Capítulo 16: Esperanças baixas

O vale do Diabo, como se chamava um caminho extremamente perigoso entre os Reinos de Nirrat e Vonkar.
Tal caminho conectava os reinos de forma que se era possível concluir a viagem que levaria um dia inteiro, dando uma volta gigante para se contornar uma montanha imensa que ficava entre as duas cidades, em menos de três horas, o que tornava aquele lugar em um ótimo atalho, assim parecia, o problema é o perigo que ali existia, monstros e animais perigosos perambulavam livremente por aquela região, fazendo com que ninguém sensato ousasse cruzar aquela trilha.
Pelo menos agora, Zelgle sabia que isso não era mentira.
Desceu da carruagem que deveria escoltar e foi em direção a cinco lobos que não estavam deixando o transporte passar.
Foi em direção aos animais com o enorme machado em punhos, seu olhar distante parecia nem ter como objetivo os caninos.

Quando ficou a menos de três metros dos animais, começou a brandir a arma de uma lado para o outro, na tentativa de assustar os lobos.
Até que foi bem sucedido no início, eles foram gradativamente se afastando do homem, menos um, que se sentiu ameaçado o bastante para pular sobre Zelgle abruptamente.
O animal mordeu seu braço esquerdo com força, enterrando as presas no tríceps.
Acostumado com aquilo, devido a desagradável situação que tinha lhe acontecido no dia anterior, soube exatamente como lidar com tal coisa:
Largou o machado, que caiu no chão, fazendo um estalo metálico ecoar por todo o vale entre as paredes rochosas das montanhas até seus picos áridos.
Segurou o lobo pelo pescoço, fazendo largar seu braço, que em seguida entrou em combustão, como sempre, e fez o sangramento e o ferimento desaparecerem em instantes.

Dentro e fora da carruagem, seus contratantes assistiam a cena embasbacados. Não sentia dor?
O que eram aquelas chamas? Coitado do lobo!

Por fim, acertou a cabeça do animal contra uma árvore que ficava próxima dali, que chacoalhou das raízes aos galhos com a pancada.
Já o lobo, grunhiu de maneira aguda, pela brutalidade de Zelgle, que acertou-o contra a árvore uma segunda vez, coitado!

Por fim, não achou necessário matar o lobo, apenas soltou seu pescoço e deixou que fosse embora.
Juntou-se a sua matilha e fugiram com o rabo entre as pernas, literalmente.
Parou e olhou os animais correndo, tentando ter pena do que fora agredido, até que voltou-se a sí mesmo.

"Minha roupa... eu disse que ia tomar mais cuidado..."

Olhou por cima do ombro, o sobre tudo novinho que acabara de comprar já estava rasgado de novo, do mesmo jeito que o anterior foi rasgado, era para aquilo ser engraçado?
Conseguiu ignorar o fato de já ter destruído parte da peça de roupa, e decidiu voltar para a carruagem após apanhar seu machado do chão.

Aproximando-se lentamente, os dois homens na frente pareciam incrédulos, junto à mulher na parte de trás, e as crianças, impressionadas.

-O que voc-

Começou o homem que conduzia a carruagem, e responsável pelo anúncio na guilda.

-O que diabos foi aquilo?

-Aquilo?

Zelgle perguntou sem entender.

-Aquela luz! Você começou a pegar fogo do nada...

Bradou o homem, rapidamente, sem pausas, assim que terminou, respirou fundo para recuperar o fôlego da fala acelerada e da surpresa. E então, acrescentou:

—E você não tinha sido mordido?

"As chamas... eu me esqueci delas."

Zelgle logo entendeu o motivo do espanto, estava começando a se acostumar com as chamas negras, mas se esquecia que aquilo era totalmente incomum no ver de uma pessoa normal, até mesmo pra si aquilo ainda era esquisito, mas como não podia fazer nada, desistiu de tentar entender.

Flanqueou a carruagem e entrou pela parte de trás, sem conceder nenhuma explicação do que acabara de acontecer.
Sentou-se ao lado do garoto, encostando as costas no fundo do lado esquerdo da carruagem, com o machado deitado ao seu colo, que quase tinha o mesmo comprimento da carruagem inteira.

-Senhor...

Disse a garotinha, segurando na barra do vestido da mãe, que também estava encarando Zelgle de maneira feia.

-O que é aquilo?

-Hm...

Pensou antes de falar, nada lhe vinha a cabeça.
Não poderia dizer algo como "Ah, eu simplesmente entro em combustão e fico intereiraço de volta." por mais que fosse o que realmente acontecia.

