural – apontou Raíssa. Como sempre, relutante a qualquer produto industrializado ou farmacêutico. Ou processado. Ou feito de algo além de mato.
Saory deu de ombros.
– Seu chá tem gosto de vômito – soltou, fazendo uma careta logo em seguida ao perceber que estava sendo indelicada. – Sem ofensas.
Ray soltou todo o ar de uma vez, ajeitando demoradamente alguns fios de seu cabelo que caiam em seus olhos, antes de se virar subitamente e partir para dentro da casa sem falar mais nenhuma palavra. Resumidamente vencida.
Aquela vitória fez Saory sorrir aliviada. Realmente sentia cólica, mas havia dramatizado para pular o treino. Estava cansada, afinal. E era claro que Raíssa sabia disso. Ela sabia quando sua irmã estava mentindo. Primeiro porque estava acostumada a estudar expressões bem mais frias que a dela e segundo porque sua irmã mais nova era uma mentirosa questionável quando se tratava de blefes inofensivos.
Bom, não importava. Mesmo que a ruiva mentisse descaradamente para pular o treino ao menos uma vez por semana, Raíssa sempre cedia às suas vontades, paparicando-a como se ela fosse uma criança. Fazendo sua comida, lavando sua roupa e aos poucos, se acostumando a ter uma companhia. Cada vez mais, uma se acostumava com a presença da outra. E, mesmo que Saory precisasse abstrair seu passado para que isso acontecesse e tivesse dormido com uma faca debaixo do travesseiro na primeira semana que se mudou para lá, no presente, conseguia conviver em harmonia o suficiente com sua irmã.
Sim, sua irmã.
Ela havia comprovado isso nos primeiros dias que se mudou para lá, ao roubar um fio de cabelo de uma escova de bambu e enviar para um laboratório. Uma semana depois chegara a comprovação em seu celular. Era verdade, aquela era Raíssa Cartelli. Sua irmã mais velha sequestrada. Caçadora. Assassina. A maluca que batera em um quarto inteiro era sua irmã. E ela ao menos tinha ciência do que aquele fato agregava em sua vida. Ela não fazia ideia que era a única que de fato poderia fazer Ray abaixar as orelha e a obedecer. A única pessoa ainda viva que a vencia. A única coisa que sobrara no mundo que a importava. E isso significava que ela tinha um canhão de guerra ao seu lado. Ou melhor, um vagalume da guarda particular. O que seria uma carta na manga para o resto de sua vida. Bom, isso se tudo desse certo a partir de então.
– Você está progredindo. No combate – Ray apontou, despreocupada, antes de sugar de forma barulhenta todo o líquido de sua colher. Como se puxasse a sopa de um canudinho. Um típico costume da menina que irritava Saory.
Jantavam sentadas uma em frente a outra em uma mesa de quatro lugares disposta no meio da cozinha de azulejo bege. Salva raras exceções, comiam em silêncio, escutando o barulho das cigarras e dos morcegos do lado de fora, além de no presente, o de Raíssa sugando sua sopa.
Aquela cena familiar virara rotina, e se tornara quase sagrada para as duas, que há muito sentiam falta de um momento tão intimista como aquele. Saory comera em mesas enormes e com a preocupação de ser educada e respeitosa por toda a sua vida. Raíssa não costumava jantar, por vezes se isolando em seu quarto minúsculo. Saory passara um ano longe de casa, Raíssa morara sozinha desde seus quatorze. Era fato que ambas tinham vivido vidas muito diferentes, mas no final, suas histórias convergiam em diversos pontos. O fato de jantarem sozinhas era apenas um deles. E aquele era um dos momentos em que mais se sentiam à vontade. Em que mais se sentiam irmãs.
Ignorando o fato de que Raíssa fazia mais barulho para se alimentar que seu afilhado de dez anos, Saory colheu ela mesma uma porção da sopa de abóboras que a mais velha havia preparado antes de finalmente a responder. E quando o fez, estava animada.
– Estou, não? – gabou-se, sorrindo. Raíssa a encarou falar com seus olhos apáticos e concentrados, sugando mais de sua colher. – Eu me sinto mais segura agora – admitiu, reflexiva, sustentando o líquido em seu talher ao invés de em sua boca. – Mas você ainda precisa me ensinar a atirar.
Ray negou tranquilamente com a cabeça.
– Eu não gosto de armas de fogo.
Insistiu naquela máxima que já repetira diversas vezes a sua irmã, mas que nunca parecera entrar em sua cabeça dura.
– Ah, fala sério – protestou, como era esperado. – É muito mais fácil que todos esses golpes.
– É desleal – explicou novamente, sem alterar seu tom de voz, ou sua expressão, o que forçou sua irmã a retrucar, malcriada.
– Matar é sempre desleal – criticou, forçando a mais velha a levantar seu olhar firme e pousar em seu rosto familiar.
Um tipo de diálogo silencioso se instaurou naquele exato instante entre as duas. Um tipo de provocação fria e rasteira. Um golpe baixo que fez o coração da ex-caçadora palpitar. A fala de Saory trouxe a superfície fragmentos dos assuntos nunca esclarecidos ou perdoados por parte das duas. Afinal, desde o princípio elas evitavam falar sobre algo além do que era superficial e seguro. Evitavam falar sobre o passado de Raíssa, ou sobre temas sensíveis como o fato da mais velha matar erratas. Elas postergavam qualquer tipo de confronto ou discussão, sobrevivendo em cima de uma fina linha da superficialidade que as permitiu viver no mesmo teto por todo esse tempo. Mas, mesmo que não externassem seus pensamentos, isso não os tornava amortecidos, e a alfinetada de Saory naquele jantar era apenas mais uma para a coleção. Era apenas mais uma espetada no sombrio balão que as mantinha nos céus. E era apenas questão de tempo até que ele despencasse. Raíssa sabia disso. Sabia que sua irmã nunca de fato a perdoara, ou escutara sua versão. Gostaria que pudessem falar sobre isso, mas a mais nova sempre se esquivava, e naquele dia não seria diferente.
– Irmã, precisamos conversar sobre...
– Perdi o apetite – cortou-a pela metade, largando a colher ainda cheia no prato e se colocando de pé em um pulo. – Com licença. Vou ligar para mamãe.
