Capítulo 55: Bem-vindo a loucura

Lauren se ajoelhou ao lado do garoto com o rosto divido em uma leve feição de preocupação e uma grande sugestão de fascínio. Colocou a mão sobre o rosto da criança, que a fitou sem parecer nem um pouco impressionada ou com medo. Vendo-o mais de perto, Lauren percebia que ele era um pouco mais velho do que aparentava, deveria ter entre os treze anos de idade.

—Se machucou em algum lugar? Tem certeza de que está bem? — perguntou a ruiva com uma voz completamente diferente da habitual, numa sugestão de preocupação mais do que genuína.

—Sim... — respondeu o garoto numa voz quase feminina, fazendo com que Lauren corasse de leve.

 A ruiva passou a mão sobre o rosto do garoto, num ato comparável ao carinho materno, entretanto, com uma motivação muito mais sórdida por trás.

—Lauren... — falou Hylia se aproximando, com um certo desgosto exposto no rosto. 

Lauren se virou para encara-la, deixando de lado a criança, que parecia ainda mais desconfortável do que Hylia com a atitude de Lauren.

"Humana esquisita."

—Onde estão seus pais? — perguntou a ruiva com as costas curvadas na direção da criança. 

O garoto se inclinou um pouco para encarar a mulher. 

—Eles morreram. — respondeu. Não poderia ser mais frio se estivesse falando sobre sua comida favorita. 

Lauren o encarou horrorizada. Kiere demonstrou alguma surpresa, mas não pelo fato constatado pelo garoto, mas sim pela reação extremamente exagerada de espanto que Lauren esboçou.

"Ela não ficou assim nem quando o irmão dela quase morreu. Duas vezes."

A ruiva então virou os olhos para a princesa, que a fitou de volta. A troca de olhares durou alguns segundos, até que Hylia entendeu o que ela queria dizer com aquele olhar.

—Não. Definitivamente não. — rugiu Hylia, sem que Lauren dissesse uma única palavra até então. 

A ruiva voltou seu olhar para o garoto, que a encarava frivolamente. Seus dois grandes olhos negros reluziam nos de Lauren, e a ela não se preocupou nem em esconder o rubor em seu rosto.

—Por acaso você tem onde ficar? — perguntou a ele com um sorriso no rosto.

—Não... eu...

Ele ia falar alguma coisa, mas antes que pudesse, a ruiva o puxou contra seu corpo, envolvendo-o em um abraço gentil e solene.

"Humana esquisita. Muito esquisita."

—Aposto que você estava sozinho e com medo, não é? — falou Lauren. A criança olhou para cima sem entender. — Mas se você não se importar, pode vir com a gente... eu cuido de você.

—Lauren! — trovejou Hylia, com a testa franzida. — Nós estamos indo para um lugar perigoso! Não podemos levar uma criança!

Lauren virou os olhos para Hylia com um claro descontentamento no olhar. Percebendo o aborrecimento das duas mulheres, o garoto encarou a ruiva, que continuava com ambos os braços envoltos em seu pescoço.

—Para onde vocês estão indo, senhorita? — indagou o garoto, com olhos penosos na direção de Lauren. 

 —Para o Norte. — respondeu, fazendo com que os olhos do garoto se estreitassem.

"Ora, que estranha coincidência..."

—Lauren! Você não pode sair falando assim! — gritou a princesa embasbacada com o descuido da subordinada.

—Ele é só uma criança. O que ele poderia fazer, Hylia?

A princesa revirou os olhos com essa constatação. Quando Lauren estava convicta de algo, raramente era possível fazê-la desistir. Mas aquilo já estava além de todos os limites. Eles iam em uma jornada, não podiam se dar ao luxo de levar uma criança para um lugar que era, além de mortal, longe e com clima severo. Teria que fazê-la desistir, nem que fosse a força. 

—Lauren, nós não vamos levá-lo. — determinou Hylia, num tom que não admitia objeções, mas não alcançando esse objetivo. Lauren a encarou com os olhos brilhando em vermelho, ferozmente. A princesa se imobilizou de imediato, sentindo a fúria da subordinada. — Lauren, você sabe que não podemos... nem temos o dinheiro pra isso! — argumentou Hylia por fim.

Lauren a encarou com um enorme descontentamento no olhar, mas não disse nada, embora não gostasse de acatar ordens, era sua subordinada, e amiga, no fim das contas. E ela estava certa, acima de tudo. A ruiva olhou para baixo, fitando o garoto nos olhos, com uma imensa tristeza no olhar. Hylia se sentiu triste por ter que dizer aquilo, mas imensamente aliviada por Lauren entender a importância do que estavam fazendo. E também, se não soubesse dizer um "não" para ela, a mulher iria trazer todas as crianças da cidade consigo.

