Capítulo 31: Caminhos
Após quase uma hora de espera, Deodor e Crust finalmente foram convocados para falar com o Rei.
-Chame alguém para limpar essa bagunça, por favor.
Pediu Deodor para o mensageiro, que sorriu de surpresa ao ver quantidade de papéis e outras coisas espalhadas no chão, além de manchas de tintas por toda parte.
Depois de vinte minutos de caminhada pelo caminho entre a Catedral dos Três Poderes, da cidade até o castelo, e os corredores de piso lustrado, eles chegaram a sala do trono. Inúmeros pilares se erguiam em frente, na sala bem iluminada pela claridade advinda da enorme janela do lado direito, de onde era possível observar praticamente toda a cidade de Largus, a principal cidade no Império de Rikiat. Vários prédios podiam ser vistos ao longe, imensos, feitos de diversos tipos de materiais, com grandes abóbadas surgindo nas partes altas, mais ao longe ainda, era possível ver a imensa muralha de pedra se erguendo, com suas torretas com quilômetros de distância entre elas. O ambiente confortável era o que deveria ser esperado de uma câmara real, com seu imponente trono se erguendo no fim da sala, esculpido em pedra cinza e fria, pesado e robusto, como o dever de um rei, e onde o Rei, não se encontrava.
-Onde está Rarth?
Questionou Deodor afiado, o encarregado de levá-los até a presença do Rei indicou um caminho mais a direita.
-Por aqui.
Eles foram redirecionados para uma sala um pouco mais fechada e solitária, que eles sequer sabiam que existia. Quando entraram, o Rei estava junto a dois guardas, sentando em uma cadeira, parecendo tenso e cansado. Suor escorria de sua testa encharcando suas roupas.
-Ótimo, ai estão os dois... podem sair.
Deodor e Crust ficaram espantados com a fala do Rei, até perceberem que ele falava com os guardas atrás deles.
-Mas senhor, deixá-lo sozinho é...
-Sozinho? Estou com dois dos generais do exército comigo. Ainda acham que estou mal acompanhado?
O Rei havia entendido perfeitamente o que os guardas queriam dizer, nenhuma ameaça poderia vencer um general de Rikiat facilmente, claro. Mas isso não importaria se a ameaça fosse um dos próprios generais. Deodor fechou a cara e resmungou alguma coisa baixinho, Crust que estava ao seu lado foi o único que conseguiu entender.
"Enfiem a preocupação nos rabos!"
-E também, mesmo que fiquem na sala, se Deodor realmente quisesse me matar, vocês acham que conseguiriam empedir ele?
-N-n-não, senhor...
-Viram? Bem, se entenderam, deixem-nos, por favor.
Os soldados rapidamente saíram e fecharam a porta.
-Parece que a minha reputação não está nos melhores dias.
Falou Deodor, carrancudo. O Rei deu uma risada amigável e indicou com que os dois se sentassem nos assentos próximos, iguais as cadeiras de madeira em que o próprio Rei estava sentado.
-Me desculpe Deodor, eu realmente sinto muito... eu estava confuso naquele momento, e acabei falando uma bobagem. Sei como você se esforçou para ajudar todos nós, e é tratado de maneira tão injusta...
-Não se preocupe Majestade, acho que é o que acontece quando temos um posicionamento levemente diferente dos demais que lutam pela mesma causa que a nossa.
-Mesmo você dizendo isso, ainda é injusto...
-Bom, acho que fiz por merecer. Pois todos estão preocupados em manter as próprias cabeças grudadas no pescoço e não com honra ou qualquer outra coisa assim...
-Sim, você está certo, e isso é uma pena. Mas mesmo assim Deodor, você abriu meus olhos. Talvez depois de depositar tamanha confiança em Adrivarius e Jundair, eu tenha deixado a realidade fugir... mas agora, estou quase conseguindo ver com clareza de novo, o que é certo.
-É bom ouvir isso. Mas afinal, por que exatamente nos chamou aqui?
