II.| Onde descansam os finados

- Sabe, menino, no meu tempo vivíamos muito mais a vida. Ainda me lembro de, em nova, subir às árvores com os meus irmãos no Verão, para apanharmos as maçãs mais doces e as pêras mais saborosas. Éramos felizes naquele quintal. Os meus pais levavam uma vida simples, mas nós, enquanto crianças, tínhamos tudo para sermos felizes. O ar puro do campo, o aroma a malvas, o cantar das cigarras nas noites quentes e o chilrear dos pássaros ao alvorecer...

Uma senhora idosa quase centenária, com as rugas envelhecidas a cobrir-lhe o rosto, segurava a mão de Phylax. Aquela conversa já durava há horas e não tinha término à vista.

Apesar do exagero em pormenores e da nostalgia infinita, o Nono Guardião dos Mortos apreciava ouvir os defuntos mais velhos e confortá-los na sua solidão que já nos seus últimos dias de vido principiava. A idosa sentia-se bem em narrar as aventuras e desventuras da sua infância e Phylax contentava-se em escutar a descrição da vida num mundo que nunca visitara e das experiências que nunca tivera oportunidade de viver.

No princípio da existência, foram criados nove guardiões com o propósito de manter a coesão da dimensão dos defuntos, consolar os seus demónios interiores e alentá-los a livrar-se do que ainda os prendia ao mundo dos viventes. Muitas das vezes, as suas habilidades terapêuticas eram postas à prova, tendo de dar aos falecidos aquele abraço familiar e aquela palavra que sossegam a alma.

Cada guardião era responsável por uma porção de território no mundo dos mortos. Quando os espíritos humanos se libertavam das carnes etéreas e adentravam a etapa seguinte, eram distribuídos aleatoriamente (ainda que Phylax desconfiasse que essa dita aleatoriedade fosse questionável) por um dos nove reinos dos Guardiões.

Phylax era conhecido por ser o mais jovem e o mais intrépido dos Nove Guardiões. Tempestivo e sarcástico, o ser imortal também sabia ser carinhoso e terno.

- Ainda me lembro do cheiro a compota na cozinha... - Continuava a idosa, semicerrando os olhos. - Sabia tão bem com pão quentinho...

- Ei, vocês aí, seus desordeiros sem educação nenhuma! Baixem lá o volume! - Lançou uma voz masculina piursa. - Nem depois de morto se pode ter paz nem sossego...

O discurso da velhinha foi instantaneamente cortado pela algazarra. Ao que parecia, alguém se lembrara de ligar uma coluna que exalava uma melodia demoníaca em volume máximo, o que causara evidente descontentamento num homem de meia idade.

- E você, quem pensa que é? - Retorquiu um dos jovens que se preparava para dar uma festa. - Por acaso é meu pai para mandar em mim?

- Respeitinho é muito bonito, fedelho!

- Do que é que você me chamou? - O rapaz franziu a testa, com a ira a subir-lhe à cabeça.

- Do que tu precisavas sei eu bem.

Phylax torceu o nariz. O caso estava mal-parado. Regra número vinte e sete do Manual do Guardião dos Mortos: evitar sempre brigas entre os defuntos. Em primeiro lugar, os finados viajam até à dimensão dos falecidos para obter o merecido descanso eterno, e não para andar em desvarios. Em segundo, fantasmas, salvo exceções muito específicas, são intangíveis, pelo que era uma péssima ideia ter dois espíritos a atravessarem-se mutuamente num confronto vão. Aliás, tal situação poderia levar a um desequilíbrio de almas tal que tinha como consequência... Bem, era melhor nem pensar na hipótese.

- Vamos acalmar que eu não instalei nenhum ringue de boxe aqui. - Pediu Phylax, intrometendo-se entre o grupo de jovens e o homem.

- Olha, agora é um puto armado em chico-esperto a pensar que também manda em mim.

- Sou mais velho do que a própria Humanidade. - Ripostou o Guardião.

- A sério? É que não me parece.

Phylax revirou os olhos anirídicos. Felizmente, para alívio do Guardião, os jovens tiveram o bom senso de rodopiar os calcanhares e dar meia volta, levando o aparelho produtor de ruído consigo.

No reino dos defuntos, era observável uma clara predominância da população mais idosa. As carnes vivas não possuíam o dom da eternidade, pelo que enfraqueciam ao sabor do tempo impiedoso até num dado evento a alma contida nas suas entranhas se libertar.