—Me levem com vocês! — exclamou o garoto, com a mesma voz quase feminina. Sua súplica amoleceu completamente o coração de Lauren, os lábios da ruiva se afastaram e seus olhos perderam o brilho por um momento, com uma enorme tristeza sendo esboçada no rosto — Se o problema é dinheiro, podem ficar com isso! — falou, impedindo que as lágrimas se formando no rosto de Lauren, caíssem. Ele entregou um saco de couro puído e velho para a ruiva, que ao abrir o item e verificar o que havia dentro, quase engasgou.

—Como você tem tanto dinheiro? — inquiriu Lauren surpresa. Sua boca estava escancarada e os olhos arregalados.

"Não é muito difícil conseguir essa quantia pilhando corpos..."

—Eu... eu... roubei. — respondeu o garoto, fazendo as três mulheres terem reações completamente diferentes. Hylia demonstrou um certo desprezo, Lauren uma certa preocupação e Kiere deu um risinho, como se já soubesse a resposta antes de ser dita.

—Olha, não vou julgá-lo por isso, mas você tem que entender que é errado, tudo bem? — disse Lauren, se ajoelhando mais uma vez para encara-lo. A expressão do garoto não mudou em um único momento sequer. — Se você vir conosco, não poderá mais fazer isso e também, terá que me obedecer. Entendeu?

O garoto fez que "sim" com a cabeça. Lauren passou a mão sobre sua cabeça, num gesto imensamente carinhoso, porém, não obteve nem aprovação nem desaprovação do garoto, que só continuou a encarando sem expressão. No momento seguinte, os olhos do garoto brilharam de maneira mortal, como uma lâmina recém afiada. Lauren olhou para trás e viu o mesmo homem que havia nocauteado antes se levantar. Ele estava com os dois braços erguidos, as mãos seguravam o cabo de uma espada. A ruiva fechou os olhos por reflexo, esperando o ataque vir, mas antes que o homem pudesse matá-la, Kiere apareceu à sua frente, segurou seu pulso e cravou uma de suas adagas no pescoço do indivíduo, que escorregou pela parede com os olhos fixos em Kiere, a meio humana tinha uma expressão severa de raiva no rosto, a boca fechada numa linha. Retraiu a adaga do pescoço do sujeito, que saiu pingando sangue pelo chão. Fez um movimento com o pulso, e o sangue cobrindo a lâmina espirrou no chão, e só então ela guardou a arma. Escutou um ruído estranho um pouco mais a diante, como se algo metálico se arrastasse entre as sombras. Ela então voltou os olhos à ruiva e ao garoto. Por um momento, ela jurou ter sentido algo estranho daquela criança, uma sensação esquisita, uma sensação parecida com aquela que sentiu quando Ivan conjurou aquela espada de gelo, mas era algo pior, não era frio, era assustadoramente maligno, como se estivesse prestes a ser decapitada. E soubesse disso. Cruzou olhares com o garoto, os olhos negros da criança não deixavam transparecer qualquer emoção, mesmo depois de ver alguém morrer logo à sua frente.

"Quase..."

—Vocês estão bem? — indagou a meio humana.

Lauren se levantou e a encarou assustada.

—Bem, acho que sim... — ela virou então os olhos para o garoto. — Você está?

—Sim. — respondeu ele da mesma maneira que antes.

—Bom, não sou eu quem decide isso, mas se ele quer vir conosco, por que não aceitar? — disse Kiere encarando o saco de ouro segurado por Lauren, um sorriso quase predatório se abriu em sua boca. — Ele provavelmente vai ser morto e roubado se ficar aqui.

Lauren olhou na direção de Hylia, que bufou, relutou e só então assentiu com a cabeça. A ruiva soltou um sorriso feliz, um sorriso tão feliz quanto o de uma criança que acabara de receber um presente dos pais. 

—Já que você vai vir conosco, nada mais justo do que nos apresentarmos — disse a ruiva demonstrando uma felicidade clara no rosto. — Aquela mulher chata e mandona ali se chama Hylia — falou Lauren apontado para a princesa, que revirou os olhos ao ouvir os adjetivos impertinentes que a ruiva havia lhe imputado. — Aquela esquisita ali se chama Kiere. Apesar das aparências, as duas são boas pessoas.

"Não sei se consigo concordar com a parte das "boas pessoas". Mas posso viver com isso."

—E o meu nome é Lauren, é um prazer conhecê-lo... — a ruiva não terminou, não sabia como chamar o garoto. O encarou por um tempo, pensando.

—Kette. Meu nome é Kette — falou ele.

