1. Lente de aumento
Minha cozinha estava em chamas, liberando uma fumaça escura que era levemente tóxica para mim. Constatei isso assim que cheguei em casa. E o pior: eu estava sozinha. Por algum motivo, meus pais não se encontravam em casa, mesmo que estivesse na hora da janta. Eu ficara até tarde na rua, tentando encontrar um livro de vestibular, o qual já estava esgotado. Era de se esperar que meus pais já tivessem saído do trabalho, mas não. Foi assim que eu soube que algo muito grave estava acontecendo.
Horas antes...
Meu cantinho no refeitório estava sendo observado. Não que isso fosse novidade, afinal uma mulata em uma escola particular repleta de brancos sempre chama atenção. E, infelizmente, não é bem-aceita. Eu não sou bem-aceita. A quantidade de insultos que desferiram contra mim apenas me fortaleceram... E talvez tenham me isolado. Não era como se eu tivesse amigos, mas não sentia falta. Estava bem na companhia de Brendan Murray, um cantor que eu conhecera em 2015, quando ainda era integrante da banda Hometown. Assistia a um compilado de vídeos dele no The X Factor, sem muitas preocupações. Ainda assim, sentia que havia alguém me observando, e não da forma que acontecia sempre. Essa sensação me causou arrepios e não consegui permanecer do jeito que estava. Levantei-me, agarrando a alça de minha mochila com receio. Estava na hora da saída, e eu já poderia ter ido embora, mas escolhi ficar sobre a sombra do pátio coberto. Coloquei a mão livre dentro do bolso de minha calça jeans, segurando meu canivete suíço com força. Nunca se sabe o que pode acontecer ao seu redor e eu sentia que ia precisar dele a qualquer momento.
Comecei a caminhar, saindo rapidamente da escola. Ainda estava sendo observada. Virei para trás, esperando encontrar meu perseguidor, mas não havia ninguém por perto. Voltei a seguir em frente, com meus sentidos aguçados. Aprendera com meu pai, um professor de educação física, que você não deve colocar fones de ouvido quando se sente ameaçado, pois seus sentidos precisam estar extremamente em alerta para reagir ao que for. Por sorte, sei vários golpes que garantem minha segurança, nem que seja por tempo suficiente para digitar 190. Suspirei de alívio ao ver que as ruas do meu Tatuapé mantinham o constante movimento. Melhor para se esconder, hein?
Minha jornada pelo fatídico livro esgotado começou. Fiquei horas e horas pegando metrô e ônibus para procurar em sebos de diversas áreas de São Paulo. Acabei o dia de mãos vazias e, por volta das cinco da tarde, quando estava encarando a catedral da Sé, resolvi voltar para casa. Era estranho, mas sentia que estava sendo observada, mesmo que me encontrasse agora no centro da cidade. Talvez fosse fruto de minha imaginação, mas resolvi não dar chance ao azar. Com as mãos nos bolsos, mochila na parte da frente do corpo, consegui me infiltrar no meio da multidão em pleno horário de pico. Se isso não despistasse meu possível perseguidor, nada o faria.
Espremida no vagão do metrô, regressei à estação Tatuapé e tratei de entrar em meu ônibus de sempre. Toda a jornada sem ouvir música, pois a paranoia momentânea não me permitia. Em 30 minutos estava diante de minha casa, abrindo o portão da frente e descendo a rampa para a garagem subterrânea. Na parte de trás da garagem temos uma piscina, e dois andares acima. O portão da garagem estava aberto, a pick-up do meu pai estava centralizada bem na frente de nossa parede de escalada. Sim, temos uma parede de escalada em casa. Pai professor de educação física, lembra? E norte-americano ainda por cima, casado com a brasileira mais inteligente que já vira, empresária do ramo automobilístico. E dessa união nasceu uma garotinha, eu. Com as habilidades físicas de meu pai e a persuasão de minha mãe; uma combinação perigosa, devo confessar, mas tudo se torna positivo quando seu pai te chama de "versão feminina do MacGyver". Até o canivete suíço tenho! Não que minha mãe precise saber...
De qualquer forma...
Sempre que chego em casa tenho o costume de entrar pela garagem, apenas para escalar a parede, sem qualquer tipo de proteção. E foi o que fiz naquele momento, com grande satisfação. Ao chegar no topo, saltei direto em uma das diversas pequenas pilhas de colchonetes, chegando em segurança ao chão. A prática leva à perfeição, não é mesmo? Sorri, orgulhosa de minha proeza, então segui para a porta de entrada... Bem, uma das portas. Não a de convidados, certamente. Subi a pequena escada que dava até a cozinha, e foi assim que percebi que a garagem não estava aberta por acaso.
Agora...
Minha cozinha estava em chamas.
Meu primeiro instinto foi chamar meus pais, mas não obtive resposta. Por que a garagem estaria aberta, com o carro de meu pai estacionado, se ele não se encontrava em casa? E por que mamãe ainda não tinha chegado? Tentei novamente, apenas para desencargo de consciência, mas era evidente que eu teria que lidar sozinha com aquele incêndio. Meu segundo instinto foi voltar para a garagem e ligar para 193, o Corpo de Bombeiros.
— Alô? Minha cozinha está pegando fogo!
— Mantenha a calma, por favor. Qual o endereço?