-Ah, é claro... bem, o motivo é muito simples. Tenho uma tarefa para vocês.
Crust e Deodor permaneceram encarando o homem com atenção.
-Hylia Maren.
Nesse momento os dois generais ficaram estupefatos.
-Conhecem esse nome não é?
-É claro senhor, afinal é su-
Respondeu Crust, entrando na conversa finalmente.
-Minha filha, não é?
-I-isso mesmo.
-Bem, as pessoas não gostavam de chamá-la assim. Vocês conhecem a história não?
-Sim. A filha única da rainha Thyrda.
-Exato, como sabem, a garota não é minha filha, mas sim filha de Thyrda com outro homem. Mas antes de me casar com Thyrda, eu aceitei esse fato perfeitamente, e amei Hylia como se fosse minha filha de sangue. Mas como Thyrda não podia mais ter filhos, e a única na linha de sucessão de trono era Hylia, na primeira chance que tiveram, o restante da família real e a nobreza se uniram ao clero e incriminaram Hylia por algo que a mesma sequer cometeu. E eu só pude assistir... foi tão patético.
Rarth respirou fundo por um momento, Deodor e Crust se entre olharam, preocupados.
-Mas não importa agora. O importante é que eu quero que vocês a encontrem.
-Nós?
-Sim, vocês. Pois vocês são os únicos em quem confio. Se eu mandasse uma missão oficial atrás dela, o conselho provávelmente ficaria desconfiado da finalidade disso.
-Senhor, entendo que ela é sua filha, mas... por que agora?
-Como eu deveria explicar... bem, acho que não tenho muito tempo nesta terra, meus caros.
Deodor quase se engasgou na própria saliva ao ouvir isso.
-Do que diabos est-
-Estou doente, Deodor. Doente. E muito.
-Só pode estar brincando senhor, eu não consigo acreditar em algo ass-
-Acha que eu brincaria com algo tão sério?
O Rei ofegou e soltou um suspiro, um arquejo sem qualquer vigor.
-Não sei quanto tempo faz, mas me sinto cada vez mais fraco, mais debilitado, mais inútil. É por isso que precisamos de alguém para quando eu me for.
-O senhor tem idéia de quanto tempo lhe resta?
Perguntou Crust, sério, mas ainda perplexo.
-Não, mas dúvido que seja muito. Pode parecer um pouco repentino, já que eu tento parecer o melhor possível em público. Mas já que estou com a ponta dos pés na cova, é melhor contar logo para alguém.
-Não há nada que possa ser feito? Chame um médico ou algum daqueles magos com magia de cura, você é o fodendo rei!
Rarth riu, uma risada fraca, sem ânimo.
-Acha que não tive essa brilhante idéia? É claro que consultei diversos médicos, mas todos eles disseram a mesma coisa: não posso fazer nada pelo senhor. Aparentemente minha doença é desconhecida. E magia de cura não funciona em doenças. Me disseram para tentar uma benção ou algo assim, mas também não parecia ser uma maldição, então nada disso resolveu.
-Céus... é uma reviravolta dramática, no mínimo.
Crust parecia tão angustiado quanto o próprio Rei, mas não tinha nada para dizer que pudesse servir de consolo.
-Pode apostar que é. Mas as piores coisas da vida sempre vêm com uma dose bônus de drama. E a morte é o maior drama da vida, e talvez a pior coisa nela também.
-Então, pelo que estou entendendo, o senhor quer que resgatemos Hylia para ela assumir o trono quando o senhor bater as botas?
-Isso mesmo.
Deodor deu uma risada débil, não como deboche ou zombaria, mas como descrença.
-Escute senhor, eu entendo que para você ela possa ser a esperança no fundo do poço, mas eu não consigo ver como uma pessoa condenada pode ser de ajuda, mesmo se ela assumisse o trono, ela poderia ser derrubada facilmente. E seria muito provável que ela não teria voz alguma.