-Aquilo é uma magia...

Respondeu finalmente, forçando um sorriso, que saiu bizarramente distorcido.

-Oh, é mesmo? Eu nunca tinha visto uma magia como essa... aquele fogo era lindo!

A garotinha sorriu em direção a Zelgle, em retribuição ao sorriso horroroso que havia se projetado em sua boca.

"M-merda... esqueci que eles são uma família que trabalha com essas com artefatos mágicos!"

Pensou, imaginando o que o homem conduzindo a carruagem diria.
Olhou o de relance, o homem parecia não ter ouvido, e se ouviu, não prestou atenção, mas com certeza ainda estava em dúvida sobre Zelgle.

Já sua esposa o fitava de maneira duvidosa.

-Você não é humamo, é?

Interrogou ela.

-Como?

Zelgle rapidamente entendeu o que ela quis dizer, mas se não se fizesse de desentendido, poderia piorar muito sua situação.

-Eu já ouvi sobre várias raças de     não humanos que podem fazer coisas parecidas, como regenerar partes do corpo, até membros inteiros, embora nunca tivesse ouvido sobre alguma que pegasse fogo no processo...

-Eu sou humano, aquilo foi só-

-Não espera que eu acredite nisso, certo?

Ela interrompeu o rapaz, seu olhar cético não permitiu que Zelgle continuasse.
Simplesmente seguiram viagem.
Ninguém disse nada até estarem perto da cidade.

-Estamos chegando, pessoal!

Gritou o condutor da carruagem, e pai das crianças, que acordaram com o balançar enjoativo do transporte.

Já dava para ver o muro da cidade, feito de pedra, com torres de vigilância em todas as extremidades.
Era ligado à uma montanha na parte oeste, deixando aquela parte do muro parecendo extremamente robusta de acordo com a montanha.

Passaram pelo portão em forma de arco, isentos da taxa de entrada, pelo fato daquela carruagem ser de um mercador.
Bastava o homem mostrar seu passe adornado com prata e um símbolo vermelho no meio e estava livre para seguir caminho. Um passe de mágica.

Zelgle diria que aquela cidade era tão feia quanto Nirrat, mas não conseguia ter certeza.
As casas cinzentas e envelhecidas pareciam ter sido construídas a muito tempo, as ruas tinham protuberâncias grotescas, o que dificultava muito no andar da carruagem, além de vários poços com água, que mais pareciam miniaturas de lagoas.
Foram até o local onde a mercadoria deveria ser entregue, era uma loja de artefatos mágicos.

Desceram da carruagem, e pegaram pequenos caixotes de madeira que estavam no fundo da carruagem

-Aqui, me ajude com estes.

-Sim, pai!

Disse o jovem garoto enquanto esticava os braços para o pai lhe entregar a caixa.
Quase caiu quando tentou segurar o pesado objeto, esforçou-se, mas no fim, tropeçou em uma pedra e foi em direção ao chão, jogando a caixa para longe.
A mãe do garoto aparou sua queda, e por sorte, muita sorte, Zelgle conseguiu apanhar a caixa antes que ela se espatifa-se no chão.
Segurou o objeto com apenas uma das mãos, a esquerda, que estava livre.
Ao seu ver, a caixa era tão leve quanto uma pena, mas para uma criança aquilo realmente deveria ser bem pesado.

-Deixe que eu ajudo vocês...

-Não, está tudo bem, não o pagamos para isso...

-Nesse caso, posso pedir um favor extra mais tarde?

Disse enquanto colocava o machado ao lado da carruagem, e pegava mais duas caixas, com facilidade.

-Bem, claro, se não for nada impossível.

Terminou o mercador sorrindo de admiração ao ver quão forte era Zelgle.

"Pelo visto vamos terminar rápido hoje..."

Pensou ele, animado.

Levaram a mercadoria até a porta de entrada, e foram atendidos por um senhor baixinho, com uma roupa longa de cor cinza e um chapéu pontudo, uma insinuação de mago ou eles realmente se vestiam de tal forma?
Se questionou Zelgle nos próprios pensamentos.

—Oh, vejo que vocês chegaram cedo hoje...

Comentou enquanto passava a mão na longa barba branca e abria a porta totalmente para que os marcadores pudessem passar.

—É mais ou menos... fomos obrigados a vir pelo vale do Diabo.

Disse o mercador, passando a mão na nuca e dando uma risadinha cínica.

O velinho franziu o cenho.

—Louis, quantas vezes eu já disse que você jamais deve vir por aquele caminho...

—Ah, vamos... nós estávamos muito atrasado, eu ap-

—Você nada!

