2. Desencapador de fio
Eu conhecia aqueles fios alaranjados de algum lugar. E as sardas. Aliás, o cabelo ruivo tinha um quê de Archie, das HQs da Archie Comics. Ele não era como Archie em nenhum outro aspecto, muito menos como o neozelandês KJ Appa, ator que interpreta Archie na série Riverdale; o cabelo sim. De resto, seus traços não me lembravam ninguém, quase como se ele tivesse traços únicos. Talvez tivesse. E ele não era mais velho que eu. Não precisava perguntar a idade para saber. E o vidro escuro não era um verdadeiro obstáculo para mim.
— Safira. — Ele sorriu, a voz um pouco abafada por ainda existir um vidro entre nós. Foi então que minha desconfiança entrou em cena. Como aquele cara sabia meu nome se eu não lembrava de sua existência?
— Quem gostaria? — Repeti uma frase que ouvia minha mãe dizer ao telefone. Provavelmente pareci ainda mais idiota e elitizada, mas não dei a mínima naquele instante.
— Rafael. Estudamos juntos, apesar de você ser estonteante enquanto sou o cara no cantinho.
— Ah, claro. — Ri pelo nariz, abaixando um pouco o vidro do carro para conseguirmos nos ouvir melhor. — Se estudasse mesmo comigo saberia que eu sou a pessoa mais odiada daquele lugar, então cai fora.
— Duvido que seja mais odiada que eu. — Deu uma risada sem graça e olhou para o chão. Pela suas ações e falas, pude perceber de primeira que era tímido. E que provavelmente sofria bullying. Bem-vindo ao clube, querido. — Mas juro, fazemos aula junto.
— Como nunca te notei?
— As pessoas nunca me notam, apenas para me zoar.
— Sei o sentimento. — Apesar de começar a sentir simpatia pelo garoto, a urgência da situação e das minhas desconfianças me fez encará-lo, abaixando o vidro de vez, para dizer: — Por que diabos está me seguindo, Rafael? Não viu que minha casa está pegando fogo?
— Ah, é sua casa? — Quando fiz que sim com a cabeça, ele fez cara de cachorro que caiu da mudança. Mas que diabos?! — Meus pêsames.
— Não é como se ela tivesse morta, sabia? — Aliás, eu esperava muito que meus pais estivessem bem. — Mas não fuja da minha pergunta, garoto. O que está fazendo aqui e por que me seguiu?
— Você percebeu que eu estava te seguindo na escola? — Suas bochechas adquiriram um tom embaraçoso de vermelho.
— E na Sé também.
— Na Sé? Mas eu não fui pra Sé hoje.
— Claro, claro. Você me seguiu, apareceu aqui com minha casa em chamas, e ainda espera que acredite em qualquer coisa que disser? — Coloquei a mão no bolso novamente, pronta para machucá-lo com o canivete se fosse necessário.
— Eu não... Uau, isso é embaraçoso. — Pigarreou, então olhou do chão para mim. — Não fui para a Sé, e não estava te seguindo porque sou... hã... Algum tipo de maníaco.
— Você parece muito algum tipo de maníaco com seus braços magrelos e toda essa altura, Rafael. — Revirei os olhos, fazendo-o rir. Quase ri junto, mas estava tensa demais para me permitir fazer isso ou qualquer coisa semelhante. — Só que nada exclui o fato de que me seguiu, e o quanto isso é coisa de stalker.
— Ah, claro... Agora sou um stalker acima de tudo. — Resmungou, olhando para dentro do carro. — O que está fazendo aí? Sabe dirigir?
— Desculpa, mas não é da sua conta. — Apertei o canivete com ainda mais força. Atrás dos rostos mais meigos, se escondem os maiores psicopatas. É o que papai costuma dizer. — E para de fugir do assunto.
— Eu... Ah... Deus... Isso é bem difícil, sabia? — Quanto mais nervoso ele ficava, mais ansiosa eu ficava. — Estava te seguindo na escola porque... Ah... Não podemos deixar isso para outra hora?
— Não.
— Ok. Deus. — Respirou fundo, como se estivesse prestes a revelar seu maior segredo. — Queria te conhecer.
— Claro, resposta plausível. — Balancei a cabeça, pegando meu celular. — Vou ligar para a polícia. Talvez seus pais te ensinem a não seguir mulheres. Ou melhor, pessoas. Coisa mais bizarra!
— Não, não liga para a polícia! — Agora ele parecia desesperado. — Eu só... Meu Deus, por que eu tive que gostar justo de uma garota tão desconfiada? — Ele sussurrou a última parte, mas minha audição era preparada para coisas assim. Obrigada mãe!
— Ah... — Foi a minha vez de ficar sem graça, pois ninguém nunca gostara de mim antes. De nenhuma forma. — E o que está fazendo aqui? — Recobrei logo o controle, ignorando qualquer sensação inútil do meu corpo. Era um interrogatório, afinal de contas.