                                                                                             \0/

Tolfret acompanhava Zelgle com gotas de suor escorrendo pela testa. Não sabia o motivo, mas estava imensamente apreensivo com sua presença. Não era de agora que tinha certo receio de se envolver com o sujeito, mas depois que estivera a um passo de descobrir algo muito mais sombrio do que podia imaginar sobre ele, esse desconforto aumentou abismalmente, ainda mais após aquelas quase ameaças. Andaram pelas vias pouco movimentadas da cidade fedorenta, voltando ao hotel em que haviam se hospedado no dia anterior. Não demorou muito para que avistassem Hylia e as outras, porém, havia mais alguém com elas. Uma pessoa ainda menor que Kiere. Elas se aproximaram e Hylia passou direto por Tolfret, que a encarou sem entender.

—Não olhe pra mim. Eu tentei dizer não. — falou a princesa enquanto passava por ele indo na direção da porta do hotel.

—Lauren, que porra é essa? — indagou o cavaleiro a irmã que se aproximava.

A ruiva olhou para ele sorrindo.

—Meu novo amigo. É melhor tratar ele bem, isso se quiser acordar com tudo no lugar. 

"Mulher maluca."

Pensaram ambos a criança e o cavaleiro. Zelgle que estava a alguns metros de distância fitou o garoto enquanto ele caminhava ao lado de Lauren, a criança olhou em sua direção sem qualquer reação de primeiro momento, mas após um ou dois segundos, ela fez uma expressão de espanto, como se estivesse vendo algo sobre Zelgle que o próprio gigante não fazia ideia. Desviou então o olhar do gigante, e continuou caminhando ao lado da ruiva. Kiere parou ao lado de Tolfret, que olhava com aborrecimento para a irmã.

—Ela não faria nada com essa criança não é? — perguntou  a meio humana com um quase sorriso no rosto.

Tolfret jogou os olhos na direção dela.

—Não duvide de nada. Você não tem noção do quão louca Lauren pode ser... fique de olhos neles, por favor. — disse o cavaleiro, Kiere assentiu repetidas vezes.

—É, é melhor ficar de olho. — falou — Melhor mesmo.

Os dois entraram no hotel, ficando apenas Zelgle para trás. O gigante verificou se não estavam sendo seguidos antes de entrar. Já dentro do alojamento, o restante do grupo não parecia nem um pouco preocupado com a procedência da jornada. Mas isso mudou, assim que Zelgle entrou no quarto. Tolfret viu ele passar e de imediato se lembrou dos acontecimentos de momentos atrás.

—Temos que ir. — disse Zelgle. — Estamos sendo vigiados. 

—O quê? Por quem?  — indagou Hylia espantada. Ela olhou para Tolfret, como se pedisse por uma explicação, mas o cavaleiro apenas olhou para o chão, dando a entender que não sabia de nada.

—O exército. Eles dominam a cidade agora. Temos que sair o quanto antes. — respondeu Zelgle, e o restante do grupo se entre olhou.

—E por quê eles estariam de olho em nós? O que fizemos? — perguntou Hylia com os olhos crivados em Zelgle — O que vocês fizeram enquanto estavam fora?

—Não é da sua conta. Agora, temos que partir.

Hylia bufou, mas não ia perder tempo discutindo, não mais. 

—Certo, e onde está aquele idiota com a máscara? —perguntou ela.

Tolfret virou o rosto, alegando mais uma vez que não sabia de nada. 

—Não se preocupe com ele. Ele vai voltar quando for hora, ele precisa voltar caso não queira acabar morto.

—Não que ele se importe muito com isso também... — falou Lauren.

—De qualquer maneira. Estejam prontos. Estaremos de saída amanhã. 

                                                                                                    \0/

—Essa vai ficar ótima em você! — falou Lauren apontando para uma camisa infantil dentro de uma loja de roupas. 

Kette a encarou sem responder. Ela decidiu comprar roupas para ele, argumentando que suas roupas eram grandes demais. Não estava errada, mas parecia estar se divertindo até demais enquanto escolhia todas as roupas possíveis para o garoto.

"É assim que as bonecas se sentem?"

—Vou levar essa — disse Hylia jogando um monte de roupas em cima de balcão de madeira. A vendedora da loja ficou estupefata com a quantidade de peças que foram selecionadas. 

—Mais roupas ainda? — grasnou Lauren — Você não acha que já comprou coisas demais?

—Maioria das minhas coisas foram deixadas para trás naquela maldita carruagem. Nada mais justo do que isso, não?

Lauren revirou os olhos. Voltou a fitar o garoto a sua frente, percebera que ele não mudava de expressão quase nunca. Em raras ocasiões ele abria um pouco mais olhos do que de costume, e só.

—Você sabe que não precisa mais ter medo, não é? — perguntou a ruiva, mas ele apenas a encarou, sem responder. —Você está comigo agora, Kette. — terminou, e então passou a mão na cabeça da criança.

"Por quanto tempo será?"

—Você não deveria estar com elas? Não vai comprar nada? — perguntou Tolfret a Kiere.