Contava-se ainda na sociedade falecida uns quantos seres de meia idade que o coração ou as células desgovernadas com intenções de fundar um império vasto e serem soberanas no organismo com a sua tática de multiplicação egoísta haviam terminado com as suas passadas no mundo dos vivos. Também havia aqueles pobres coitados que a posse corpórea haviam perdido em acidentes e catástrofes infelizes. Ainda que a melancolia e as lágrimas recheassem tais acontecimentos, o inesperado não era uma das suas características. Surpreendente era a fila de criaturas descarnadas jovens nos Portões dos Mortos na magnífica noite de Halloween a que se assistia há cerca de uma década. A cada ano, o número de fantasmas adolescentes aumentava, e havia uma tendência no envelhecimento das vítimas, sendo que os finados dos últimos anos já roçavam a juventude plena. Misteriosamente, essa classe de defuntos partilhava muitos pormenores nas suas trajetórias de fatalidade, até demais. Todas eles haviam sido mortos com pelo menos uma seta atravessada no corpo. Todos eles estavam numa celebração qualquer relacionada com o Halloween. E todos eles descreviam o seu enigmático assassino da mesma forma: rosto tapado com uma máscara, indumentária de um cinzento profundo mortífero com enfeites dourados que simbolizavam tudo menos bonança e, claro, o arco e a aljava, armas dos crimes.

Aquelas coincidências espicaçavam momentaneamente a curiosidade de Phylax, mas investigar um homicida em série não fazia parte das suas funções de Guardião dos Mortos e muito menos era problema seu. Já tinha muito com que se preocupar, principalmente nos últimos tempos. A crescente chegada de miúdos e graúdos que, de um dia para o outro, se viam livres, sem escola, sem pais e sem responsabilidades, e, ainda por cima, em muitos casos com amigos e conhecidos a acompanhar a jornada de defunto, trazia uma mudança radical no cenário da dimensão dos espíritos. A indisciplina e os conflitos geracionais haviam abduzido a calmaria e a paz que outrora reinara no território de Phylax. Para piorar, a tão bendita aleatoriedade na distribuição dos falecidos suspeitamente ditava que os jovens finados tivessem descanso nas terras do mais irreverente dos Guardiões.

A barulheira e a euforia tinham o seu pico no dia em que a história da morte daqueles adolescentes tivera o seu início: o Halloween. Ainda que mortos, aqueles jovens não prescindiam de celebrar o Dia das Bruxas. Por um lado, ainda bem. Significava que não tinham ficado traumatizados com as afiadas e implacáveis setas a trespassar-lhes os órgãos internos. Porém, Phylax era um grande apologista do silêncio e da grandiosidade da sua autoridade nos domínios que lhe pertenciam. E aquelas festas desenfreadas em que o seu comando ia por água abaixo deixavam-no pela ponta dos cabelos, já para não falar no frenesim que era impedir batatadas entre os defuntos, cuja probabilidade ascendia durante aquelas celebrações.

Phylax não tinha pena das almas tão jovens que perdiam a vida para um assassino de arco e flecha... Só queria evitar que a desordem escalasse a níveis irreversíveis. Nos seus planos, escapulir-se-ia de uma festa de Halloween dos mortos para se infiltrar nas festividades dos vivos. Daria uma descasca nesse tal Arqueiro do Vazio e a paz voltaria a reinar nas suas terras.

Do seu estratagema, fazia parte um fantasma muito peculiar, peça fundamental do jogo de tabuleiro que o Guardião se proponha a jogar com o Arqueiro. Primeira vítima da lenda urbana mortífera, Koleus nutria tanto rancor pelo indivíduo de identidade desconhecida como Phylax.

- Está na hora. - Anunciou o Nono Guardião dos Mortos.

O Halloween aclamava a sua chegada naquele preciso instante. A barreira que separava os mundos dos viventes e dos finados tornava-se cada vez mais ténue. O que era outrora uma barreira negra, dava lugar a um muro translúcido e iridescente. Phylax tocou-o com a ponta dos dedos de uma das mãos, sentindo a sua energia. O seu coração palpitava acelerado. Inspirou fundo. Com a outra mão, confortou Koleus, num gesto de confiança. E atravessaram o portal.

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