— Somos vizinhos. — Apontou para a casa verde ao lado da minha.
— Conveniente. — Resmunguei. — Cadê os malditos bombeiros? Desse jeito todas as casas vão pegar fogo.
— Estamos no Brasil. — E, apesar de ser errado, logo entendi a resposta dele.
— Certo... — Eu não podia perder meu foco. Meus instintos me diziam que algo estava extremamente errado. Impulsionei-me para frente no banco para poder ver a lua pelo vidro do carro. Havia algo. Havia... — Jura que não me seguiu na Sé?
— Juro pela vida da minha mãe!
Wow! Ok.
— Temos um problema então. — Empertiguei-me, meus sentidos ficando alertas. — Ou melhor, eu tenho.
— O que foi? Precisa de ajuda? Posso ajudar! — Ele estufou o peito, como se quisesse demonstrar que era mais forte do que parecia. Se fosse qualquer outra ocasião, eu teria rido. Mas não.
— Não, quero que você volte para a sua casa e não saia tão cedo. Acho que não é uma boa ser visto comigo.
— O quê? Mal nos conhecemos e você já tem vergonha de ser vista com o geek esquisitão? Quanta...
— Não, seu imbecil! Estou tentando salvar sua vida!
— Ah... O quê?
— Não importa, só faça o que estou dizendo!
— Não! — É, o garoto além de tudo estava fazendo birra. Mereço.
— Eu vou chamar sua mãe.
— Eu não sou uma criança!
— Certo, então pare de agir como uma! Meus pais sumiram, tem sangue na minha casa, as coisas estão reviradas... Acha mesmo que é uma situação normal? Você só vai se machucar se ficar aqui.
— Se esse é o caso, preciso te proteger.
— Para com o surto de heroísmo, garoto! — Até porque eu tinha mais chances com qualquer bandido do que ele. E é claro que eu nunca diria isso em voz alta. — Entra, depois você vê se estou bem.
— Você pode não estar, se eu te deixar sozinha.
— Sei me cuidar, obrigada.
— Não estou duvidando, eu só...
— Pode por favor parar com isso? Tenho assuntos mais urgentes em mente, como quem é meu outro perseguidor.
Como se eu estivesse em uma espécie de filme, e como se o universo tivesse esperado aquele momento para me responder, um estrondo ensurdecedor entrou em cena. As faces de Rafael ficaram brancas, dava para extrair o pavor dele. Eu, por outro lado, já havia sido preparada para aquilo. Abaixei-me no banco, apesar e todos os vidros serem à prova de bala. Em seguida, dei partida no carro e pensei muito em arrancar, para salvar minha vida e minhas coisas, mas algo me retesou. Não podia deixar aquele menino indefeso ali, sozinho. Ele não tinha culpa de nada, mesmo que eu ainda não soubesse direito o que estava acontecendo.
— Contorna o carro e entra, agora! — Gritei para Rafael, esperando que ele saísse de seu estado catatônico. Eu estava com sorte, apesar dos tiros continuarem atrás de mim. Olhando pelo retrovisor, pude ver meu sniper com péssima mira. Um homem alto, parecido com aqueles ratos de academia, e diversas tatuagens escuras pelo corpo. Não consegui ver muito à distância, mas uma coisa estava clara: ele estava determinado a me matar.
Só que eu estava determinada a não morrer até descobrir o que estava acontecendo.
— O que fazemos agora? — Rafael gritou assim que fechou a porta da pick-up ao meu lado. Sua voz quase foi abafada pelo estrondo externo. Imaginei que meus vizinhos estivessem em pânico, ligando para a polícia. Enquanto isso, uma garota de 17 anos ia dirigir um carro de fuga.
— Fique abaixado, vou nos tirar daqui! — E esperava que ele não fizesse birra de novo, porque não era o momento mais oportuno para ser infantil.
Parece que eu estava com uma gota de sorte naquela interminável cascáta de azar. Ele se abaixou. Comecei a andar pelas ruas do Tatuapé à toda velocidade, justamente nas ruas que eu sabia que não continham radares. Ouvi quando Rafael colocou o cinto e dei graças aos céus por ele ter um pouco de juízo. Eu já estava com o meu. Nós dois só relaxamos quando chegamos na Radial Leste e eu comecei a dirigir rumo ao centro de cidade, já com a velocidade permitida. Então suspirei, porque não havia muito mais que pudesse fazer. Estava uma pilha de nervos e minha mente estava uma confusão.
— O que vamos fazer agora, Safira?
Gostaria de ter uma resposta para isso.
— Não sei, mas vamos descobrir assim que eu conseguir decifrar essa caixinha. — Indiquei a caixinha em seu colo, contendo o que eu logo descobriria que era o arquivo da minha vida.
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