Bradou o senhor, furioso.

—Eu espero que não tenha que repetir isso, Louis, não quero perder mais um amigo e parceiro de negócios por conta daquele lugar!

—Por favor, eu até contratei um aventureiro, não corriamos perigo algum...

Apontou para Zelgle, que não mudou de expressão, apenas inclinou a cabeça para trás de leve.

O velho olhou em sua direção, com um olhar leve de desprezo.

—Um rank prata, é? Besteira... estou te avisando, espero que seja a última vez, Louis!

Parou para respirar por um momento, e então apontou para um canto vazio na parede.

—Coloquem a mercadoria ali, por favor.

Descarregaram os caixotes, dez no total, todas contendo objetos fascinantes, que eram revelados quando o senhorzinho abria as caixas e os arranjava nas prateleiras.
Haviam desde varinhas à pedras, pós e outras coisas coloridas.
Mas apenas uma delas chamou a atenção de a Zelgle.

-O que é isso?

Perguntou, apontando com o dedo indicador para um recipiente de vidro cilíndrico.
No interior do recipiente, alguma coisa emanava um forte brilho vermelho, não tinha um forma concreta, estava sempre em estado transitório, parecia um gás, e de repente, um líquido. Esquisito. Concluiu.

-Isso é uma essência das chamas.

Respondeu o garoto, filho do mercador.

-Uma o que?

-Uma e- espera, você é um aventureiro e não sabe o que é isso?

"Não. Eu deveria?"

-Bom, basicamente isso ai é uma fonte de energia do elemento fogo.

A expressão de Zelgle não mudou, mas pelo tempo que levou olhando para o nada, qualquer um poderia concluir que ele não havia entendido a teoria por trás daquilo.

O garoto soltou um suspiro e coçou  a nuca.

-Olha, é basicamente como se nós retirassemos o calor do fogo e déssemos uma forma à isso.

"Forma? Mas essa coisa é uma metamorfose bizarra."

-Simplificando, é a essência de algo, como o nome diz, no caso do fogo, é o calor.

-Entendo. E pra que serve isso?

-Isso pode ser usado em encantamentos. É um item muito precioso.

Concluiu o garoto.
A mãe passou a mão em sua cabeça, orgulhosa e o pai também tinha um grande sorriso no rosto.

-Tão jovem, mas tão esperto. Fico muito feliz em ter um filho como você.

Lançou para o filho um olhar de apreço total.
Junto a ele, o senhor que aparentava ser o dono da loja também o olhava com um ar de admiração.

-É sempre ótimo ver alguém tão jovem e tão sábio. A maioria dos mais jovens, não sabe nem o que é uma pedra mágica, em um mundo onde temos a magia como uma de nossas bases. Um absurdo.

Enquanto dizia isso, olhou para Zelgle com uma expressão de desaprovação.
O que poderia fazer? Nunca havia tido contato com magia na vida, de repente, deveria saber tudo sobre tal?
Mas era fato que já estava acostumado com aquele olhar, o olhar de desprezo e decepção de alguém, na verdade, o do velhinho não era nada se comparado aos de sua vida anterior, que era visto como um inseto. Bem, era sinal que estava evoluindo, deveria continuar?
Se perguntou.

Depois de finalmente terminarem o serviço, voltaram para a carruagem e fizeram o mesmo caminho de volta, sem mudanças, mas diferente da outra vez, nenhum empecilho apareceu no caminho, no final das contas, foi uma viajem tranquila, tendo seu único imprevisto sendo resolvido de forma enérgica por Zelgle.
Provavelmente já havia se passado do meio dia quando puderam ver o alto muro de Nirrat.

                                 ***

Kiere estava presa a muito tempo, não fazia ideia de quantas horas, mas eram muitas, com certeza.
O efeito do tranquilizante já havia passado, e o que aquele maldito homem tinha dito anteriormente era verdade, sentiu uma dor terrível quando seus músculos voltaram ao normal.
Todo o corpo doía, todo.
O local onde a flecha havia a atingido, no joelho, estava em vermelho vivo, além disso, suas costas estavam destruídas, ou no mínimo, era como se sentia, não sabia o que a havia lhe atingido ali, e nem queria , apenas desejou sair daquela situação horrenda, por um momento, até a morte, que tanto vilanizara, a pareceu um bom alívio. Era terrível.

Podia ouvir vozes vindo do lado de fora da cela, através do corredor, mas não conseguia realmente entender a conversa, nem tentava, na verdade, estava muito preocupada com a dor para fazê-lo.