-Vocês serão a voz dela. É óbvio que ela precisará de apoiadores, e é a vocês que eu gostaria de atribuir essa tarefa. Sejam os olhos dela, os ouvidos dela, os braços dela. Tudo. Sejam leais a ela como foram a mim. Podem fazer isso?
Os generais engoliram o seco. Era difícil de acreditar num pedido como aquele. O Rei estava morrendo? O fodendo Rei estava morrendo? O rei que eles serviram durante toda a vida, a quem devotaram tudo que tinham, e quem deveria assumir era sua filha, à muito condenada e expulsa? Não parecia haver muitas esperanças para o desfecho dessa história, porém, que outra escolha teriam eles a não ser cumprirem a tarefa que estava lhes sendo imposta?
Deodor acabou deixando o corpo inteiro ceder na cadeira de madeira. O rosto ficando pálido de repente, os olhos negros se tornando fendas quase vazias em um instante. Ele arrastou alguns fios de cabelo do rosto, molhados e oleosos por conta do suor que se alastrava pelo rosto. Ele suspirou, e então encarou o Rei de relance.
-Quando partimos?
-Se possível, hoje. Mas no máximo, amanhã.
-Parece que o senhor realmente está com pressa.
-Acho que deve ser normal ficar um pouco mais neurótico quando se está morrendo.
-Sim, aposto que sim. A propósito, onde ela está?
-Em Minandre, me contou um espião recentemente.
Deodor e Crust quase pararam de respirar ao ouvir isso.
-Mais problemas, ouso dizer...
-Muitos, por isso, escutem bem: a missão de vocês será trazer Hylia de volta, se a força for necessária para fazê-la entender seu dever, não hesitem em usá-la, porém, não matem ninguém, por favor. Se forem pegos em território Minandrense a essa altura, não consigo imaginar o que eles fariam. Além disso, ela tem dois serviçais fiéis a ela, não vão traí-la em hipótese alguma, mas não os matem, tudo bem?
-Não precisa nem dizer.
-Ótimo. Eu peço perdão, mas não posso disponibilizar uma tropa muito grande para vocês. O conselho perceberia se um destacamento muito grande fosse enviado para o meio de Minandre sem nenhum motivo ou aviso prévio.
-Com certeza iriam... aqueles porras...
-Não vou conseguir nada melhor que uma patrulha disfarçada ou algo assim. Farei o máximo que puder, mas não esperem muita coisa. Além disso, preciso que isso seja completado com urgência, mesmo vocês dois sendo vistos com maus olhos, todos ficariam desconfiados sobre seus paradeiros caso vocês desapareçam por tempo demais. Afinal, vocês dois são generais.
-Assim até eu fico ofendido...
Murmurou Crust com a cabeça apoiada sobre o punho direito fechado, com o cotovelo sobre o braço da cadeira. O Rei riu da queixa do subordinado.
-Bem, é como as coisas são. Eu só gostaria que soubessem... estou contando com vocês.
A voz do Rei foi ficando cada vez mais baixa no seu último comentário, se tornando praticamente um murmúrio na última palavra.
Crust e Deodor o encararam compassivamente.
-Bom, já que você está nos fazendo um pedido tão urgente, temo que não possamos negar, porém, eu gostaria de perguntar algo a você, Majestade.
A expressão no rosto de Deodor ficou ainda mais séria que antes. Ele encarou o Rei diretamente nos olhos.
-Quem é aquele garoto que entrou no salão?
Rarth ficou surpreso com o questionamento, já Crust mostrou um interesse pela resposta da pergunta. Rarth resfolegou enquanto recliva as costas sobre a cadeira.
-Aquilo é um erro Deodor, um erro. Um dos piores que já cometi. E eu espero conseguir resolvê-lo por conta própria, sem que ninguém seja envolvido nisso.
Deodor não foi petulante o bastante para perguntar uma segunda vez, vendo que a resposta havia sido tão subjetiva.
-Bom, se você diz que quer resolvê-lo, não vejo motivo para contradizer. Mas quero que saiba que ainda estamos ao seu dispor.