Minha mente trabalhou a todo vapor para dar as informações necessárias. E eu tive um ataque de ansiedade quando ouvi as instruções da moça do outro lado da linha: deixar a minha casa o mais rápido possível, antes que acabasse me machucando. Minha consciência, apesar de aceitar que era mais lógico seguir as instruções, não parava de me dar um alerta. Uma memória de infância me atingiu. Papai segurava uma caixa de metal, de tamanho médio.
— Eu vou colocar essa caixa na última gaveta da escrivaninha do escritório, entendeu Safira? — Seu sotaque era sempre perceptível, apesar de sua pronúncia do português ser quase perfeita. — E vou trancar, com essa chave. — Indicou uma chave de prata, a qual colocou sobre minha palma, impulsionando meus dedos para que se fechassem sobre ela. — Você será a única pessoa que terá acesso a isso, ok? Essa caixa contém informações sobre um projeto secreto, o projeto da minha vida, entende?
— Sim papai. — A Safira de 6 anos se sentia muito importante por obter tal preciosidade. Na época eu sequer estranhei a seguinte frase dele:
— Se um dia acontecer algo aqui em casa, e eu e a mamãe não estivermos aqui... — Ele respirou fundo. — Depois de ligar para 190, ou 192, ou 193, corra até o escritório e retire a caixa, guardando-a em um lugar seguro. As autoridades não podem ter acesso a isso, ou papai estará em apuros.
Foi justamente essa memória que me fez correr para fora da garagem e adentrar na casa novamente, dessa vez pela porta da sala de estar. O fogo ainda não chegara à sala, o que indicava que era um incêndio consideravelmente "recente". Entretanto, o cômodo estava uma verdadeira bagunça. O sofá estava de cabeça para baixo; a mesinha de centro estava com o vidro quebrado e repleto de gotas de sangue; uma faca ensanguentada estava jogada próxima à entrada da cozinha. Sinais de luta, provavelmente. Entre a sala e a cozinha pude ver um galão de gasolina, o provável causador de tamanho estrago em meu lugar favorito. Eu provavelmente teria que ligar para a polícia também. Mas, por ora, contentei-me em subir as escadas correndo para adentrar o escritório. O andar de cima estava intacto e não havia sinais de tentativa de arrombamento em meu quarto, o qual tranco todas as vezes que saio de casa. Velho hábito. Abri a porta do escritório e corri para a escrivaninha. Abri o menor bolso de minha mochila, retirando a fatídica chave de lá. Então, agachando-me, com o coração saltando feito louco, abri a gaveta e vislumbrei o brilho da caixa. Peguei-a e coloquei sobre as coxas — ela era um pouco menor do que a largura de minhas coxas juntas —, percebendo então uma placa com uma inscrição azul-marinho. Uma inscrição muito pequena, diga-se de passagem. Peguei meu canivete e procurei a lente de aumento, direcionando-a para a placa, logo conseguindo ler o que estava escrito. Sapphire. Meu nome em inglês. O que isso significava? Apesar de a curiosidade tentar me consumir, usei minha sensatez e decidi simplesmente guardar a caixa dentro de minha mochila, junto com um único caderno e um estojo.
Guardei o canivete suíço em meu bolso, tendo a sensação de que precisaria dele por bastante tempo.
Adentrei meu quarto como um furacão, já tendo em mente que poderia salvar apenas algumas coisas. Algo me dizia que não seria só aquele dia fora de casa. Sentei no chão, ao lado da minha cama, e peguei a mala que estava debaixo dela. Com o coração aos saltos, corri pelo quarto pegando três peças de roupa e garantindo que teria agasalho. Era como ir acampar com papai em seu país de origem. Ainda sendo consumida pelos instintos, peguei cobertor, minha necessaire, meu kit de primeiros socorros e a caixinha com todos os meus documentos. Fechando a mala, corri para pegar meu notebook e meu tablet, junto com seus carregadores, colocando-os dentro da minha mochila. Antes de fechá-la, certifiquei-me de que todo meu dinheiro estava na carteira, assim como meus cartões de débito e crédito. Talvez precisasse me virar sozinha por um tempo, principalmente em relação à comida.
O cheiro dos móveis queimando me trouxe de volta à realidade. Fechei a mochila, respirando fundo, e voltei correndo para a sala. A chave do carro do meu pai brilhou ao lado da porta, tentando-me. Não fui capaz e lutar contra isso. Agarrei-a e apressei-me para voltar à garagem, usando a chave para entrar e para ligar o carro. Apesar de ter apenas 17 anos, mamãe já me ensinara a dirigir e eu só estava aguardando ter a idade certa para adquirir minha carta. Dei ré com o carro, apertando o botão que abria o portão de entrada de casa, e fiz baliza, estacionando diante de minha casa de tamanho exagerado e desejando que os bombeiros chegassem rápido. Ainda não tinha forças para discar o número da polícia. A curiosidade e a sensação inútil de ainda ser vigiada não deixavam.
Certifiquei-me de que todas as portas do carro estavam trancadas antes de abrir minha mochila, pegando a caixa que mudaria a minha vida. Levantei a tampa, tentando manter a calma, e me deparei com algo inesperado. A caixa que fora objeto de especulação durante toda a minha infância continha as únicas coisas que eu nunca imaginara: um gravador portátil de fita cassete e várias fitas pequenas, com numerações e o meu nome. Levantei fita por fita, contando-as. Sete no total. Estava dividida entre ouvi-las naquele momento ou não, mas o barulho de passos do lado de fora me refreou. Fechei a caixa rapidamente e levantei meu rosto, encarando o lado de fora da janela. Encarando, finalmente, meu perseguidor.
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