16.
"And I don't feel like I am strong enough..."
Fabrízio e Raquel
Fabrízio cambaleou para trás, arregalando os olhos que, naquele momento, brilhavam num tom de azul royal. O ar fugiu de seus pulmões e ele permaneceu um bom tempo imóvel.
Raquel levou as mãos a boca e começou a tremer.
- Meu Deus, me desculpe! - ela exclamou, correndo até ele. Tentou tocá-lo, mas Fabrízio desvencilhou-se, perplexo. - Eu perdi o controle, eu...
- Você pode me explicar por que fez isso? - Fabrízio pediu, irritado.
Raquel deixou uma lágrima solitária rolar pelo rosto.
- Me desculpe, eu perdi o controle. Já faz tanto tempo, eu só... eu não... me desculpe! - ela nem sabia o que dizer, gesticulando com exagero, visivelmente constrangida. - Eu não devia ter feito isso!
- Ah, você acha? - ele berrou, irônico.
Fabrízio olhava para Raquel incrédulo; o que diabos acabara de acontecer? Já não bastava o pé na bunda que levara de Luíza, agora ele era rejeitado pelo grande amor da sua vida!?
Definitivamente, as coisas não andavam muito boas para o baixista...
E, de repente, sem qualquer aviso prévio, Raquel parou de pedir desculpas feito uma idiota e ficou séria, fitando Fabrízio com intensidade. Os seus olhos verdes faiscavam de um jeito que ele jamais havia visto.
- O que foi? - ele se viu perguntando, preocupado com aquela mudança repentina de estado de espírito.
- O que foi? Você ainda me pergunta o que foi? - Raquel cuspiu as palavras, franzindo o cenho de um modo assustador.
Pronto, baixou a TPM, tô fodido, o moreno pensou, cruzando os braços na defensiva em frente ao corpo.
- Quem você pensa que é para tratar as pessoas desse jeito, eim? E a Luíza, já se esqueceu dela? - Raquel parecia possuída pelo Lúcifer em pessoa, os olhos pegando fogo de raiva. Até a fala baixa e rápida parecia a de outra pessoa. Fabrízio deu alguns passos para trás, preparando-se para correr uma maratona a qualquer sinal de giros de 360 graus com a cabeça. - Acha que pode sair por aí beijando qualquer uma e não sofrer as consequências? Espera só até eu contar para a Luíza sobre isso, seu imbecil!
Fabrízio não podia afirmar com certeza, mas alguma coisa bem no fundo do seu âmago lhe dizia que Raquel estava blefando. Mas a necessidade de fumar um cigarro estava tirando toda a sua concentração, então ele deixou essa teoria de lado para apalpar os bolsos em busca do tabaco e da seda. E lá estavam eles, imaculados, pedindo para serem fumados.
Mas eles não podiam ser fumados enquanto Raquel não parasse de gritar, e isso só aconteceria se Fabrízio contasse a verdade.
O baixista respirou fundo e soltou o ar devagar, como sua professora de coral o ensinara. Não pretendia contar a "novidade" tão cedo, mas Raquel não lhe dava outra alternativa.
- ...além do mais, ela sempre foi uma boa namorada para você, e eu...
- Ela terminou comigo hoje de manhã antes das provas, Raquel - ele soltou de uma vez só.
- ...sou só sua ex-namorada de infância, não tem parâmetro...
- Raquel, você me ouviu? Nós terminamos.
- ...será que você não... o quê?
Raquel inclinou a cabeça para o lado, pega de surpresa. Uma surpresa um tanto quanto falsa, de acordo com os poucos neurônios de Fabrízio que não estavam concentrados nos cigarros em seu bolso.
- Não se faça de desentendida, Raquel. Foi isso mesmo que você ouviu - não aguentando mais esperar, o baixista tirou a seda e o tabaco dos bolsos da calça e começou a bolar o seu cigarro, trêmulo. - Nós terminamos. Acabou. Fim. Agora, se por estar traindo eu recebi um tapa no rosto, sugiro que você comece a pedir desculpas com mais vontade.
XXX
Ruiva e moreno estavam sentados nos fundos da Starbucks, fumando cigarros e olhando para as estrelas. Não haviam falando nada desde que Fabrízio revelara a Raquel o que ela já sabia. Ele não conseguiria abrir a boca enquanto não acabasse de reabastecer os pulmões com um pouquinho de câncer, e ela não queria ter que se explicar, então permanecia muda.
Sabe-se lá quanto tempo os dois passaram ali, com as costas na mureta de tijolos; o fato é que pareceu uma eternidade.
Fabrízio mirou em uma bicicleta que passava e jogou a bituca do cigarro, acertando o hidrante ao invés.