E com isso ela saiu. Fugindo como uma covarde da forma que sempre fazia. Colocando-se distante daquele princípio de discordância. Com medo de reacender as chamas que há tempos a fizeram desgostar de sua irmã mais velha e destruir o pequeno faz-de-conta no qual estava imersa. Com medo de ir a fundo e perder a única sustentação que ainda tinha. Mesmo que soubesse que era só questão de tempo até ser obrigada a descer de seu casebre nas nuvens e voltar a viver em sua mansão mal assombrada. E então o jantar havia sido arruinado, e as nuvens tempestiva finalmente passaram a sobrevoar o casebre amarelado e solitário que descansava em meio as montanhas.
– Está tudo ótimo, mamãe.
Andando de um lado para o outro do quarto quase abraçado pela penumbra, Saory reafirmava sua mentira ao celular com uma facilidade típica de alguém que o fizera sua vida inteira.
O chão de madeira estalava conforme a mais nova dos Cartelli peregrinava, e seus passos eram facilmente ouvidos pela sua irmã que lavava a louça do jantar arruinado no cômodo logo abaixo.
O pequeno e único quarto daquela minúscula residência tinha cheiro de madeira velha e mato seco. Era um quarto entulhado e apertado, o qual, de certa forma, não parecia servir de repouso para uma mulher adulta. Muito menos para uma caçadora sem coração. Parecia o abrigo de uma adolescente com personalidade forte, ou de uma mulher com muitos fantasmas na sua cola. Bom, pensando bem, era perfeito para Raíssa; e agora servia bem a sua irmã. Afinal, havia sido cedido integralmente a Saory enquanto a sua verdadeira dona dormia sem reclamações no sofá de dois lugares na sala de estar também apertada. Saory não protestou muito tomada a decisão, aceitando sem problemas mais esse nível de bajulação. Afinal, a cama de Raíssa era bastante confortável, seu quarto acolhedor e o seu lençol resguardava o cheiro bom e reconfortante de seus cabelos.
Com os olhos poupados das lentes, como costumeiramente ficavam na casa de sua irmã, e os cabelos minuciosamente amarrados em um coque, Saory sentia um frio dispensável ao ser tocada na pele por uma brisa fria e tempestiva que adentrava sem ser convidada pela janela escancarada. Trazendo com ela o cheiro de chuva, inconstância e más notícias. Raíssa sempre gostava de manter as janelas de sua casa abertas, Saory sempre se metia a fechar todas. Afinal, não parecia certo se manterem tão expostas ao mato escuro e aos mosquitos que as rodeavam. Mas Ray não tinha medo do escuro como a princesa mais nova, muito menos do que ele trazia junto a si.
Com o celular apoiado entre seus dedos esguios e a voz de sua mãe percorrendo mecanicamente seus ouvidos, Saory tirou alguns segundos para observar novamente o pequeno potinho de vagalumes que Ray mantinha em cima do criado mudo que beirava sua cama.
Havia menos de meia dúzia de insetinhos luminescente dançando por aquele recipiente de vidro de estimação. Poderia parecer cruel, mas Raíssa tomava o cuidado de os deixar partir todos os dias antes mesmo do sol nascer, e capturar novos inquilinos antes do fim da tarde. De certa forma, Saory não entendia bem esse ritual, mas não conseguia evitar se sentir extasiada por passar a noite ao lado daquele pequeno viveiro particular. Afinal, apesar de nunca ter visto um pessoalmente, a princesa mais nova sabia para que as lendas diziam que aqueles pequenos potinhos serviam: para a proteção contra os maus espíritos. Eram como amuletos da sorte, de proteção. E ela precisava mesmo de algum resguardo.
Apesar de nunca ter sido permitido a Bartira manter algum pote de vagalumes perto de si, ela os adorava. Mesmo que sua mãe tivesse uma espécie de trauma, ela sempre se encantara por aqueles animais. E esse era outro elo em comum entre as duas irmãs Cartelli.
– Ah, mamãe... Catarina está melhor ainda – satirizou Saory, sem conseguir se segurar, e por pouco Dália não captou o deboche em sua voz.
Era sorte da princesa que sua mãe estivesse fora de forma. Nos velhos tempos a rainha de Primavera já teria descobrido há muito o que de fato acontecia com a menor de suas proles.
Afinal, não era tão difícil assim de descobrir que Saory não estava ficando na casa de Catarina, uma "amiga" de infância, todo esse tempo, como afirmava. Muito menos de finalmente entender que depois que o motorista contratado a deixava no apartamento de sua "amiga", ela pegava o carro alugado na garagem e dirigia até a casa de sua irmã. Claro que o fato de pagar Catarina tornava toda a fuga mais segura, mas a Dália casada sempre sabia de tudo. A viúva, entretanto, estava a beira de uma aposentadoria.
– É... estou adorando as ruas de Amarelo Girassol...
Revirou os olhos, cansada das mesmas balelas, caminhando a passos lentos até a janela, determinada a interromper o vento gelado que surgira tão subitamente quanto o aperto em seu peito.
Ao mesmo tempo que conversava com sua mãe no telefone sobre coisas tão reais quanto o verde de seus olhos, sua cabeça a mantinha soterrada na areia movediça que mais uma vez provocara no jantar mais cedo. O passado de Raíssa não lhe era palatável, e ela não aguentava mais ignorar seus sentimentos divergentes. Assim como a outra, sabia que precisavam conversar, mas temia o que aconteceria com as suas relações quando de fato o fizessem.
Assim que seu corpo esguio chegou ao parapeito, começara a chuviscar grosseiramente. O céu resmungou e aquilo a deixou irritada, rosnando de volta. Odiava chuva, e odiava mais ainda o que estava acontecendo com Primavera. Durante o dia o clima havia se assemelhado a sua casa, mas naquela noite ela se sentia em qualquer outro lugar que não seu continente de origem. "Fomos tão idiotas". Repetiu a si mesma, enquanto se desdobrava para a segurar com ambos os braços os vasculhantes de madeira e apoiar o celular em seu ombro.
– Hum. Sim, sim. Sempre vejo um lindo pôr do sol da janela.
