Capítulo 58: Sorria para mim
Ainda estava escuro quando inúmeras e violentas batidas foram lançadas à porta de madeira, fazendo com que a estrutura de apoio quase se soltasse, conforme as dobradiças se remexiam bruscamente.
—Já estou indo, já estou indo! — berrou Chrisson do lado de dentro.
O chefe da vila abriu a porta com um olhar assustador no rosto, mas esse mesmo olhar se transformou em terror puro quando encarou quem estava do lado de fora. O homem abriu a boca para falar, mas antes mesmo que pudesse dizer algo, foi empurrado para dentro da própria casa. Ele tropeçou numa protuberância no chão de madeira e quase foi de encontro com o solo, mas uma mão o segurou antes que ele pudesse cair por completo.
—Que medo todo é esse, Chrisson? — falou um homem de armadura que segurava o braço de Chrisson — Você costumava ser mais receptivo com os velhos amigos. — disse um soldado minandrense sorrindo enquanto pisava para dentro da casa.
Os olhos de Chrisson não tinham nada a não ser um medo profundo, gélido. O chefe da vila olhou para o soldado um pouco mais alto que ele com terror estampado na cara, como se estivesse vendo a morte de perto.
—Não se preocupe. Não vim aqui para cobrar taxas, entendo que ainda não é o dia do pagamento. — falou ele, meneando a cabeça em outra direção da casa. — Porém, acredito que existam pessoas nessa vila... pessoas que procuro. — sua voz era suave, polida e quase alegre. Seu tom adocicado era quase incomparável, ele parecia um exímio homem de negócios.
—Que você procura? — repetiu Chrisson assustado, a voz desafinada como a de um garoto de doze anos que acaba de ser assediado por uma prostituta.
—Sim, isso mesmo! — falou o soldado, com um sorriso amistoso no rosto. — Não devem ter chegado há muito tempo. Eu e meus rapazes — ao dizer isso, apontou para alguns homens de aparência horrenda logo atrás de si. — temos alguns assuntos pendentes com esse pessoal. Sabe, coisas do dia a dia... — o homem então passou a mão sobre o nariz, estava quebrado, amassado, torcido para o lado como se ele tivesse recebido uma portada na cara. Ele esfregou o nariz com os pulsos por um momento. — Indo direto ao ponto, velho amigo. Onde eles estão?
Chrisson ficou confuso por um momento, pigarreou enquanto recuava, e então voltou o olhar ao homem bem a sua frente.
—Não vi ninguém diferente entrar na vila ultimamente, você deve estar enganado.
—Ora Chrisson, o que é isso? — o homem girou a cabeça no pescoço, como se premeditasse aquela refutação tola, que de nada adiantaria. Deve ser da natureza humana. — Não minta para seu amigo, eu sei que eles estão aqui! Fui informado disso. Você realmente quer dificultar as coisas? Garanto que não será problema para mim, para outros no entanto... — o homem olhou para o vão de uma porta mais ao fundo, pequenos olhos cintilavam na escuridão do cômodo adjacente, ele sorriu na direção da porta, enquanto os olhos saiam, como se fossem puxados por algo.
Chrisson pareceu entender o recado, ficou pálido até os cabelos.
—Meus filhos não... eles não por favor, deixe-os em paz! — guinchou.
—Mas eu não disse nada, disse? Você tem que para de enxergar coisas onde não tem. Tudo que você tem que fazer é parar de mentir para si mesmo. Veja só, imagine se todas as pessoas da vila descobrirem que algo horrível vai acontecer com elas só porque você se negou a dizer algo simples. Imagine só, todos os seus colegas chateados com você, porque você podia impedir todos os terrores que acontecerão com suas esposas e crianças caso resolvesse abrir a boca. É uma decisão simples, não? — o soldado se virou, perguntando para os colegas, que balançaram a cabeça em aprovação. — O que acha? Vai fazer o que mando, ou nós teremos que agir à força? Sabe, meus homens tem estado bem agitados ultimamente... mal consigo imaginar o que fariam com as pobres pessoas de uma certa vilazinha tão agradável... — o sorriso em seu rosto ganhou força, conforme ele ia na direção do chefe da vila. Ele aproximou a cabeça da orelha esquerda de Chrisson. — E então, o que me diz, caro amigo?
O suor que escorria na testa do chefe da vila poderia facilmente formar uma poça no chão, mas apenas encharcava completamente sua camisa branca.
—Eu vou fazer, então por favor... deixe os moradores em paz! — suplicou ele.