- Você quer conversar sobre o que acabou de acontecer? - ele finalmente conseguiu formular uma frase coerente, orgulhoso de sua performance.
- Não exatamente. E você? - Raquel virou-se para ele.
- Não exatamente.
- Suspeitei desde o princípio - a ruiva comentou, voltando a apoiar a cabeça no muro. - Sobre o que quer conversar, então?
- Bom, meu plano inicial era te contar sobre o pé na bunda que levei de Luíza e só depois agarrá-la, mas as coisas saíram um pouco diferentes do planejado - Fabrízio deu de ombros.
Raquel soltou uma risadinha anasalada e abaixou a cabeça. Fabrízio sabia que ela estava vermelha, porque sempre fazia de tudo para esconder a sua face ruborizada. Aquela era uma das coisas que ele achava mais fofo na ex-namorada.
São pensamentos como esses que me envergonham de ter nascido com culhões, ele pensou, mordendo o lábio com força.
- Mas me diga, como você se sente em relação ao pé na bunda? - Raquel continuou, tentando manter uma conversa racional.
- Tirando o fato de que agora eu vou finalmente poder assumir um relacionamento sério com a minha mão direita, eu estou me sentindo... - Fabrízio parou para pensar, mas, por mais que o fizesse, não conseguia tirar da ponta da língua a palavra que o assombrava. - Normal.
- Não é isso que as pessoas costumam se sentir quando terminam um namoro - Raquel comentou, só por comentar.
- As pessoas também não costumam namorar umas as outras só para tentar esquecer uma terceira. Ah não, falha minha, isso acontece sempre! - Fabrízio disparou, sarcástico.
Mais uma vez, Raquel abaixou o rosto, e mais uma vez, Fabrízio ficou com vontade de apertar as bochechas dela.
- Quem você estava tentando esquecer? - ela perguntou, ainda sem olhar para ele.
- Essa pergunta é séria, Quel? Você tem quantos anos mesmo? 8? - Fabrízio brincou, empurrando Raquel pelos ombros. - Quem foi minha única namorada além da Luíza?
- Não precisa vir com todo o sarcasmo para cima de mim, ok? Eu não tenho 8 anos... eu só não sou prepotente ao ponto de me apontar como principal suspeita - a ruiva revirou os olhos e roubou mais um cigarro da cartilha de Fabrízio.
O moreno riu de lado, acendendo o isqueiro na frente do cigarro dela. Enquanto ela tragava profundamente para acendê-lo, os dois se olharam com intensidade através da chama.
- Eu nunca esqueci você, Quel - Fabrízio admitiu, fechando o Zippo com um estalo quando percebeu que o cigarro já estava aceso.
Raquel soltou a fumaça presa em seus pulmões e tossiu um pouco. Passado o acesso de tosse, ela voltou a encarar os tênis.
- Você não vai dizer nada? Nem um "obrigada, mas eu não posso dizer o mesmo"? - Fabrízio insistiu.
Raquel suspirou. Se eles estavam brincando do jogo da sinceridade, não era ela que iria quebrar as regras. Afinal de contas, omitir não era o mesmo que mentir.
- Eu também nunca te esqueci, Fabs.
Fabrízio sorriu abobalhado ao ouvir o antigo apelido; quem era aquela garota, e quais eram os seus poderes psíquicos para dominá-lo com a simples menção de um apelido idiota?
- Bom, há de se convir que a minha habilidade de arrotar o hino da França é bem inesquecível mesmo - ele brincou, querendo quebrar aquele momento tenso.
Raquel riu gostoso, e Fabrízio aproveitou para acender outro cigarro.
- Eu lembro como se fosse ontem... - Raquel suspirou, nostálgica. - Nós dois na Augusta, esperando na fila para entrar no cinema. Eu toda perfumada, de vestido e cabelo alisado, e você de All Star cano médio, meias na metade das canelas, o cabelo pintado de vermelho e arrotando o hino da França.
- Bons tempos... - Fabrízio deixou os ombros caírem.
- Eu realmente não sei como os meus pais me deixaram sair de casa com você - Raquel admitiu, entre as risadas dos dois.
Fabrízio pegou as mãos da ex-namorada entre as suas e as apertou. Raquel subiu os seus olhos até encontrar os dele. Parecia prestes a chorar, e Fabrízio não conseguia compreender o porquê. Tinha que ter algum outro motivo além das lembranças.
- Nós podemos tentar de novo - ele sugeriu, sério e intenso. - Não há nada nos impedindo agora! Nós podemos ser aquele casal de novo. É só você querer.
Raquel ficou muda, incapaz de abrir a boca.