Desde que telefonara, aquela era a primeira verdade que contara. De fato, assistira lindos fins de dia naquele casebre de madeira. Aquele pensamento a fez sorrir fraco, mesmo que estivesse com os dedos sendo cutucados pela chuva que recém iniciara e com seu coração sufocado. Aquela era uma boa lembrança em meio a inconstância de memórias que tinha. Na primeira semana assistira todos os fins de tarde sentada no telhado com sua irmã mais velha, comendo um doce de leite que ela comprava de um fornecedor e nada além de silêncio e o canto dos pássaros as incomodando.
Fechou a janela em um baque, protegendo-se da chuva que aumentava e de seus pensamentos pinicantes. Gostava de Raíssa. Havia passado bons momentos naquela casa. Não queria estragar isso ao pensar ou falar demais, portanto não o faria.
– Cat é um doce mesmo, mas quer saber, mãe? Chega de falar de mim. Como você está? – insistiu, soando um pouco mais imediata e ríspida do que gostaria. Dália não gaguejou.
– Estou ótima.
– E sóbria?
– Saory...
– Mãe. Você anda tomando os medicamentos como foram prescritos?
– Sim. Claro.
Bartira suspirou. Apesar da voz de Dália ter saído firme como sempre, sua filha mais nova não acreditava em uma sílaba que saíra de sua boca. Afinal, havia testemunhado sua nova compulsão por medicamentos da última vez que visitara a mansão. Aquilo tirara seu sono por uma semana.
– Não minta para mim, por favor – pediu, diminuindo propositalmente seu tom de voz e se sentando com classe na ponta da cama de Raíssa. O lençol que a cobria era azul piscina e os pés de madeira escura. Ela rangia quando nela se sentava, e guardava centenas de caixas de sapato escondidas abaixo de si.
– Não estou – insistiu, afastando o celular de seu ouvido. Saory pôde ouvir uma batida na porta no outro lado da linha, e prever o fim daquele telefonema antes mesmo que a rainha soltasse: – Estou bem, filha, mas agora preciso ir...
– O que você vai fazer?
– Trabalhar.
A mais nova engoliu a seco.
– Que tipo de trabalho?
Dália falou com alguém que não sua filha, abafando parte do diálogo com a palma de sua mão sufocando o microfone. Aquela era a resposta que Saory precisava.
– Preciso ir.
– Mãe...
– Amo você. Mande lembranças a Cat.
– Mãe!
– Tchau, Saory.
– Mãe, por favor, espere – implorou, com rapidez, totalmente desarmada. E foi aquela súplica que fez Dália adiar o fim daquela breve conversa. O som de sua respiração do outro lado da linha fez Saory continuar. – Eu preciso da minha mãe, não da rainha – disse, ainda mais baixo, sentindo os batimentos em seu peito escassos e apertados. – Por favor, não me decepcione de novo.
Um silêncio cortante e enganador se prolongou por alguns segundos depois daquela súplica, fazendo crescer grânulos de esperança no peito de Saory. Mas eles foram de vez esmagado quando Dália voltou a falar.
– Até mais, filha.
Foi só o que disse, e então a ligação foi finalizada bruscamente, e os dedos de Saory agarraram seu celular sem comunicação com força. Sufocando-o como se ele fosse o culpado por sua mãe andar tendo reuniões secretas que absolutamente todos com um cérebro sabiam de que se tratava. Todos sabiam que a rainha estava de volta, ou alguma parte dela. Fazia mais ou menos duas semanas que ela voltara a "trabalhar". E Saory andava fechando os olhos para isso também, tentando se fingir de inocente e se forçar a acreditar quando Dália afirmava que não estava fazendo o que todos pensavam, ou que não estava tomando medicamento além do indicado.
A menina se remexeu, expirando com intensidade. Tentando afastar de seu interior todos os seus problemas, mas falhando miseravelmente. Precisava conversar com alguém, sobre tudo, ou ia enlouquecer. Foi então que ela desbloqueou seu celular mais uma vez, deslizando a tela pela sua longa lista de contatos antes de parar com o dedo em cima do sobrenome "Dantas". Ela mordeu os lábios, vislumbrando a palavra com seis letras brilhar sob suas íris escuras.
Não ligava para Dantas a mais de um mês. Desde que tudo acontecera, a separação entre os dois foi inevitável, e talvez em grande parte favorecida pelo seu sumiço e suas mentiras. A última vez que haviam conversado, o rapaz estava tentando restabelecer sua vida em Outono, voltando a trabalhar para a Vigia e tentando esquecer a morte de seu melhor amigo e o assassinato arquitetado pelo seu noivo. O rapaz estava perturbado, como ela, e a conversa banhada por superficialidades, por sua parte, não perdurou. Contudo, sempre que a princesa tinha algum tipo de surto de consciência, deslizava até o sobrenome de seu único verdadeiro amigo e tentava tomar coragem para ligar, sem nunca ter ido até o final. Por algum motivo sentia vergonha, sentia-se errada, e suspeitava que tivesse a ver com a sua recente covardia aguda que com toda certeza seria condenada pela sinceridade de Dantas. Talvez ela não o telefonasse por não estar pronta para arcar com a verdade. Talvez precisasse de um empurrão para sair dessa inércia. Talvez ela recebesse naquela mesma noite o susto que precisava.
Como se fosse o verdadeiro tapa que precisava receber, um barulho alto vindo da janela a forçou a desviar sua atenção, assistindo o objeto recém fechado balançar com a força do vento. Ela franziu sua testa, tendo estranhos déjà vu ao sentir seu estômago se revirar em uma sensação familiar.
Do lado de fora começara a chover intensamente, e os pingos batucavam nas telhas logo acima do quarto de Raíssa. Uma sinfonia sinistra que até então estava contida apenas a cabeça de Saory pareceu reverberar por todo aquele aposento.
Ela cruzou suas pernas, não entendendo bem a adrenalina que sentia até que escutasse em alto e bom som um estrondo estranho vindo do andar debaixo. Algo abafado como o som do derrubar de alguma coisa bastante pesada, ou alguém. Não conseguiu controlar o pequeno e estúpido salto que deu ao se assustar com o barulho. Seu coração acelerou no momento exato. Todos os seus sentidos se aguçaram e ela guardou lentamente o celular em seu bolso.
