IV.| Onde a lenda morre e renasce

- Phylax! Phylax!

Koleus gritava desolado perante o corpo inanimado do Nono Guardião. Queria abaná-lo, tentar acordá-lo, limpar-lhe as feridas, estancar-lhe o sangue. Mas a sua forma incorpórea não lhe permitia, para desespero do espetro. As lágrimas marejavam-lhe as pálpebras, a melancolia assombrava-lhe a alma.

De súbito, Phylax arqueou o tronco como um cadáver que desperta no cemitério. O fantasma quase deu um pulo, tal foi o susto.

- Eu estou bem, eu estou bem. - Repetiu o ser milenar.

- Mas... - Gaguejou Koleus, ainda incrédulo.

- Viste-me morrer? Não te preocupes. Eu nem sequer sei se estou vivo ou morto ou outra coisa qualquer... Quem é imortal, não morre, mas também não pode dizer que está vivo, porque se não morre... Bem, chega de divagações filosóficas!

Phylax disparou na direção da saída daquela festa. Durante o tempo em que estivera a conversar com a Morte, tentando convencê-la da necessidade do seu ressuscitar, o Arqueiro já devia ter alcançado outro ponto de celebrações para escolher as suas vítimas.

Um páteo enfeitado com abóboras, luzes cor-de-laranja e morcegos recortados em feltro atraiu a atenção do Guardião. Se pela criatura benevolente clamara, também devia ter sobressaltado aos olhos do ser maligno.

Phylax e Koleus adentraram no espaço festivo. O clima respirava animação, com os jovens submersos na música e no convívio.

- Outra vez... - Sussurrou repentinamente uma voz cavernosa aos ouvidos de Phylax.

O Nono Guardião virou-se imediatamente. Na figura que dele se aproximara matreira, reconheceu o seu inimigo.

- O arco... - Murmurou para o fantasma. - Não te preocupes que eu tenho o dom da materialização.

Koleus entendeu de imediato a mensagem. Era urgente agir.

Numa manobra sorrateira, e abusando do facto de o seu espírito ser apenas visível para outras almas desencarnadas ou para algum dos Nove Guardiões dos Mortos, o espetro subtraiu agilmente a arma ao Arqueiro. O assassino girou a cabeça surpreendido, ao ver o seu querido artefacto ser partido por mãos invisíveis.

Furioso, apanhou uma estatueta de jardim de louça e arremessou-a no sentido do ser milenar, que habilmente se desviou.

Phylax aproximou-se do homicida. Acercou a sua mão da zona do pescoço da criatura desalmada. Sentia uma energia sombria que emanava daquela região. Fechou as pálpebras e seguiu aquela força. Tateou levemente o adversário que permanecia pasmado com a sua figura.

As terminações táteis do Guardião detetaram um objeto metálico. Parecia uma cordinha fina, trançada pelas mãos de um artesão. Arrancou-a.

O monstro deu lugar a um jovem atarantado de cabelo moreno. Pestanejava freneticamente, como quem acorda de um longo e confuso sonho.

- Tiúro! - Gritou o fantasma, em que a surpresa encarnara em pessoa.

Uma massa obscura principiou a dissipar-se do corpo do rapaz. Degradava-o por dentro, consumia-lhe a mente. Sugava-lhe a vitalidade, levava-o através dos seus caminhos negros, que desembocavam em becos de desespero e desalento.

- Onde é que arranjaste isto? - Interrogou Phylax, exibindo o colar que terminava num cristal preto reluzente.

- Foi quando tinha... quando tinha treze anos... - Balbuciou Tiúro, que parecia travar uma batalha acessa contra aquela nuvem sombria. - Encontrei no chão... quando ia para casa... uns dias... uns dias antes... antes do Halloween.

O jovem tombou inanimado no chão. Da sua pele, sobressaíam veias escuras dilatadas. Os globos oculares, da tonalidade do sangue, explodiram numa macha encarnada, enquanto por todo o corpo se abriam pequenos poros dos quais jorrava um fluído de um vermelho tão escuro que se tornava quase negro.

- Tiúro! Tiúro! - Choramingava o espetro.

- Já não havia nada a fazer. Ele viveu tanto tempo com o artefacto que acabou por se fundir com a lenda. O fio escolheu-o para ser a personificação do mito, a sua própria vítima. Precisamos destruir o objeto para que não haja mais nenhum portador.

Phylax atirou discretamente o colar na direção da chama de uma fogueira onde se assavam acepipes. Assistiu à liquidificação do metal e da rocha. Aliviado, atravessou com o fantasma a barreira que o levaria de volta ao lar.

Porém, depois de a festa terminar e os jovens apagarem o fogo crepitante se extinguir, os materiais derretidos uniram as suas partículas, originando um artefacto ainda mais poderoso que escolheria o demónio vindouro, ainda mais vazio no seu âmago do que o Arqueiro.

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(Total: 4434 palavras)

Monte, 2024

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