—Claro, acha que sou algum monstro? Quem em sã consciência faria algo assim? — ele riu e colocou a mão sobre o ombro de Chrisson. — Tudo se torna mais fácil quando é resolvido no diálogo, não?
*********************************
A manhã seguinte chegou como uma martelada na cabeça da maioria dos integrantes do grupo. Dormir vinha sendo uma tarefa complicada até então, já que o conforto nunca é algo garantido nas viagens entre cidades. Além disso, Hylia monopolizou uma das camas apenas para si, fazendo que os outros membros fossem obrigados a dormir em cadeiras ou até sobre o chão, Lauren e Kette usaram outra cama. Mas nem mesmo a criança teve um descanso apropriado, não com Lauren o abraçando a noite inteira como se fosse um urso de pelúcia gigante.
—Bom dia para quem parece ter caído de um penhasco. — murmurou Holsung rindo enquanto se espreguiçava.
Kiere, que havia dormido encostada em uma parede perto à porta de saída virou os olhos para cima tentando encara-lo, não conseguiu. Aproveitou que fora acordada e se levantou. O assassino abriu a porta da casa, e a luz transbordou para dentro da casa, fazendo a meio humana desviar o olhar dolorido para outra direção. O mascarado saiu para fora, esperando receber a brisa gélida da manhã no rosto, como uma benção, mas tudo que encontrou do lado de fora era o olhar assustador de Zelgle, que o encarava como uma estatua que já estava lá a alguns dias. O assassino o fitou nos olhos sem entender, e só então disse:
—Não vai me dizer que ficou ai parado a noite toda?
—Cheguei agora. Vim ver se já estavam acordados. — respondeu o gigante passando por ele.
—Então onde exatamente você dormiu, se só chegou agora? — perguntou o assassino confuso, Zelgle deu de ombros sem se importar. Como sempre.
O gigante deu um passo para dentro da casa e assim que o fez, a porta no fundo da sala se abriu num estrondo, como se um fugitivo do inferno fosse passar por ela. Todos olharam na direção do estardalhaço. Tolfret, que dormia jogado em cima de uma cadeira, roncando e com o pescoço caído para trás deu um salto, como se tivesse sido alfinetado na bunda.
—Eu espero — começou Hylia, parada na frente da porta. — que você finalmente tenha decidido entregar a porra do cristal. — rosnou a princesa. Seus olhos estavam envoltos em grandes olheiras, o cabelo loiro desgrenhado, as costas curvadas.
—Ora, parece que temos mais alguém que não dormiu muito bem logo aqui. — disse Holsung com aquele sorriso maligno que poderia ser notado até se ele usasse duas máscaras.
—Se você quer ser levada a sério, você deveria pelo menos se preocupar com a própria roupa, princesa. — falou Zelgle se referindo a camisola bizarramente larga que Hylia usava.
—Não mude de assunto. — falou disfarçando enquanto arrumava uma das alças da veste que havia caído. — Eu não vou aguentar mais um minuto sequer desse seu papinho. Não vou esperar mais, nós partiremos hoje. Você queira entregar o maldito cristal ou não.
Zelgle nem se importou em responder. Não ligava de verdade para o que iria acontecer, e responder as queixas de Hylia era tão produtivo quanto tentar conversar com um cão, a única diferença para Zelgle é que os latidos do animal seriam mais bonitos.
—Não se preocupe. Você irão partir hoje. — respondeu o gigante sem qualquer cerimônia. — E claro, pode levar isso com você. — Zelgle então tirou O Coração da Tormenta do bolso. A luz azul reluziu nos olhos de todos, que em contra partida brilhavam num amontoado de emoções.
Hylia pareceu espantada quanto aquela atitude, ele havia se recusado a entregar o cristal durante todo aquele tempo, mas agora simplesmente estava disposto a dá-lo sem qualquer resistência? Afinal de contas, o que diabos ele estava pensando? Toda essa trama só reforçava a ideia inicial de Hylia de que Zelgle era apenas mais um lunático preocupado apenas consigo mesmo, mal sabia ela que nem a própria integridade importava ao gigante.
—Estejam prontos para partir antes do pôr do sol. — finalizou, dando as costas a todos logo após.
—Você não vem? — indagou Kiere.
—Não. Não tenho motivos para tal. Mas você deveria ir com eles, me lembro de você ter dito sobre querer ver mais o mundo ou algo assim. — falou ele sem sequer olhar para trás. — Tenham uma boa viagem.