– O segredo é manter a calma – sussurrou para si mesma, parafraseando um dos ensinamentos de sua irmã em um dos treinos. Mas era muito mais simples falar do que de fato obedecer, ainda mais ela, que não estava acostumada a seguir ordens. Nem aquelas que vinham dela mesma. – Raíssa deve ter derrubado alguma coisa.
Tentou se convencer de que estava sendo paranoica como Dantas seria e ignorar o formigamento na palma de suas mãos. Mas não pôde enganar a si mesma por muito tempo. Não quando o único e abafado barulho se transformou em vários. Não quando os passos se tornaram muito concisos e rápidos. Não quando a sua não muito aguçada percepção a fez entender que alguém subia as escadas. Correndo. Muito menos quando ela percebeu que o quarto que estava era o único destino no segundo andar.
– Céus.
Sem pensar duas vezes, a princesa se dispôs a correr desajeitadamente até a porta, agarrando com pressa a tranca embutida e ameaçando a girar. Mas foi impedida de se proteger em um quarto trancado por um corpo estranho que se arremessou do outro lado no instante exato. A porta a tapeou com força ao ser empurrada. Ela gritou, sentindo seu estômago doer ao ser acertado em cheio pela maçaneta. Todavia, apesar da dor, manteve-se firme onde estava.
Droga de casa pequena!
Ignorando a ardência aguda abaixo de suas costelas, Saory lutou de volta, concentrando todo o seu peso no objeto agressivo a sua frente, investindo com quase tanta força com a qual ele era empurrado. Seu peito doía de tão forte que passara a bater e seus pobres membros recém enrijecidos sofreram para balancear o peso do corpo de quem quer que fosse que tentava invadir o quarto de sua irmã. O invasor empurrava com destreza e força e Saory tentava evitar ser arrastada. Essa briga patética demorou quatro segundos, até que finalmente uma voz familiar surgisse do outro lado e pusesse fim àquele mau entendido.
– Irmã, sou eu – a voz de Raíssa a fez perder a concentração por alguns instantes, e foi o suficiente para que ela finalmente fosse vencida e o pequeno aposento que com uma garra inédita tentara proteger, fosse invadido. Por sua irmã.
Saory teve tempo de abrir a boca antes que os cabelos claros de Ray chicoteassem seu rosto e seus dedos ágeis lacrassem a porta atrás de si. Cartelli retirou os fios com raiva de sua cara ofegante, encarando sua irmã e entendendo finalmente que havia travado uma luta inútil contra sua única aliada.
– Está louca? – protestou, incrédula. Suas mãos tremiam sem controle e seu peito subia e descia seguindo o mesmo ritmo que uma britadeira.
Pelos deuses!
Raíssa se virou para a encarar. Seus olhos azuis estavam mais escuros que o normal e seu rosto avermelhado graças a corrida. Contudo, tirando isso, a mais velha parecia quase tão tranquila quanto se estivesse tomando uma sopa, ou trançando o cabelo de Saory – o que acontecera mais vezes do que ambas poderiam contar.
– Isso foi bom, irmã – parabenizou, referindo-se claramente a defesa que a mais nova impusera contra a caçadora aposentada.
Saory fez pouco caso, revirando os olhos e levando uma das mãos as suas costelas, que doíam mais que o esperado. A careta em seu rosto entregou sua vulnerabilidade e a vermelhidão sua irritação.
– Te machuquei? – preocupou-se Raíssa, o que fez Saory ironizar:
– Quer dizer, além de enfiar uma maçaneta na minha costela? Você precisa aprender a falar antes de agir, Raíssa. Sério. Ai!
– Desculpe, irmã.
Culpada o suficiente, a ex caçadora suspirou discretamente antes de usar uma das mãos para acariciar fraternalmente o ombro de sua irmã. E foi só então que Saory enxergou o avermelhado acima de cada um dos nós de seus dedos. Aquela constatação devolveu a menina a sua feição de desespero. Seu rosto perdeu a cor.
Raíssa havia socado alguém.
O peito de Saory deu um looping completo. Ela ignorou a dor por alguns instantes.
– O que está acontecendo? – indagou, sem conseguir disfarçar o tremor em sua voz. E foi aquela pergunta que pareceu relembrar Raíssa que algo de fato acontecia.
Depois de Saory a acordar, ela soltou todo o ar de uma vez, afastando-se lentamente e finalmente abrindo caminho até a sua cama, em busca do motivo que a havia levado até ali sem soltar mais nenhuma palavra.
Saory acompanhou sua movimentação com o olhar, testemunhando o momento em que ela se agachou e puxou uma das muitas caixas de sapato que a mais nova sabia que guardava ali debaixo.
Raíssa não se incomodou o suficiente com a situação na qual estavam imersas para se limitar a sussurrar quando voltou a falar:
– Eles vieram pegá-la.
Saory prendeu sua respiração, abaixando seu tom de voz pelas duas.
– Eles?
A mais velha apoiou a caixa de papelão resgatada em cima de sua coxa. Ela não tinha cor, nem peso, mas o que resguardava tinha um valor equivalente a um dos continentes.
– Seguidores dos deuses.
Explicou, enquanto abria finalmente o objeto e puxava um punhal prateado e sem graça que Saory sabia bem do que se tratava de dentro. Seu cabo preto era quase tão monótono quanto um céu sem estrela, mas sua lâmina prateada era quase que um holofote em um quarto apagado como aquele. Em um mundo escuro como aquele.
Raíssa se debruçou para pegar outro punhal em outra caixa enquanto sua irmã finalmente juntava os pontos.
– Ah, eles vieram pegar a adaga?
Conferiu, sentindo-se idiota por ter achado de primeira que ela era o motivo da invasão dos seguidores dos deuses. Abriu uma brecha em seu medo para se questionar em pensamento: sempre fora tão egocêntrica assim?
– Sim – respondeu Raíssa, para a primeira pergunta, jogando a caixa de papelão para longe e acariciando a lâmina afiada com a ponta de seus dedos, distraindo-se por completo com uma facilidade absurda.