- A Luíza foi muito especial para mim, mas nunca passou de uma amiga. Eu nunca senti com ela o que eu fui capaz de sentir com você; ela foi só uma ótima amiga, a única que foi capaz de me distrair de você. Quando você voltou, eu não soube o que fazer; eu não podia simplesmente descartá-la! Mas agora ela terminou comigo! Não acha que isso talvez seja um sinal? Olha só - ele então soltou uma das mãos de Raquel e puxou o piercing do lábio -, isso aqui estava perdido nas profundezas do meu quarto há muito tempo, mas foi só você voltar que ele ressurgiu! Tem alguém querendo nos dizer algo, Raquel, e eu sei disso!
XXX
Raquel sentiu o seu peito inflamar de felicidade. Nunca, em toda a sua vida, sentira-se tão maravilhosamente bem.
Vamos lá, Raquel! É só aceitar! Você merece ser feliz de novo!
Os seus olhos se encheram de lágrimas. Por que ela não podia entregar-se? Por que? Era só... dizer sim!
Ilusão. É só uma ilusão. Você não pode realmente pensar que vocês vão voltar e tudo vai ser como antes!
- O que me diz, Quel? Vamos tentar de novo? - Fabrízio insistiu, colocando parte do cabelo rebelde da ruiva atrás da orelha.
- Fabrízio, eu... - ela respirou fundo mais uma vez. A coragem precisava vir. Ela queria desesperadamente que a coragem viesse. Mas ela não veio. - Eu não posso.
Ela pôde ver muito bem o lampejo de desapontamento passar pelos olhos de Fabrízio. Ele soltou as mãos da ex-namorada e fitou o chão.
Aproveitando a deixa, Raquel vestiu a sua máscara de indiferença e levantou-se.
- Eu acho que você entendeu tudo errado. Nós - ela apontou para ele e depois para ela - não daríamos certo novamente. Não vamos estragar as lembranças maravilhosas que temos um do outro. Eu só faria mal a você.
Fabrízio não disse nada, ainda sem olhar para ela.
- Eu vou nessa. Obrigada - "por fazer a minha vida valer a pena" - pelos cigarros.
XXX
Fabrízio esperou Raquel ir embora para finalmente soltar o nó na garganta. Pelo menos aquela dignidade ele ainda tinha. Nunca chorar na frente da ex-namorada era uma das regras do Manual do Homem, e ele realmente levava o manual muito a sério.
O baixista deixou uma ou duas lágrimas caírem e as secou com força com a manga da blusa; parecia um garotinho birrento chorando por não ter conseguido o carrinho motorizado de Natal.
Levantou-se e bateu a poeira das calças. Algumas meninas muito bem produzidas passaram por ele e cochicharam entre si, mas Fabrízio só conseguiu pegar o começo. "Coitado do garoto, está chorando..."
Imbecis, ele pensou, afastando-se o mais rápido que pôde dali. Na verdade, queria apagar completamente da mente aquele dia. Maldito dia em que saiu de casa!
Esperou por exatos 7 minutos o ônibus no ponto. Fabrízio não gostava de pegar o ônibus que chegou primeiro, porque ele estava sempre lotado de turistas que queriam conhecer a Paulista sem ter de andar, mas ele não tinha outra opção. Àquela hora da noite, ou era aquela linha ou era um táxi.
O ônibus, como ele suspeitou, estava lotado. Fabrízio passou o seu bilhete de estudante no sensor e foi direto para os fundos, esbarrando em alguns turistas chineses.
Ele não encontrou lugares completamente vazios no ônibus sanfona, então acabou sentando-se ao lado de uma garota que falava animada ao celular. Ele não sabia em qual língua ela falava, e nem queria saber.
O baixista ligou o iPod e relaxou. Nem havia percebido o quão tenso estava.
Fechou e olhos e tentou não pensar na humilhação que havia acabado de passar. Eco & The Bunnymen talvez não fosse a melhor trilha sonora, mas ele estava com preguiça de caçar o aparelho dentro da mochila.
"So cruelly you kissed me...
Your lips a magic world!"
Fabrízio tirou os fones de ouvido irritado e os enfiou no bolso do blusão. A garota do celular agora olhava distraída pela janela. Mas mal o ônibus fez uma curva, ela se virou para o lado e sorriu.
- Por favor, você sabe me dizer se o museu do MASP ainda está aberto?
Fabrízio fez esforço para não revirar os olhos.
- Acredito que não - ele respondeu, tentando ao máximo ser educado.
- Ah, que ruim - ela exclamou, o sotaque espanhol saltando-lhe pelos lábios.
Fabrízio achou graça na animação da menina em visitar um museu idiota e sorriu. Ela tomou aquilo como um incentivo para continuar, e foi o que fez.
- Meu nome é Paula, eu sou espanhola - ela estendeu a mão, e Fabrízio a apertou.
