I - Wendy Moira Ângela Darling
Londres, 1920
O frio típico do inverno londrino fez com que o movimento fosse intenso na Darling's Coffee, mas apenas Wendy e Tootles trabalhavam naquela tarde. Enquanto o rapaz servia as xícaras de café para os clientes impacientes por conta da demora, Wendy se afogava nas páginas de um livro de romance.
– Wendy! – Tootles bateu a mão sobre o balcão, a fazendo fechar o livro com pressa e encará-lo – Quantas vezes mais eu vou ter que te chamar? Olhe em volta, eu preciso de você!
– Desculpe – Wendy respondeu com a voz baixa, guardando o livro e colocando seu avental.
Mesmo contra a vontade, ajudou seu irmão a servir todas as mesas com um sorriso sutil nos lábios. De todos os seus irmãos, Miguel e Tootles eram os que ela se dava melhor.
Não que não se desse bem com os outros, mas João, por exemplo, se tornou um banqueiro soberbo que a julgava por ter vinte e oito anos e ainda ser solteira, trabalhar na cafeteria da família e morar com os pais.
O senhor e a senhora Darling já não tinham uma situação financeira tão boa quanto há dezesseis anos, quando Miguel, João e Wendy retornaram pela janela aberta com um saco de joias. Toda aquela fortuna foi se dissipando com os anos, e tudo o que restou àquela família foi a cafeteria no centro de Londres.
Conforme os anos passavam, os filhos – biológicos e adotivos – foram crescendo e seguindo suas vidas, construindo suas famílias e sequer se lembravam do que viveram no passado.
Com exceção de Wendy.
Não, Wendy também não se lembrava de todas as aventuras que viveu quando voou pela noite, virando à segunda à direita e seguindo reto até o amanhecer. Por alguma razão que ninguém saberia ou sequer poderia explicar, todos se esqueceram da Terra do Nunca.
O que Wendy se lembrava era de como acreditava que finalmente seria feliz com seu noivo Caledon Franklin, como esperava por seu "felizes para sempre". Até que veio a primeira Grande Guerra para rasgar as páginas do livro de sua vida.
Foi no ano de 1916 que, entre os mais de 19 mil soldados britânicos que foram mortos no primeiro dia da Batalha de Somme, ela deu adeus àquele que ela acreditava ser seu grande amor.
Desde então Wendy, que desde a infância sentia como se faltasse algo em sua vida, teve a certeza de que o "felizes para sempre" existia apenas nos livros. O mundo era cruel demais, muito diferente das aventuras e dos romances que lia. Decidiu então se contentar com aquele mundo irreal das páginas amareladas da biblioteca.
Mary Darling, sua mãe, sentia compaixão pela situação da filha, mas George Darling, seu pai, insistia que ela precisava superar e se casar. Wendy não o culpava por isso, sabia que ele era influenciado pela tia Millicent, que tentava casá-la desde os doze anos de idade. Nos últimos dois anos a pressão pelo casamento aumentou, o senhor Darling dizia que já havia dado tempo para superar o luto, mas Wendy sentia que a solidão fazia parte de si há pelo menos dezesseis anos.
– Wendy, por Deus, preste atenção!
Mais uma vez a voz de Tootles a tirou de seus devaneios. Assim que voltou os olhos para o bule em sua mão, viu todo o chá transbordando a xícara de uma cliente irritada. Wendy correu até o balcão e voltou com um pano, secando os respingos no vestido da senhora enquanto se desculpava pela bagunça. A mulher só se acalmou quando o rapaz disse que ela não precisaria pagar a conta.
Apesar do problema com a cliente, o restante da tarde foi corrido e Wendy conseguiu focar-se apenas no trabalho. Tootles ainda precisou chamar sua atenção algumas vezes, mas este era seu papel como gerente do lugar. De todos os irmãos, ele era o único que continuou na cafeteria por escolha própria.