Saory a assistiu acariciar aquela arma por um tempo significativo, antes de pigarrear de propósito e finalmente a acordar de sua transe, forçando-a a se colocar de pé e guardar seu bibelô em sua bota. Aquela lâmina afiada fez questão de cintilar antes de sumir de vez, a provocando um arrepio por antecipação. Quantas vezes sua irmã havia se portado da mesma forma antes? Quantas vezes tinha rasgado a pele de alguém com um objeto como aquele?
A ruiva umedeceu seus lábios, ansiosa. A chuva caía forte, como se baldes fossem despejados em cima de seus cabeças. Aquilo não era Primavera. Aquela situação não deveria ser parte de sua vida.
– Quantos são? – indagou, sentindo suas mãos molhadas e trêmulas, tentando desviar sua cabeça do rumo obscuro que ela parecia querer a guiar. Seu peito batia acelerado enquanto encarava a pose centrada de sua irmã.
Depois de sua pergunta, Raíssa a cedeu total atenção por alguns segundos. Ela sempre fazia isso quando conversava com alguém. Mesmo que houvessem homens querendo as matar do lado de fora, ou o apocalipse, ela tirava um tempo para encarar seu interlocutor nos olhos. Especialmente quando este era sua irmã.
– Eu acertei quatro.
Céus. Saory teve tempo de achar que ia infartar antes que Raíssa a estendesse a segunda arma resgatada debaixo de sua cama.
– Pegue.
Pediu, e Saory não demorou para a obedecer. Mesmo que não se sentisse muito habilidosa com armas brancas, ela sabia fincar em alguém, caso fosse preciso. Ray faria o seu máximo para que não chegasse a esse ponto. Saory também.
– Raíssa...
– Está tudo bem, irmã – tentou a tranquilizar ao captar o desespero concreto e inteiriço embutido em sua voz. – Temos tudo sob controle. Está na hora de praticar o que treinamos. Está pronta?
– Não.
Ray ignorou seu medo e deu um passo em sua direção.
– Eu confio em você – afirmou, com sinceridade, retirando de Saory um olhar duvidoso. Mas não havia mais tempo para ter dúvidas. Ambas sabiam disso. – Vamos.
E então ela se virou sem cerimônias e rapidamente abriu a porta. Bartira a seguiu, sem muita escolha, e a partir de então tudo pareceu acontecer rápido demais para que seu cérebro assimilasse com clareza.
Tudo que ela viu foi o cabelo loiro de sua irmã planar como uma cortina em meio a ventania antes de assisti-la traçar com maestria o que era sua maior arte: o combate.
Havia alguém próximo a elas assim que elas se desprotegeram. O corpo de um sujeito de Primavera claramente subia as escadas quando Raíssa saiu de seu quarto, mas Saory pouco viu além de seus cabelos cor de fogo antes que sua irmã o nocauteasse com uma força impressionante e o fizesse rolar todo os degraus como um rolo compressor. O barulho do corpo do homem batucado na escada a deu calafrios, a visão do golpe a fez prender sua respiração. Ela paralisou na soleira da porta, mas Ray continuou.
As mãos claras e precisas da mais velha dos irmãos Cartelli tocaram minimamente o corrimão de madeira escura antes que ela simplesmente se debruçasse por cima dele e planasse como se tivesse asas, ou falta de juízo, até o andar debaixo.
Saory engasgou com um grito ao assistir sua irmã pular, sentindo seu peito descolar de suas costelas ao escutar o baque que os seu corpo fez ao pousar com maestria no térreo.
Assim que ela desceu houve um grito. Um grito masculino. E então o som claro de uma luta corporal se iniciou. Um sinal de que Ray destilava toda a sua técnica enquanto Saory estagnava, sentindo uma dificuldade imensa para respirar. A última vez que tinha se sentido nervosa daquele jeito havia sido obrigar a assistir a morte de seu pai. Ela não estava preparada para aquilo de novo, para ver a morte. Mesmo que soubesse que eles viriam um dia, não se sentia treinada o suficiente para lutar. Não queria mais lutar. Mas ela precisava entender que o universo não se importava tanto com suas vontades quanto Raíssa, e cobraria seu despertar sem dó. Naquele mesmo instante.
Seus pelos se arrepiaram antes mesmo que o som dos passos recomeçasse. Mas dessa vez ela pôde enxergar cabelos vermelhos avançando para o segundo andar. Não se tratava mais de sua irmã, e agora ela precisaria revidar de verdade.
– Ah, meus deuses!
Teve tempo de exclamar, antes que o rosto de um sujeito pouco tonto surgisse a alguns degraus de distância. Saory deu um gritinho histérico, correndo sem pensar duas vezes para dentro do quarto e fechando a porta atrás de si. Seus dedos tremiam enquanto ela trancou a si mesma. Fugindo novamente e sendo ovacionada pelo seu orgulho.
Seu coração batia forte o suficiente para ser ouvido de Inverno. Ela se fechou do lado de dentro com a velocidade de um tufão, mas o sujeito do lado de fora não desistiria tão fácil de colocar as mãos na mais nova e vulnerável das princesas.
Foi por isso então que ele chegou a centímetros de distância e chutou a porta de madeira. Saory abafou um grito, dando passos apressados para trás com os olhos marejados. Ela agarrava com força o punhal, que escorregava pelas suas mãos, quase tão molhadas quanto o telhado acima de sua cabeça. Naquele momento ela ouvia cada gota que estancava as telhas e sentia cada batida energizada de seu coração. O homem deu outro soco, rodando a maçaneta com raiva. Murmúrios inaudíveis chegaram aos ouvidos da princesa e a fizeram tremer com ainda mais intensidade.
Mas que idiota!
Xingou a si mesma por cada vez mais recuar. Xingou a si mesma por se trancar em um quarto em um plano idiota de auto defesa enquanto sua irmã combatia sozinha no mínimo quatro sujeitos. Xingou a si mesma por permanecer onde estava, do jeito que sempre fora, mesmo que acreditasse que tinha mudado. Não seja a mesma covarde de sempre, Saory. Murmurou, engolindo a seco, mas teve dificuldade mais uma vez em obedecer.
O sujeito se lançou subitamente sobre a porta, que quase cedeu. Saory deixou algumas lágrimas de desespero descerem pela sua bochecha.