Hylia olhou para as costas de Zelgle enquanto ele saia. Nem tentou disfarçar sua felicidade ao saber que ele não participaria da jornada. Um enorme sorriso estava estampado em sua face enquanto ela pensava nisso. Tolfret pareceu aliviado, pensar em não ter mais Zelgle por perto o tranquilizava, mesmo que o sujeito não fosse um incomodo, ele era assustadoramente enigmático, e na lógica do cavaleiro, aquilo que pode causar medo mas não pode ser vencido ou compreendido, é automaticamente algo a ser evitado.
\0/
Zelgle foi até a casa de Wilni, a garota permanecia dormindo tranquilamente. Zelgle havia a levado até sua cama na noite passada, após ela ter dormido. Não sabia ao certo o que estava fazendo, mantinha cuidados pela garota, mas não se importava verdadeiramente. Era bizarro. Saiu da casa ao verificar que a garota permanecia dormindo, e logo do lado de fora, viu um rosto de que se lembrava pouco. Era Chrisson. O chefe da vila o encarava com o cenho franzido, e o machado de cortar lenha em mãos. Logo atrás dele, vinham mais três homens tão altos e robustos quanto ele. Todos fitaram Zelgle com olhares raivosos, olhares de quem não estava nem um pouco aberto a discussões.
—Quero você e os seus amigos fora da vila. — berrou ele. — Me ouviu?
Zelgle apenas permaneceu olhando para ele com os olhos frios. Se imobilizou durante vários segundos, poderia até mesmo ser confundido com uma estátua caso ninguém soubesse que ele era vivo.
—E posso saber o motivo? Ou você espera que eu simplesmente obedeça como um cão?
—Não dou motivos. Sou o chefe aqui, eu dou sentenças. E quero você, sua aberração, e seus amigos fora.
Ao ouvir isso, Zelgle deu um passo a frente, colocando o pé sobre o último degrau que levava a casa de Wilni. Os homens entraram em posturas defensivas, todos erguendo as ferramentas de trabalho o mais alto que puderam. Até mesmo Chrisson segurou o machado com as duas mãos.
—Não ligo pra quem você é, mas acho minimamente justo você dar algum motivo antes de expulsar alguém. — falou Zelgle, sua voz fria instaurou terror nos trabalhadores, que tiveram uma súbita vontade de correr sem olhar para trás. — Ainda mais quando esse alguém é um antigo morador daqui.
As pessoas ao redor começaram a observar o que estava acontecendo, crianças, mulheres e idosos olhavam assustados a cena. Esperavam que aquilo pudesse acabar se tornando violento, mas embora essa possibilidade fosse real, ninguém foi embora, apenas continuaram espiando. Zelgle deu mais alguns passos na direção dos quatro homens, mas foi então que uma pedra voou e acertou sua cabeça. O gigante cambaleou quando o pedregulho bateu em sua testa, virou a cabeça para o lado. Uma faixa de sangue rapidamente cobriu metade do seu rosto, descendo do ferimento que fora aberto.
—Não temos que dar nenhuma justificativa. Você não é bem vindo aqui! — rugiu um dos homens, o mesmo que havia jogado a pedra.
Zelgle voltou o olhar para ele, e o fez tremer. Seus olhos se crivaram no homem como duas luas roxas, analisando qual seria seu destino, como ele iria sofrer e como terminaria. Foi então que uma luz púrpura surgiu na lateral da cabeça de Zelgle. As pessoas do vilarejo ficaram aterrorizadas com a visão, nunca tinham visto algo como aquilo. Chrissom engoliu seco, seus olhos estavam arregalados de tamanha surpresa.
—Eu sabia! Você não é humano! — trovejou. — Um monstro, é o que você! Um monstro! — ele jogou um dos braços para o lado — Só vai trazer desgraça se ficar entre nós!
Zelgle não respondeu, apenas encarou os homens que tremiam como cães molhados.
—Vá embora, por favor... — suplicou Chrisson. — Você vai destruir nossas vidas se ficar.
O gigante continuou sem responder, apenas fitando o homem friamente enquanto ele o olhava amedrontado.
— Ou...
—Ou?
—Wilni é uma boa garota, não? — disse Chrisson, forçando um sorriso maléfico ao falar. Mas não gostou nem um pouco de dizer aquilo, odiaria ter que fazer algo contra Wilni, que era uma ótima garota, mas se apenas uma vida pudesse evitar que a vila toda fosse destruída, como chefe, Chrisson não tinha escolha. — Seria uma pena se a vida dela fosse prejudicada, tudo porque você ignorou minhas ordens!