Deodor levantou da cadeira devagar, e foi até a porta. Dando as costas ao Rei, e a Crust, que permanecia sentado.
-Faremos o que for preciso para trazer sua filha de volta, senhor. Confie em nós.
O Rei sorriu ao ouvir isso.
-Obrigado, tenho certeza que conseguirão.
-Nós vamos sim, mas bem... eu vou indo. Tenho que dar uma cagada.
************************************
Os dias se passaram rapidamente durante o treinamento de Zelgle e Kiere. Com os ensinamentos de Rozaria se tornando cada vez mais práticos. Kiera já dominava com maestria as esferas de relâmpago que envolviam suas mãos quando ela concentrava mana nelas. Ela também já conseguia passar a energia para as armas, possibilitando reforçá-las com o seu elemento.
-Você já está muito boa nisso, mal consigo acreditar que faz tão pouco tempo que comecei a ensiná-la.
-Talvez eu seja um gênio.
Respondeu a meio humana com uma careta. Zelgle não tinha a mesma sorte. Ainda não conseguia fazer nada direito, tanto no treino com espadas, quando no treino com magia. Era impossível dizer que ele não havia evoluído em nada, mas também parecia um enorme desperdício de tempo. O máximo que ele conseguia era acumular uma quantidade minúscula de energia quando juntava as mãos em forma de um globo, mesmo sem o anel, não havia diferença alguma.
-Senhorita Rozaria, posso perguntar uma coisa?
"Embora eu já esteja fazendo uma pergunta..."
Kiere, Zelgle e Rozaria estavam sentados na mesa circular faziam alguns minutos. Estavam fazendo uma pausa. Rozaria estava bebendo uma xícara de café, ela sempre estava. Já Kiere estava apenas mexendo uma colher inserida na xícara, fazendo contínuos anéis na superfície do líquido negro, encarando o vapor subir, entediada.
-Bem, já estamos tendo aulas a alguns dias. Me surpreende que ainda precise pedir.
-Você lembra quando contei a você e a Linel sobre o homem que ele havia enfrentado?
-O que atacou Kiere?
-Sim, ele mesmo. Se não me engano, seu nome era Ivan.
-Aquele desgraçado...
Rosnou Kiere, ela já estava prestando atenção na conversa desde que seu nome fora citado.
-Ele tinha uma habilidade estranha...
-Que tipo de habilidade?
Perguntou Rozaria, com a curiosidade brilhando nos olhos.
-Ele podia fazer uma espada de gelo, ou algo assim.
-Uma espada? Bem, com alguma prática, você consegue moldar um elemento para ele assumir uma forma. Magos de terra e gelo podem fazer isso facilmente, já que seus elementos são sólidos.
-Sim, creio que sim... mas a espada não parecia necessariamente ser feita de gelo, parecia mais que ela tinha a propriedade de congelar... como se fosse inerente a ela.
A curiosidade no rosto de Rozaria se contorceu tanto, a ponto de se transformar em uma confusão.
-Não estou entendo...
Vendo que não estava chegando a lugar nenhum, Zelgle tentou montar uma explicação prática na cabeça, e disso, lhe veio a explicação do garoto quando ele fez a missão de escolta.
-Era como se ele estivesse usando a essência do gelo no formato de uma espada. Mas não dando uma forma sólida a ela, e sim algo mais...
-Inexistente. Não é possível que algo assim exista. Armas podem ser encantadas com essências, e acabam adquirindo propriedades elementais. Mais criar uma espada mágica com tal propriedade é algo que eu nunca presenciei ou sequer imaginei.
-Entendo.
"Se Rozaria nunca ouviu falar de algo assim, realmente não deve ser comum. Mas eu tenho certeza que aquela coisa era real. Quando ele me acertava, ele não só me congelava, mas também havia a uma sensação muito parecida com a de uma arma real... uma lâmina de verdade."
-Vamos voltar ao treino.