Seu pai havia partido porque estavam todos acostumados demais a serem vítimas. Raíssa passara um mês completo tentando a refazer guerreira. Ela precisava ser minimamente forte. Não queria mais ser atacada por covardes, bárbaros. Tinha que fazer isso. Podia fazer isso. E precisou de fato o fazer.
Assim que Saory decidiu que lutaria para salvar sua pele ao invés de esperar por um resgate, a porta tombou.
O objeto atacado explodiu na terceira vez que foi atingido pelo corpo extremamente musculoso de um rapaz com menos de um metro e sessenta. Ele destruiu a porta com relutância, mas quando finalmente o fez, seu corpo compacto foi cuspido junto com as dobradiças.
Saory gritou, sem conseguir evitar, esgueirando-se para atrás da cama, sentindo seu pulso batucar na arma que tinha em mãos.
O sujeito se recuperou rapidamente de sua entrada desajeitada, levantando seu rosto ensopado de suor para encarar a fundo a princesa meiga e fraca de Jasmim com um sorriso cortando um rosto magricela e alongado.
Cartelli o enxergou por detrás de lágrimas e tremores. O sujeito se aprumou e estagnou, encarando-a com certa satisfação por tempo demais. Saory estava em pânico, por isso não conseguiu segurar as palavras na sua boca:
– Eu acho melhor você ir.
Era pra soar como uma ameaça, mas saiu como uma súplica. O sujeito arqueou uma das sobrancelhas em resposta, quase tão ralas quanto o pelo ruivo em seus braços.
– Por quê? A garotinha vai gritar por socorro?– aquela ironia pairou no ambiente como pequenas navalhas, forçando Saory a agarrar com mais força o objeto que tinha em mãos.
A chuva do lado de fora aumentava a cada segundo. Os vagalumes aprisionados em seu potinho passaram a voar sem rumo, batendo no vidro como se tivessem repentinamente se tornado insanos. A dignidade de Saory estava comprometida como nunca antes.
– Eu não preciso gritar por ninguém – retrucou, ofendida. Seu orgulho estava ferido, e isso era o necessário para a deixar irritada o suficiente para falar sem tremer.
– Sério? – ironizou o rapaz, rindo e estalando seus dedos. Saory levantou seu queixo.
– Sério.
Mais uma risada debochada saiu dos lábios esbranquiçados daquele homem.
– Bom, tanto faz. É melhor para mim, de qualquer jeito.
E foi então que ele deu o primeiro passo na sua direção, colocando fim àquele breve e estranho diálogo entre os dois. Saory tentou não recuar à investida, mas não conseguiu controlar seus pés.
Ele avançou novamente, e ela retrocedeu, fugindo com tanta velocidade que bateu com as costas com violência no peitoril da janela. Ela se assustou com sua própria fuga, o que fez o sujeito rir em alto e bom som.
– Pode gritar, se quiser... – provocou novamente, aproximando-se mais, até ficar perto o suficiente para a encurralar.
Ele não carregava nenhuma arma em mãos, apenas seus punhos rijos. Saory engoliu o bolo em sua garganta, carregando um punhal afiado.
– ...seria até mais interessante travar uma luta justa.
– Você é um idiota – a princesa rosnou, engolindo todas as partes de si mesma que aspiravam simplesmente gritar por Raíssa, ou pelos deuses, ou por quem quer que fosse. Ela não podia o dar o gostinho de estar certo a seu respeito. Não podia trincar sua vaidade desse jeito. Mas ao mesmo tempo, não tinha coragem de contra-atacar.
– Não se sinta ofendida. Você é realmente uma belezinha – aproximou-se ainda mais, chegando tão perto que ela passara a sentir o calor de seu corpo e o cheiro azedo de seu suor. Ele era ligeiramente menor que ela, mas em largura era seu triplo. Aquilo devia a amedrontar ainda mais, mas no momento, serviu como combustível para sua falta de controle emocional. – Escute, não vou te machucar, você só precisa me dizer onde está a adaga.
Saory não achou que fosse possível ele se aproximar mais, mas assim ele o fez. Extremamente confiante de que mesmo que ela carregasse um punhal em mãos e ele absolutamente nada, ela era inofensiva. Extremamente seguro de que ela era a "garotinha" que falara. Que bastaria pressionar que ela o entregaria o que queria. Que ela era idiota, fraca, boba, assim como metade das pessoas em sua vida a rotulavam. Ela nunca quis tanto chorar de frustração antes.
Piscou diversas vezes, tentando racionalizar seus pensamentos desesperados e difusos. Era quase cômico como centenas de coisas passavam pela sua cabeça ao mesmo tempo que nada o fazia. O medo a deixava impulsiva, e seus impulsos primários eram sair dali. Não. Droga. Não sairia correndo!
Demorou meio segundo para encarar o sujeito verdadeiramente mais uma vez, e quando o fez, estava quase certa de seus próximos passos. Com uma incerteza pouco aterrorizante, assassinou a parte de sua mente que carregava uma placa escrita "socorro" e tentou vestir uma armadura de coragem. Ele estava errado ao seu respeito, e ela iria provar.
– Promete? – conseguiu dizer, mesmo que seu peito estivesse entalado em sua garganta e a raiva e a adrenalina a enforcassem.
Os vagalumes a esquerda dos dois batucavam o vidro quase no mesmo ritmo da chuva. A princesa de Jasmim apertou com ainda mais força sua arma, inebriando-se de um heroísmo quase fluido.
– Promete que não vai me machucar? – soltou todo o ar de uma vez, umedecendo seus lábios.
O rosto do sujeito estava tão próximo que a dava náuseas. Ele sorriu torto para ela, tomando a liberdade de tocar seu rosto. Seus dedos pareciam pequenas lixas. Ela se segurou para não cravar o punhal em seus órgãos íntimos naquele exato momento.
– Prometo. Apenas me diga onde está a adaga que seu belo rostinho vai continuar tão lindo quanto sempre.
Saory se forçou a derramar algumas lágrimas teatralmente. O sujeito insistiu em acariciar seu rosto.
– Por favor não me machuque.
– Já disse que não vou. Agora, mestiça. Onde está a adaga?
Ela fungou, encarando-o a fundo com seus olhos completamente descobertos. Apesar da penumbra, era claro que eles eram castanhos. Droga. Tentou ignorar aquele grande percalço, chorando não mais tão teatralmente assim.