Os dois estavam do lado de fora da loja, encostados em uma parede. O cavaleiro fumava, de vez em quando olhava para o céu e cuspia uma onda de fumaça, que se dissipava no ar.

—Não gosto de comprar roupas. — respondeu a meio humana ajoelhada e com os cotovelos sobre os joelhos, aparentando estar entediada.

—Sei... bom, está quase na hora de nos despedirmos, não é? — perguntou ele, logo após soltar mais um jato de fumaça pela boca. — Estou com um pressentimento bem grande de que seu amigo não irá querer nos ajudar. Ainda mais se o que ele falou sobre estar indo ver a mãe for verdade.

—Ele não é meu dono, sabia? — rosnou Kiere.

—O que quer dizer?

—Que eu não dependo dele pra nada. Posso cuidar da minha própria vida sozinha. Como tenho feito durante os últimos vinte anos. — respondeu ela com amargura.

—Hm... isso quer dizer que você viria conosco? Ai não estaria mais tão sozinha.

A meio humana ruborizou de leve, não tinha pensado por esse lado ainda. Em sua visão, ela estava sempre sozinha. Contra o mundo todo. Mas talvez isso não tivesse que ser assim, talvez ela conseguisse encontrar algo para se agarrar de fato. Um motivo para viver, e não só mais um motivo para continuar sobrevivendo. E por algum motivo, ela sentia que estava seguindo nesse caminho e que em breve encontraria essa razão.

—Bom... acho que isso seria... — não encontrou a palavra correta.

—Interessante? — completou Tolfret sorrindo.

Kiere escondeu a face entre as pernas.

—Sim. Interessante.

\0/

—Essa fica ótima em você. — zombou Kiere com um risinho vendo Tolfret colocar uma armadura no corpo.

—Claro, estou parecendo um bandoleiro desse jeito. — respondeu o cavaleiro jogando a barra verde da armadura para trás.

Era basicamente um colete de aço, coberto com um manto verde atrás. As ombreiras eram forradas com um tecido branco, parecido com a pelagem de um lobo. As calças marrons eram revestidas de couro, assim como as botas. As manoplas maciças eram enormes, e por baixo do da vestimenta ainda havia uma cota de malha. Não era o traje glorioso que Tolfret gostaria de usar em uma missão tão importante, mas é como sua irmã dizia, precisamos trabalhar com o que temos. Tolfret então pegou uma espada média e a colocou na bainha enfiada no cinto.  

—Por acaso você não tem algum escudo? — perguntou para o vendedor. O homem o encarou por segundo.

—Me desculpe, mas infelizmente não temos nenhum aqui. — respondeu o homem com um olhar sincero no rosto.

—Por quê não leva algo como aquilo? — a meio humana apontou para uma arma exposta na parede. Era uma alabarda. Ela se levantou e retirou a arma dos dois ganchos que a seguravam. Quase a derrubou no chão, fez um tremendo esforço e só então conseguiu a levantar.

—Eu não sei... isso é...

Kiere entregou a arma para Tolfret e o cavaleiro quase desabou pelo peso da arma.

—É diferente. — grasnou ele. Passou a mão pela haste da imensa alabarda. Não era como sua lança, uma arma comprida, porém, leve. Era uma arma pesada, longa e extremamente destrutiva. Não poderia usar um escudo com aquilo, mas dado as condições, não poderia exigir muito, de qualquer maneira.

—Bem, acho que estou pronto então. 

Kiere riu na direção dele.

—É, aposto que está. Boa sorte. — falou ela, escondendo certa tristeza.

 Os dois viraram os olhos na direção de Hylia. A princesa já havia testado uma quantidade enorme de espadas diferentes. Desde as mais curtas, as médias, grandes e espadas bastardas. Ela tirava as armas de seus pedestais ou aglomerados e fazia alguns movimentos, floreava as espadas com maestria impressionante, e mesmo algumas delas tendo um tamanho desproporcional ao seu corpo, ela ainda assim conseguia executar movimentos perfeitos.

—Você não tem nada melhor que isso? — perguntou ela sem se importar em menosprezar os produtos.

—Garanto que você não encontrará armas melhores em toda a cidade, senhorita.— respondeu o vendedor com uma expressão sombria no rosto.

—Temos que trabalhar com o que temos, Hylia. — falou Lauren, finalmente conseguindo completar a fala.

Como de costume ao ouvir qualquer coisa daquele tipo, Hylia bufou. Pegou uma espada longa que era a melhor que conseguira encontrar. Jogou a arma simples em cima do balcão. 

—Isso é tudo.

Os três saíram da loja. As preparações para a jornada estavam prontas. Só precisavam da resposta de Zelgle agora. Quer ele ajudasse ou não, só uma coisa importava, e Hylia não tinha mais paciência para esperar sua resposta.

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