Eles passaram a próxima hora repetindo o processo de acúmulo de energia. Zelgle continuava tentando formar esferas perfeitas como Kiere, sem nenhum progresso aparente. A meio humana já havia dominado com perfeição aquele estágio, e Rozaria estava lhe mostrando o próximo.
-Agora, ao invés de acumular energia apenas nas mãos, tente no corpo inteiro. Chamamos isso de reforço com mana. É muito útil em combates físicos, pois melhora praticamente todos os atributos.
Kiere se concentrou por um momento. A energia azul começou a se espalhar para seus braços. Estalos e faíscas saltaram como se relâmpagos houvessem acertado o lugar. Uma onda de luz se propagou no campo, e todos no treino de combate pararam para observar o que estava acontecendo. Denerin que estava treinando sozinho, olhou na direção da garota. Ela estava com os olhos fechados, constantes correntes elétricas passavam de mão em mão, em seu rosto havia uma profunda expressão de esforço. Mas então ela soltou um suspiro e parou. Desabando no chão de cansaço.
-É mais difícil do que imaginei...
Disse ela ofegante, com dificuldade para respirar. Uma sombra enorme cobriu seu corpo caído na grama.
-Você está bem?
Perguntou Zelgle, lhe entendendo a mão.
-É, acho que estou...
Ela segurou sua mão com força, e ele a puxou para cima. Ao se por de pé, ela colocou a mão sob os joelhos, ainda tentando recuperar o fôlego.
-Você não foi nada mal. Quase conseguiu de primeira, mais umas tentativas e você deve conseguir.
Rozaria se aproximou dos dois.
-A partir daqui, não haverá muito o que lhes ensinar. Não acho que os dois sejam adeptos a magia, mas aprender a controlar a energia mágica é algo muito útil, principalmente para os aventureiros.
-Acredito que sim.
Respondeu Zelgle, aparentando estar decepcionado com a própria performance.
-Não se culpe tanto, não é tão fácil quanto parece. Alguns como ela apenas fazem parecer que é.
************************************
Denerin deixou a cena de lado, aparentemente o show da meio humana havia terminado. Voltou a focar-se em seu treinamento com a espada. Ele havia melhorado consideravelmente desde que começou a treinar. E quando não estava praticando com a espada, imitava os passos ensinados por Rozaria para Zelgle e Kiere, pois estava observando-os o tempo todo, e surpreendentemente, ele estava quase conseguindo alcançar o primeiro estágio, o que era um grande passo para ele.
"Devemos trabalhar com o que temos."
Pensava ele, acertando um boneco de treino repetidas vezes com a espada de madeira. Uma vasta quantidade de suor escorria de seu rosto. Suas roupas estavam sujas, e muito. Parou de usar a armadura de couro velha, já que não havia aceitado missões recentemente, era melhor manter o equipamento no melhor estado que pudesse, já que era o único que tinha. E mesmo que fosse uma pilha de lixo.
Ele se sentou na grama, cansado e ofegante. Mas agradecido. Muito agradecido. Lhe havia sido dado uma oportunidade de ouro, e ele não queria desperdiçá-la, obviamente. Por isso estava se esforçando tanto. Ele olhou para trás quando uma sombra cobriu suas costas. Era Mihia. A garota estendeu o braço, oferecendo um odre com água para ele.
-Quer?
Perguntou ela com a voz fria. Denerin encarou o olhar paralisante da garota antes de pegar a pequena bolsa de couro da mão dela.
-Obrigado.
Agradeceu antes de tomar um gole. Sentiu como se o espírito tivesse voltado ao corpo no mesmo momento.
-Você é bom. Muito bom.
-Com a espada?
-Sim.
Ele deu um sorriso disfarçado.
-Ah, você é bem melhor que eu. Seus movimentos são ótimos. Não me imagino ficando tão bom quanto você.
-Modesto.
Sussurrou ela.
-Oi?
-Você é modesto.
Era muito difícil decifrar o que aquela garota estava pensando, e ainda por cima, sempre que ela abria a boca, nada mais que algumas palavras pequenas saiam.