– Eu acho... – começou, deliciando-o com seu olhar mais ingênuo. As lágrimas percorriam sua bochecha com constância, e alagavam o dedão não convidado que ele posicionava em sua bochecha. – ... Ah, deuses. Está embaixo da cama.
Ao ser proclamada em voz alta aquela mentira, o sujeito alargou ainda mais seu rosto em um sorriso vitorioso, afastando sua mão e seu corpo lentamente do de Saory. Encarando-a como se ela fosse muito idiota.
– Boa menina.
Fez questão de a elogiar como a um cachorro antes de finalmente seguir a direção que ela indicara, sem nenhuma cerimônia.
Assim que ele deu as costas, Saory inspirou com agressividade, roubando todo o ar de Primavera. Com a garganta arranhando, umedeceu seus lábios ressecados, agarrando o punhal com mais força e furando sua própria mão com suas unhas compridas. Seu peito batia freneticamente e os vagalumes também. Ela encarou a nuca raspada do sujeito com os olhos inchados e penetrantes. Aquela parecia a coisa mais difícil que já havia feito em sua vida. Já se sentia terrivelmente exausta.
Engoliu a seco. Seus pensamentos borbulhavam.
"Construa uma vantagem". Aquela era a frase que Raíssa mais havia repetido durante os treinos. Saory era magrela, pouco forte e pouco treinada, ela precisava ser inteligente além de se tornar simplesmente notável. Raíssa sempre a dizia: "uma luta é sempre mais mental que física". Aquele sujeito não tinha o que precisava para vencê-la. Ele só tinha o físico. E aquela era a vantagem que ela havia arquitetado para o vencer. Precisava ser o suficiente, pois aqueles punhos pareciam martelos capazes de desfazer seu corpo enferrujado com um peteleco.
Respirou profundamente antes que ele finalmente se agachasse e começasse a bagunçar sem cerimônias as caixas de sapato de Raíssa debaixo da cama. Uma a uma, ele puxava, analisava e arremessava longe, e foi só quando ele chegou na terceira que Saory finalmente agiu.
Ele não esperava nenhuma represália da frágil princesa, portanto, não teve nenhuma reação instintiva antes de ser acertado na nuca pelo cano daquele punhal. Ela o acertou pelas costas, e selou seu destino sem mensurar as consequências.
O golpe da princesa foi limpo, estratégico, pouco covarde, mas acima de tudo, eficiente. O sujeito pendeu para o lado instantaneamente, surpreendentemente apagado, de forma que Saory teve que pular para trás para proteger seus pés do homem em queda.
Ele caiu rápido, e seu corpo miúdo bateu em cheio criado mudo, balançando o pequeno objeto de madeira e forçando o pote de vagalumes a despencar sem cerimônias nos chãos. O vidro estilhaçou, fazendo um barulho dispensável e forçando a princesa a dar mais um de seus gritinhos assustados, fugindo dos cacos em movimento.
O pote se despedaçou por completo, e o pequeno enxame em seu interior despontou sem rumo de imediato.
Quando livres, os insetos luminescentes voaram na cara de Saory, que só teve tempo de protegeu seu rosto antes que os animais a rodeassem. Seus corpinhos iluminados enfeitaram as mechas ruivas da menina por alguns instantes, antes de simplesmente dispersarem por todo o quarto, sem nenhum destino específico traçado. Desesperados. Perdidos. Completamente perdidos.
Saory abriu os olhos receosa, sentindo suas mãos tremerem e suarem mais que o esperado. Abaixo de si, o sujeito parecia realmente desmaiado; acima, os vagalumes tentavam achar uma saída, exatamente como ela o fazia. Em sua boca sentia um gosto amargo e em seu peito morava uma turbina. Precisava de auxílio, aceitava isso agora, e o farol que ela e os vagalumes tanto esperavam não tardou a aparecer. Em formato de uma mulher quase fantasmagórica de tão branca.
– Irmã?
Raíssa chegou correndo, e teve tempo de usar aquela única palavra antes que o enxame voasse em ordem e em disparada na sua direção. Ela, diferente de Saory, não se protegeu com nada além de um olhar petrificado. E os insetos a rodearam como se a cumprimentasse antes de acharem finalmente seu o caminho para fora do quarto. Para fora dali. A menina se surpreendeu minimamente com a situação, mas não gastou mais de um segundo com seus insetos afugentados, fixando seu olhar sério na sua irmã.
– Está tudo bem?
Preocupou-se, encarando o rosto mais empalidecido que nunca da Cartelli mais nova. Seus olhos castanhos estavam arregalados e sua boca entreaberta. O pânico e a confusão em seu rosto eram evidentes, e ela não precisou responder para que Raíssa adentrasse com rapidez e finalmente vislumbrasse o sujeito caído ao pé de sua cama. Seu olhar se voltou novamente a Saory.
– Está morto?
Aquela pergunta foi como uma adaga no coração da mais nova. Ela engoliu a seco antes de a responder.
– Não sei.
Ray se adiantou em caminhar até sua irmã, que por sua vez não deixou de notar os machucados ensanguentados ainda mais evidentes nos nós de suas mãos e um grande e novo corte em seu ombro. Seu rosto estava vermelho e seus cabelos levemente embaraçados. Mas sua postura continuava imbatível.
– O que aconteceu com os outros? – Saory conseguiu perguntar, aflita, ainda complemente amortecida pela adrenalina. Raíssa a encarou rapidamente antes de responder. Seus olhos eram como pequenos fuzis.
– Não conseguiram o que queriam.
Limitou-se a dizer apenas isso, passando pela mais nova e se agachando sob os cacos de vidro ao lado do corpo caído. Saory mordeu seus lábios. Aquele era o segundo homem que nocauteava em sua vida, o segundo seguidor dos deuses, e não se sentia a vontade com nada daquilo. Ao assistir Raíssa checar os batimentos do sujeito, ela realmente torcia para que ele estivesse bem. Nem foi um golpe tão forte assim. Uma parte de si repetia, enquanto a outra a confundia com a certeza de que havia sido um golpe muito bom.
– Está vivo.