- Meu nome é Fabrízio.
- Muito prazer, Fabrízio - Paula sorriu, apertando os olhos castanhos em sua direção. - Você andou chorando?
O baixista arregalou os olhos. Aquele não era o tipo de conversa que ele estava acostumado a levar nos ônibus. As velhinhas com quem conversava nunca estavam interessadas em nada além do tempo.
- Não - ele respondeu no mesmo instante.
- Os seus olhos estão vermelhos... - a espanhola deu de ombros. - Desde que eu cheguei aqui, andei chorando muito... já sou especialista em distinguir olhos vermelhos de choro e olhos vermelhos de maconha.
Fabrízio remexeu-se desconfortável.
- Por que você... hm... andou chorando?
- Ah, saudades de casa, problemas de adaptação, problemas em entender esse maldito português... - ela olhou de relance para Fabrízio. - Vocês paulistas não são o povo mais pacientes da face da terra, sabe...
- É, estou ciente disso - Fabrízio deu de ombros. - Mas os espanhóis também não são o povo mais educado da face da terra.
- Eu sou bem educada! - Paula esbravejou, ofendida.
- Tenho certeza que é.
A espanhola ficou quieta por um instante, sentindo o sacolejar do ônibus. Mas ela era daquele tipo de garota que não era capaz de calar a boca um só instante, por isso continuou a tagarelar depois de algum tempo.
- Me diga, Fabrízio, por que você andou chorando?
Fabrízio até tomou um susto ao perceber que havia esquecido-se do motivo que o fizera chorar.
- Mulheres...
Paula riu.
- Nós somos péssimas, não é mesmo? - a espanhola perguntou e Fabrízio concordou com a cabeça. - O que aconteceu?
O baixista deixou escapar uma risadinha. Como se ele fosse contar para uma estranha a sua história de vida! Só uma espanhola mesmo para achar que...
Então, quando se ele deu conta, estava contando tudo o que havia acontecido, desde a viagem de Raquel para o México até o beijo de minutos atrás. Ao final, estava sem fôlego e sentindo-se mais leve.
O ônibus deu um tranco e avançou o farol, revelando o grande museu do MASP, vermelho e imponente.
- Eu tenho uma ótima análise sobre o que seu caso, Fabrízio - Paula comentou, juntando as suas tralhas de turista contra o corpo. - Mas não tenho tempo para explicá-la.
- Então só me diga o que fazer! - o baixista praticamente berrou, atraindo a atenção dos outros passageiros. - Por favor. Eu estou desesperado - ele abaixou a voz, olhando suplicante para a estranha do ônibus.
De repente, Fabrízio foi jogado para a frente e voltou com a parada do ônibus. Paula levantou-se, passou por ele e, enquanto esperava as outras pessoas andarem na fila em sua frente, disse.
- Não deixe esse episódio te abalar, Fabrízio! Se é ela quem você quer, é por ela que você tem que lutar. É só não desistir na primeira dificuldade. A menina está confusa, só isso. Vai com calma, peça desculpas, faça ela se sentir segura... mostre para ela que você é o que ela sempre sonhou! - a espanhola sorriu, sendo empurrada pela fila de pessoas. - Prazer em te conhecer, Fabrízio!
- Prazer em te conhecer, Paula! - Fabrízio acenou de longe, observando-a desaparecer pelas escadas.
Ele encostou a testa no vidro e observou a estranha correr pela calçada para atravessar a rua e riu quando ela olhou para o lado errado da rua e quase foi atropelada.
Assim que o ônibus partiu, ele encostou a cabeça no encosto estofado e pensou nas palavras da espanhola.
Ele não iria desistir de Raquel tão fácil assim.
Não mesmo.
XXX
Raquel abriu a porta de casa sem se importar em não fazer barulho. Fechou-a atrás de si e sua mãe, que assistia TV na sala, virou-se para olhá-la. Tomou um susto ao perceber que a filha chorava torrencialmente.
Correu até ela e a abraçou. Raquel desabou nos braços da mãe e soluçou. O seu pai, ouvindo a movimentação no andar debaixo, desceu as escadas correndo, mas a sua mãe fez sinal para que ele voltasse e não deixasse o irmãozinho de Raquel descer e encher o saco.
A sra. Bandeira levou Raquel até o sofá e sentou-se com ela ali. Raquel chorava tanto que ela nem se atreveu a perguntar o que havia acontecido.
Depois de muito tempo, a ruiva se acalmou o suficiente para parar de soluçar, mas não de chorar.
Aproveitando a deixa, a sra. Bandeira perguntou, com todo o cuidado.
- O que foi que aconteceu, querida?
Raquel soluçou com um solavanco e chorou alto antes de responder.
- E-ele... e-e-ele me b-beijou...
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