-Eu não me colocaria assim. Só acho que minhas habilidades são medíocres para eu ficar me vangloriando por ai.
-Isso é ser modesto.
Ela vagarosamente se abaixou e sentou ao lado de Denerin.
-Gosto de pessoas assim.
-É... é mesmo?
Denerin sorriu sem entender. A verdade é que ele não sabia como reagir as tentativas dela de ser amigável, se é que isso podia ser chamado assim. Ela se acomodou a menos de dez centímetros dele.
"Ela cheira bem... e estava treinando até agora pouco..."
Pensou ele encarando o céu, tentando disfarçar. A garota estava com os braços em volta das pernas, que por sua vez, estavam erguidas. Era raro as vezes que ela se aproximava tanto, e quando fazia, ela apenas ficava observando Denerin esgrimir com atenção, e ele tentava fingir que não tinha notado sua presença. Ela sempre estava com uma roupa parecida, a calça negra coberta com uma barra longa no lado esquerdo, um pano de coloração ainda mais escuro, como um vestido, deixando apenas a perna direita descoberta, as botas longas, e também negras chegavam perto dos joelhos. A parte de cima, um pouco mais curta, deixava parte do abdômen descoberto, com mangas longas, uma ombreira ornamentada no lado esquerdo, uma gola alta, feita do mesmo material da ombreira, um metal aparentemente. E então as mãos, enluvadas em preto.
"Deve ser a coveira mais linda do mundo."
Denerin olhou para as próprias roupas, em comparação. Velhas, sujas, e rasgadas. Trapos imundos. Ele não aguentava mais aquilo. Mas o que podia ser feito? Não tinha dinheiro no momento...
-Vê aquele cara?
Ela apontou para Quai, o rapaz que Denerin havia derrotado antes. Ele estava gargalhando e fazendo posições estranhas na frente de um grupo composto por três garotas e quatro outros homens.
-Ele é um idiota. Se acha superior por ser pouca coisa melhor que os outros.
-É, eu percebi isso.
-E foi por isso que fiquei contente em ver você desbancar ele.
-Não foi como se eu tivesse a intenção de provar nada...
"Tinha sim."
-Eu só fiz o que me pediram, e ele era muito ruim...
-Tem razão. Mas mesmo assim, fiquei contente. Pois você não se gabou. Todos podiam ser como você. Eu adoraria isso.
"É um elogio estranho, mas ainda assim é um elogio. Eu acho..."
-Bem, é normal as pessoas quererem ser superiores aos outros. Eu aprendi isso de várias formas diferentes. Treinei esgrima por dois anos, me preparando para ser aventureiro. Estudei alquimia por algum tempo também. Mas não consigo fazer dinheiro com isso, praticamente. E no fim das contas, só importa o quão grande você é perto dos outros. Mesmo que isso não signifique nada.
-Entendo. Bem, mesmo assim, gostei de você. Espero ficarmos no mesmo grupo.
-Grupo?
-Você não sabe? Após os treinos para os iniciantes, alguns dos líderes de grupos do clã escolhem membros novos para seu grupo.
"Hm... quer dizer que o clã daquele homem é grande o suficiente para ser subdividido dessa maneira?"
Se perguntou ele enquanto olhava para Linel, sorrindente ao longe.
-Agora que você diz, acho que também gostaria de ser seu companheiro.
Ele encarou a garota por um tempo.
-Vamos ver no que dá.
Respondeu ela de forma fria.
-Quais são os grupos? Você sabe?
-Hm... tem o grupo da Arlen.
-A meio elfa?
Mihia o encarou com uma expressão confusa.
-Você conhece ela?
-Bem, teoricamente eu salvei a vida dela a algum tempo atrás.
-Impressionante.
Respondeu a garota parecendo impressionada.
-Tem o grupo do Mandi também.
-Não conheço esse.
-É um imbecil de rank prata com uma lança.
"Ah, aquele imbecíl."
Denerin lembrou da pessoa que o arremessou no chão quando ele estava prestes a começar a primeira missão.