Ray apontou sem fazer suspense, o que fez Saory soltar todo o ar que nem sabia que estava segurando de uma só vez. Engoliu a seco, irrigando sua garganta seca e seu peito amedrontado.
Graças aos deuses não era uma assassina. Não ainda.
Seu olhar aliviado cruzou com o de sua irmã, que a fitava com atenção extra e descargas de perigo evidente. Alguma coisa em seus olhos caídos e manchados estava diferente, mas Saory ainda não sabia o entender por completo.
– Me espere no corredor, irmã.
Pediu, com a sua voz mais grave do que nunca, esticando uma de suas mãos para puxar a adaga em sua bota. A mesma adaga que todos aqueles cinco homens haviam ido buscar. A mesma que muitos já tentaram usurpar antes, mas que sem nenhuma surpresa, não foram capazes. Afinal, ninguém até então havia sido páreo para a sua inquilina. Muito menos aqueles seguidores pouco treinados. E todos teriam o mesmo destino. Todos. Foi só então que Saory entendeu o que aconteceria a seguir.
– Raíssa, não. Vamos apenas tirar ele daqui.
Ray segurou a adaga com maestria pela lâmina, desviando seu olhar para o objeto cintilantes e a rodando entre seus dedos.
– Não podemos.
– Como assim não podemos? – Saory protestou, gesticulando. Seu tom de voz aumentou alguns decibéis sem que ela percebesse, e seu peito voltou a palpitar. – Estou dizendo que podemos.
– Irmã, ele viu seus olhos.
Argumentou pacientemente, encarando a mais nova por debaixo. Assistindo de um péssimo ângulo quando ela engoliu o nó em sua garganta. Ela viu quando seu olhar perdeu o brilho e toda e qualquer esperança foi dilacerada pelo peso da vida real que tanto tentaram fugir.
– Raíssa – chamou pela irmã, que assistiu-a murchar. De certa forma, aquilo machucava as duas de forma quase igual. – Tem que ter outro jeito.
Opinou, baixo o suficiente para que a chuva sobrepusesse o som de sua voz. Raíssa rodou a adaga novamente.
– Qual?
Quando perguntou, ela realmente gostaria que tivesse alguma resposta. Os deuses sabiam que ela mudaria as cores do mundo para manter sua irmã inocente. Ela estriparia metade do universo para que sua irmã não tivesse que o fazer. Ela enfrentaria um continente para que sua irmã não tivesse que ser a cúmplice de uma morte. Ela faria qualquer coisa para que Saory não fosse como ela, mas naquele ponto, estava sem mais ideias. Então sim, gostaria que Saory a dissesse o que fazer, porque para ela aquela sempre havia sido a única opção, e a única que se considerava hábil a seguir.
– Raíssa...
– Você está preparada? – indagou, forçando Saory a prender sua respiração. Ela quase via seu peito bater contra suas costelas. – Ele contará de seus olhos.
– Eu sei – mordeu os lábios, nervosa. Era quase possível ver a bagunça que estava sua cabeça, seu coração. – Por favor, não me faça ter que escolher.
– Você não está escolhendo. Eu estou – foi firme, encarando-a tão profundamente que parecia ler sua alma. – Saia, irmã.
– Eu não queria...
– Eu sei. Isso conta – garantiu, inspirando profundamente. – A pureza em seu coração. A vontade de salvar esse homem. O que virá a seguir é comigo.
Saory não conseguiu controlar quando pequenas lágrimas se formaram em seus olhos expostos. Não sabia o que pensar, o que fazer. Sabia que aquele sujeito contaria de seus olhos, sabia que não podia lidar com isso agora e sabia que não queria ter que escolher pela morte de alguém. Seria nobre se ela simplesmente impedisse sua irmã e dissesse que sim, estava pronta para assumir ao mundo que era uma mestiça e assistir todo o resto de realizações e respeito que ainda tinha evaporarem por completo. Mas ela não estava, e não havia sido corajosa o suficiente para ser minimamente nobre naquele instante. No fim, nada havia de fato mudado, havia?
– Seja rápida – pediu, por detrás de olhos marejados e uma consciência manchada. – Eu sinto tanto...
– Por favor, saia. Me espere nas escadas. Não vá até a cozinha.
Raíssa ordenou, e então Saory finalmente saiu.
Tentando se convencer que aquele rapaz era "ruim", a princesa de Jasmim deixou o quarto para trás por completo. Com a cabeça baixa, os olhos fixos e pingados e o peito dolorido, a menina não olhou par trás enquanto descia as escadas, percorrendo cada degrau por mais tempo que devia sem ao menos levantar seu olhar. O ranger do objeto de madeira era quase tenebroso e a chuva acima de sua cabeça parecia menos barulhenta que sua cabeça. Saory desceu até o último nível e se sentou com as pernas esticadas, como sua irmã havia pedido que fizesse. Cada músculo seu doía e cada fibra de seu corpo sentia vergonha do que tinha acabado de fazer.
Ela havia escolhido pela morte de um homem. E, por mais que tivesse fugido ao máximo, havia acabado de ser inserida mais uma vez naquele mundo degenerado e sanguinolento. Chorou baixinho em luto pelo que tinha acabado de fazer, entendendo que aquela não era a última vez que seria inquisidora em um mundo totalmente virado. Muito menos que sofreria por ter que assistir o fim de uma vida.
"O que eu não deveria fazer eu vou lutar. Eu sei, sou emotivo. O que eu quero salvar eu vou tentar."
Fairly Local – Twenty One Pilots.
Fim de capítulo!
Oi, meus amores, como estão?
É o retorno dos capítulos enormes e dos dramas de Saory? Claro que sim hahaha. O que acharam dessa loucura dela? Morando com Raíssa? Evitando Dantas? Mamãe "trabalhando"? Quê? Percebam que estamos 1 mês antes do babado e a cada mês, as coisas pioram em Eason (spoiler básico hehe).
É isso por hoje, gente!
Não deixem de dar estrelinha caso tenham curtido e de comentar bastante suas suposições!
Nos vemos nos comentários e Domingo que vem.
Big beijo, Bia.
## perguntinha bônus:
2) Saory fez certo em ir morar com Raíssa?
Capítulo publicado em: 26/05/19.
Todos os direitos reservados.
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