Zelgle não respondeu, mas não permaneceu parado como antes. Avançou na direção dos homens, com passos largos e assustadores. Chrisson caiu de bunda, a face retorcida em medo. Os outros três trabalhadores se afastaram, todos tão assustados quanto o chefe da vila. As pessoas gritavam, e algumas mulheres e crianças choravam, com medo. Zelgle pisou no peito do homem, que tentou se desvencilhar fazendo força com as duas mãos no tornozelo de Zelgle, o gigante nem se moveu.
—Faça algo contra ela, e você vai descobrir o que é um monstro. — sussurrou Zelgle para Chrisson, o homem desistiu de tentar escapar. Ele era como um esquilo sendo prensado por uma montanha. A menos que Zelgle permitisse, ele nunca escaparia. — Você vai se lembrar bem do meu conselho, isso se você realmente se importar com as pessoas dessa vila.
Zelgle tirou o pé de cima do homem, que ficou paralisado de tanto pavor. As pessoas assistiam a cena horrorizados. Eles corriam e guinchavam quando Zelgle se aproximava.
—Deixem-me passar! Saiam do caminho! — bradava Tolfret no meio da multidão, tentando atravessar a turba e ver o que estava acontecendo. Assim que conseguiu, Zelgle venho em sua direção, tão assustador quanto um demônio recém retirado das profundezas do inferno.
—Vamos embora. — falou o gigante para o cavaleiro. Os outros membros do grupo estavam parados mais adiantes, tão surpresos que sequer comentaram qualquer coisa.
Assim que o grupo se distanciou o bastante, as pessoas começaram a arremessar pedras e outras coisas, mirando principalmente Zelgle. Eles xingavam furiosamente enquanto tacavam os objetos. Kiere olhou para trás praguejando, Tolfret fez o mesmo, prestes a partir para cima após ter sido acertado na cabeça por um legume estranho. Lauren o impediu. O grupo saiu da vila sem falar mais nada, todos olhando para Zelgle de relance, com uma certa pena no olhar, mas não simpatia.
\0/
Wilni bateu três vezes na porta da casa de Zelgle. Todos estavam agindo estranho, mas não sabia o motivo. Por fim, percebeu que a casa de Zelgle estava aberta. Adentrou o local hesitante. Não havia ninguém lá, vasculhou todos os cantos com os olhos. Notou no entanto, no fim da casa, uma sombra. Mais escura do que todas as demais que se acomodavam na escuridão da casa. Ela olhou bem, e foi então que percebeu que um movimento ao seu lado, virou a cabeça rapidamente, mas foi tudo que teve tempo de fazer, logo em seguida, quem quer que fosse, já tinha agarrado seus braços e envolto uma das mãos sobre sua boca, impedindo que gritasse por ajuda. Ela tentou descobrir quem era, aterrorizada, os olhos arregalados de terror, a face retorcida, espremida pelo aperto constritor. Sentiu uma lágrima escorrer pela face, gelada como uma gota de orvalho no inverno.
—Que surpresa agradável... — falou uma voz ao fundo, de onde WIlni tinha notado aquela sombra anteriormente. — Deve estar se perguntando onde foram todos, não se preocupe. Eles foram apenas dar um passeio. Então, enquanto isso... por que não brincamos um pouco? — disse um homem com armadura se aproximando. Um enorme sorriso se expandia cada vez mais em seu rosto.
A garota queria gritar por socorro, mas era impossível, a mão que cobria sua boca tinha uma força descomunal. Ela então fitou com atenção a sombra que vinha em sua direção. O sorriso no rosto do sujeito era de orelha a orelha. Wilni não era inocente o suficiente para desconfiar do que iria acontecer com ela caso ninguém a ajudasse, mas se perguntava o porque disso estar acontecendo consigo. Os olhos dela e do soldado se encontraram, seus olhos tinham um desespero profundo. O homem retribuiu com um olhar penoso, quase verdadeiro.
—Não me olhe assim. Não gosto de fazer essas coisas, mas aquele seu amigo... — a citação da palavra "amigo" fez com que Wilni entendesse o que o homem queria dizer. Zelgle. Ele era militar antes, algo aconteceu entre eles? — Ele precisa entender o lugar dele. Me sinto mal em ter que usar você para isso, mas fazer o quê? — ele sorriu para WIlni, um sorriso amigável, doce, mas não menos vil. — Tinha uma coisa que meu pai me dizia quando eu era mais jovem, algo que eu odiava ouvir, mas com o passar do tempo, eu entendi o significado. Sorrir é a chave para tudo. E é verdade, temos que sorrir nas piores horas, por isso, por que você não sorri para mim?
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top