-Se não me engano são três ou quatro, e o da Arlen é o melhor.
-Entendi... boa sorte a nós dois então.
Denerin sorriu para a garota, que não reagiu e apenas o encarou sem expressão.
************************************
Os treinos finalmente haviam terminado. Zelgle e Kiere estavam prontos. Ou quase. A meio humana ainda estava aprendendo a fortalecer o corpo com mana. Quase lá. Já Zelgle, ainda lutava para conseguir controlar a quantidade absurda de energia que tinha para formar as esferas. A cada dia que passava, ele ficava um pouco melhor, era uma melhora quase imperceptível, mas ela existia.
Já no treino de espadas, ele ainda não conseguia fazer nada direito, os golpes eram previsíveis, imprecisos, lentos e atrapalhados, mas em compensação, fortes o suficiente para derrubar uma árvore. Zelgle já havia quebrado mais espadas do que desferido golpes.
-Acho que é isso...
Disse Rozaria para os dois, enquanto eles faziam a pausa.
-Não tenho mais o que ensinar a vocês. Se realmente tiverem interesse em magia, vocês podem aprender com tomos ou coisas assim. Acho que já sabem o necessário. Assim que ela conseguir dominar com perfeição o reforço com mana, ela poderá ensinar a você. Dito isso, meu trabalho está feito.
Terminou Rozaria, bebendo um gole de café imediatamente.
-Agradeço pelo que fez. Mesmo que não tenha ido bem, consegui entender as teorias por trás.
"Mentira."
Zelgle tentou parecer confiante, mas simplesmente não estava enxergando mais a necessidade de participar do treino, já que não dava em lugar algum, já Kiere estava o caminho certo.
-Então estarei partindo em breve. Agradeço por tudo.
Zelgle então se levantou, Kiere ia indo logo atrás dele.
-Até mais.
Disse Rozaria friamente para os dois caminhando em frente.
"Foi divertido, de certa forma."
Ela riu sozinha.
Linel observou Zelgle e Kiere indo embora, e sorriu na direção dos dois. Zelgle olhou em sua direção, e acenou.
Denerin também percebeu que eles estavam de partida. Ele parou o treino por um momento.
"Será que eu deveria ir agradecer ele mais uma vez?"
Ele apertou o cabo da espada com força.
"Como se meus agradecimentos fossem deixar ele rico."
E então ele olhou firme para o boneco de treino, e voltou a golpear com força.
Kiere e Zelgle finalmente estavam fora da guilda.
-Ei, você realmente quer ir comigo?
-Vai perguntar isso logo agora, que já estamos saindo?
-Você ainda tem tempo de des-
-Eu vou com você. Já me cansei desse lugar. Quero ver um pouco mais do mundo. Pelo menos um pouco mais. Antes de virar comida de larvas e essas coisas.
-Sei.
Zelgle assentiu com a cabeça, indo em direção ao centro da cidade.
************************************
Dois dias depois da partida de Zelgle e Kiere, os grupos finalmente seriam estabelecidos.
-Arlen, você é a primeira a escolher.
Disse Linel, sorridente para a meio elfa, que andou calmamente para frente, observando os rostos enfileirados. Todos estavam apreensivos com sua presença, afinal, seu grupo era o número um do próprio clã. A meio elfa então apontou na direção de Mihia, que estava com os braços cruzados, olhando para o nada.
-Venho lhe observando a bastante tempo. Você é boa.
A garota fez uma reverência e saiu da fila. Arlen andou por mais um momento, e acabou se deparando com um rosto familiar.
-Você...
Disse ela olhando para Denerin. De repente o garoto ficou vermelho.
-N-n-não sabia que tinha sido recrutado.
Exclamou a elfa surpresa.
Denerin riu por um momento, tão surpreso quanto ela. Todos os outros recrutas estavam encarando ele com os olhos pegando fogo.
-Você também.
Disse ela, deixando Denerin sem entender.