Tootles se despediu da irmã uma hora antes da cafeteria fechar e praticamente implorou para que ela não fizesse mais nada de errado. Wendy assentiu e passou os minutos seguintes torcendo para que não entrasse nenhum cliente para que pudesse finalmente terminar de ler seu livro, mas faltando apenas três minutos para fechar, alguém decidiu interrompê-la.
– Boa tarde. Um café, por favor.
Wendy estava tão absorta em sua leitura que deu um pulo ao ouvir a voz grave do outro lado do balcão. Sequer havia ouvido o soar do sino acima da porta. Ergueu os olhos das páginas até o cliente e sentiu um arrepio subir por sua coluna ao encarar os olhos azuis que a observavam. Fechou o livro num rompante e se levantou, fazendo o rapaz se assustar também.
– Cla-claro – gaguejou e se apressou em servir o café.
– Obrigado – o rapaz agradeceu com um sorriso que não fazia jus à melancolia daqueles olhos.
Wendy o acompanhou com os olhos até que ele se sentasse em uma das mesas. Olhou o relógio e se deu conta de que já deveria ter fechado a cafeteria há alguns minutos. O rapaz colocou seu chapéu Panamá sobre a mesa, abriu um jornal e escondeu o rosto por entre as páginas, a impossibilitando de espiá-lo.
O rapaz tentava focar sua atenção nas manchetes do jornal, mas não conseguia se concentrar. Nem mesmo o café ele era capaz saborear. Por cima das páginas, lançava breves olhares para a moça atrás do balcão. Ela já parecia concentrada em sua leitura novamente, então ele decidiu deixar os modos de lado e olhá-la por mais tempo. Era como se ele a conhecesse praticamente a vida toda, a voz sutil e inocente o lembrava de uma voz que só existia em seu subconsciente. Ela desviou o olhar dos livros para ele e sorriu. E aquele sorriso ele tinha a certeza de que conhecia.
– Você não vai fechar isso aqui hoje não?!
Os dois se assustaram com o homem ruivo que já entrou reclamando pela porta, fazendo o sino tilintar alto pela cafeteria silenciosa. Ele se aproximou do balcão e abraçou Wendy. Era Miguel, seu irmão mais novo. Mesmo com o tom reclamão, ele sempre ostentava um sorriso no rosto. O rapaz voltou a se esconder atrás do jornal, se repreendendo mentalmente por estar interessado em uma mulher aparentemente casada.
– Eu já estou há um bom tempo te esperando lá fora, o papai mandou vir te buscar. Vamos! – Miguel continuou falando sem parar.
– Miguel... – ela sussurrou e apontou para o rapaz atrás do jornal – Temos cliente...
– Ah sim! Me desculpe! Não o vi aí! – Miguel ficou com as bochechas levemente rosadas, assim como na infância.
– Tudo bem – o rapaz respondeu ao dobrar o jornal e colocar o chapéu na cabeça – Eu já terminei aqui.
Wendy e Miguel acompanharam com o olhar quando o rapaz se levantou e seguiu até o balcão com a xícara em mãos. Ele evitava encará-los, mas ao tirar algumas moedas do bolso para pagá-la, a encarou mais uma vez. Sua mente gritava, implorava para que perguntasse seu nome, que matasse a curiosidade de uma vez por todas, mas ele já não era mais o garoto corajoso que foi um dia. Então ele apenas se despediu e virou as costas.
– Espere! – Wendy o chamou e Miguel revirou os olhos, estava ansioso para ir embora.
– Sim? – o rapaz se virou para ela mais uma vez.
– Vo-você gostou do café? – perguntou a única coisa que veio em sua mente naquele momento.
– Sim, estava muito bom – sorriu e se virou para a porta – Boa noite, senhora... – aguardou que ela respondesse seu nome.
– Senhorita – o corrigiu com um sorriso – Wendy Moira Ângela Darling. E o senhor é...?
– Pan – sorriu – Peter Pan.
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