Enquanto isso, seus sequestradores estavam conversando na área de entrada.

-Conseguimos ótimos contatos nos últimos dias...

Disse um deles, encostado na parede.

-Com certeza, mas podemos pegar uma oferta ainda melhor, tenho certeza.

-Bem, ela é uma meio humana, qualquer um daqueles ricos sujos pagariam os olhos da cara por ela.

A perversa conversa fluía basicamente das interpretações de cada membro do grupo de mercenários sobre o valor de Kiere, falavam como se ela fosse um objeto.

-Eu ouvi dizer que há uma meio humana sendo procurada pela família Valenka, e a descrição é incrivelmente parecida para ser mera coincidência...

Disse um dos homens, sendo quase o mais jovem entre eles.

-Oh, isse é muito interessante...

Disse o que estava sentado em uma cadeira, com os pés estendidos sobre a mesa diante dele.
Era o lider do grupo, que havia perseguido Kiere durante a noite anterior.

-Se uma das famílias que dominam o mercado negro está atrás dela, poderemos fazer uma fortuna em cima disso!

Constatou com um risinho perverso nos lábios.

-Faça contato com eles, vamos descobrir se ela realmente possui algum valor para eles.
Por falar nisso, nós não alimentamos ela ainda...

Disse despreocupado, apesar de ter dito a Kiere que a trataria bem, quanta irônia.

-Borg, vá lá dar comida pros prisioneiros. Todos eles.

Mandou um dos homens para fazer a tarefa.
Reclamou até o fim enquanto alimentava os prisioneiros amaldiçoados, maioria deles eram mulheres, quase mortas pelas terríveis condições, algumas, eram simplesmente usadas como brinquedos por não terem um grande valor como escravo.

Por fim, chegou a vez de Kiere.
Ele entrou na cela, e viu a meio humana estendida no chão, ofegante devido à dor.

-Ai esta você sua maldita...

Largou a tigela com comida no chão, e se ajoelhou do lado.

-Você matou meu irmão sua vadia...

Balbuciou encarando Kiere com ódio nos olhos.

Kiere estava quase desmaiando devido a dor, mas tentou prestar atenção no homem.
Dissera algo sobre um "irmão", só conseguia imaginar que fosse o arqueiro que havia causado o ferimento em seu joelho.
Malditos hipócritas, xingou em seus pensamentos.

Ele foi até a garota que estava estirada no chão, e com uma faca afiada, cortou as cordas para que ela conseguisse comer.

—É melhor não tentar nenhuma gracinha, fedelha.

Saiu de cima da garota e foi em direção a porta de costas, encarando Kiere.

-Só espere sua maldita... eu vou dar um jeito de fazê-la sofrer pra compensar por isso...

Fazê-la sofrer? Capturá-la e tratá-la como um animal já não era "fazê-la sofrer" o suficiente?

O homem saiu da cela batendo a porta, fazendo um estrondo pesado repercutir pela minúscula sala.
Após sua saída, Kiere levantou vagarosamente, desnorteada, quase deitou-se novamente devido a dor que escalou sua coluna, mas resisiu e conseguiu se sentar.
Estava faminta, e embora quisesse matar cada um daqueles homens e cuspir sobre seus cadáveres, não hesitou em tentar comer a comida imunda.
Na pequena tigela de metal que homem deixou, havia um líquido amarelo com alguns cubinhos boiando na superfície, sopa.
Não tentou pensar do que era feito aquilo, apenas pegou a colher praticamente imersa no conteúdo do recipiente e usou para levar a comida a boca.
De primeira, quase vomitou, mas não tinha escolha, se obrigou a tomar mais três colheres da rançosa sopa antes de largar a colher e jogar a tigela para longe.

Encostou as costas na parede dura e gelada da cela.
Queria ir embora.
Mais que tudo no mundo, queria poder escapar dali, matar aqueles malditos e fugir. Era tudo que queria...
Ou que alguém viesse ao seu resgate.
Esperanças baixas.
Não tinha alguém que realmente faria isso por si. De quem poderia esperar algo assim?
Zelgle?
Aquele que conhecera a um dia atrás e parecia mais uma pedra que um ser humano? Que piada.
Nem tentou imaginar essa possibilidade, de tão absurda que era.
Encolheu o corpo, envolvendo as pernas com os braços e deixando a cabeça sobre os joelhos, ali, baixinho, começou a chorar.
Não queria que ninguém a visse assim, mas também queria que todos no mundo a ajudassem.
As lágrimas caíram sobre o chão de pedra imundo, lágrimas tão tristes quanto sua vida inteira.

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