-Esses dois, senhor Linel.
-Claro, claro, claro. Mihia e Denerin. Boas escolhas eu diria.
E então ele entendeu, ia ficar no melhor grupo do clã? Não sabia como agradecer, tanto que ficou boquiaberto por alguns segundos.
-Bem, é a minha forma de agradecer. Por salvar minha vida.
A meio elfa sorriu, com o rosto levemente vermelho.
-O-obrigado.
Murmurou Denerin de maneira quase ininteligível.
"É isso que as pessoas chamam de satisfação?"
************************************
-Estamos prontos para partir, senhor.
Disse Deodor para Rarth, na frente da ponte entre o castelo e a cidade.
-É ótimo ouvir isso.
Rarth estava apoiado no parapeito da ponte. Olhando o fundo do fosso, uma queda de quase sessenta metros. Com água corrente no fundo. O castelo era basicamente uma ilha, um último forte para casos extremos, grande o suficiente para acolher milhares de civis, e robusto o bastante para aguentar ataques de catapultas entre outros perigos. E também, bonito o bastante para encantar qualquer um.
-Espero que tenham sucesso.
-Eu também senhor. Pra ser sincero, não acho que falhar seja uma opção, nunca achei.
-Essa fala devia ser minha, mas acho que combina melhor com você.
-Bem, não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar tempo, então essa missão deve ser um sucesso.
-Sim, você está certo.
O Rei franziu o cenho de leve.
-O futuro de Rikiat depende disso.
Ele fechou e abriu os olhos lentamente. E colocou a mão em um dos bolsos da magnífica roupa.
-Quase ia me esquecendo. Pegue isso.
Ele entregou um pequeno fragmento de algo para Deodor.
-Isto é...
-Sim, isso mesmo. Caso fique perigoso demais, eu preciso que vocês retornem, não posso me dar ao luxo de perder os únicos que realmente são confiáveis para mim.
-Me desculpe senhor, mas devo recusar. Nunca deixaria nossos soldados para trás.
"Foi o que pensei..."
Deodor devolveu o pedaço brilhante do que quer que fosse para Rarth. Que, de relance encarou Crust, mais ao fundo. Seus olhos se cruzaram como uma linha, passando uma mensagem única entre os dois.
-Tomem cuidado.
Eles se despediram, e então, os dois generais andaram pela enorme ponte até o outro lado.
Rarth permaneceu observando a caminhada dos dois, já estavam longe, de repente, uma pontada de dor aflingiu seu peito. Ele grunhiu, e tossiu. Tossiu sangue em umas das mãos.
"Eles vão conseguir... eu sei que vão."
Deodor e Crust foram até algo parecido com um estábulo, um pouco afastado das casas e prédios. Um pouco mais de trinta soldados se reuniam nesse lugar, com cavalos, armas e suprimentos. Um pouco a frente deles, uma mulher loira vestida com o uniforme militar e de óculos estava ordenando onde isso e aquilo devia ser colocado. Ao ver os dois generais chegando, ela se colocou em sentido e esperou eles chegarem.
-Muito prazer general Crust e Deodor, sou a Tenente Kserthy Ankar, e fui encarregada por ordem do próprio Rei a me juntar a sua expedição.
-Muito bem.
Respondeu Deodor, sério observando a pequena tropa organizada em cima dos cavalos.
-Você sabe qual é o objetivo dessa expedição?
-Não senhor, minha patente não é alta o suficiente.
-Entendi... bom, vamos lá.
Eles saíram por um portão que ficava um pouco atrás do tal estábulo. Não precisaram dizer uma palavra ao sair, apenas o uniforme deixava claro para os guardas o que tinha que ser feito.
-E lá vamos nós.
Exclamou Deodor, com um meio sorriso no rosto.
-Vejo que está feliz.
-Mais ou menos. Acho que isso pode ser bom, não vou ter que ver a cara daqueles idiotas por um tempo.
-É, concordo com você.
Eles passaram pelo portão da muralha e percorreram por uma planície.
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