Capítulo 2 | degustação
Rafaela tinha apenas uma certeza na vida: as aulas de física eram seu karma.
Eram dez da manhã quando, por alguns segundos — aqueles em que ela voltava para a realidade e percebia que estava na aula e que não havia prestado atenção em nada —, desejou sair correndo e não voltar para escola nunca mais.
Ela iria rodar. De forma alguma poderia passar naquela matéria desumana contando com as suas habilidades cerebrais. Seus neurônios não possuíam a capacidade de assimilar qualquer coisa que envolvesse números e fórmulas. Por isso, quando o sinal do fim da aula tocou, a vontade de ajoelhar e agradecer pela liberdade foi grande, mas a garota se contentou em ir para o intervalo. Sentou-se na mesa de sempre e pegou o jornal da escola que estava sobre ela, indo direto à última página conferir o horóscopo. Não tinha certeza se acreditava em signos mas, para garantir, sempre lia as previsões.
— E ai, Rafinha — A voz conhecida comprimentou, puxando uma cadeira e sentando ao seu lado — Qual a previsão do dia?
— Hum... — ela torceu a boca, olhando para Vinícius — Preciso ter mais calma ao tomar decisões importantes, sentimentos podem ficam aflorados e...a cor do dia é rosa. — Rafaela fez uma careta — Odeio rosa e não acredito em horóscopo.
Ouviu uma risada se aproximar e imediatamente a reconheceu, acompanhando a melhor amiga com o olhar.
— Você não odeia rosa, isso não faz sentido. Seu quarto foi rosa por toda a sua vida — lembrou Jaqueline, sentando-se à sua frente e a entregando um suco de laranja — Falando nisso, você vai hoje, né?
— O que uma coisa tem a ver com a outra?
— Nada — ela deu de ombros — Mas, você vai hoje, né? — perguntou mais uma vez e sorriu.
— Eu não vou a essa porcaria nem amarrada, Jaqueline — informou, irritada. Por Deus, Rafaela pensou, quantas velas precisaria segurar até que Jaqueline finalmente arrumasse um namorado (ou escolhesse ficar solteira para sempre, o que ela sinceramente achava melhor) para que ficasse livre de estar em todos aqueles encontros insuportáveis? — E eu ainda estou brava por ontem.
— Eu já pedi desculpas por ontem, era apenas uma brincadeira — A loira fez um biquinho — E você sabe que minha mãe nunca vai deixar eu sair com o Lucas sozinha.
— E nem deveria, ele provavelmente é um maluco igual a todos os outros.
— Amiga, por favor!
— Nem pensar — Rafaela cruzou os braços.
E assim, como a criança mimada que de fato era e em uma ultima tentativa de convencer a mais baixa, Jaqueline bufou e bateu com as duas mãos sobre mesa, erguendo seu corpo e ficando cara a cara com a amiga enquanto gritava que "ISSO É MUITO INJUSTO MINHA MÃE NUNCA VAI DEIXAR EU IR SOZINHA E VOCÊ SABE QUE SE VOCÊ FOR ELA DEIXA E VOCÊ SEMPRE FOI TÃO BOA PRA MIM E O LUCAS É UM GATO E VAI PAGAR UM PEIXE PRA GENTE RAFAELA!"
Assim, sem vírgula, sem pausa e fazendo Vinícius e Nícolas taparem o rosto, envergonhados com a gritaria.
— Tá maluca? Para de gritar! — exclamou Rafaela, empurrando seu corpo de volta à cadeira. Depois, apontou o dedo em sua direção — Você não merece, mas eu vou.
— Sair com esses caras tá te deixando maluquinha igual a eles, Jaqueline — observou Vinicius.
Mas ela não se importava. Satisfeita, a loira sorriu, soltando um gritinho de felicidade e tomando mais um gole do seu suco de laranja. Ignorando completamente a cena ridícula que havia acabado de presenciar, Nicolas balançou a cabeça negativamente e disse:
— Ainda não acredito que tu riscou o número do ponto de ônibus — Puxou o suco de Rafaela e tomou um longo gole — Eu tinha certeza que ia dar certo.
— Supera, Nicolas — ela colocou uma mecha de cabelo cacheado atrás da orelha e jogou o corpo no encosto da cadeira.
— Como assim? — Vinicius franziu a testa — Que número?
Como uma boa tagarela, Jaqueline ficou encarregada de explicar ao amigo tudo que havia acontecido no dia anterior e, chocando um total de zero pessoas, Vinicius não concordou com a ideia ridícula de Nícolas. Era por esse e outros motivos que o garoto sempre foi o mais sensato do grupo.
Veja bem, Rafaela era irritada, sem paciência e extremamente implicante; Jaqueline era exagerada, sem noção de limites e muito mimada; Nicolas fazia o que tinha vontade sem pensar nas consequências. Vinícius, por sua vez, era centrado, racional e muito empático. Seu único traço de personalidade questionável era tocar violão.
Além disso, eles eram os únicos do quarteto que concordavam com algo: relacionamentos são perda de tempo. E o garoto havia aprendido aquilo na prática.
— Acho que vocês deviam arrumar uma namorada pro Vini, isso sim — Rafaela brincou, meio risonha, fazendo ele a encarar sério.
Nicolas deu uma gargalhada e dois tapinhas no ombro do amigo.
— Se até a Rafa é a favor de um namoro, é porque a tua situação tá ficando séria, cara.
— Achei que a gente tava do mesmo lado, Rafinha — falou, fingindo tristeza e secando falsas lágrimas dos olhos. — Estou decepcionado.
— Eu tô brincando. — Ela deu uma risada fraca — Só queria mudar o foco um pouquinho, já que vocês só se preocupam com a minha vida amorosa — Rafaela virou-se para Nícolas — Né, surfista? Vive querendo arrumar um namorado pra mim, mas não consegue arrumar uma pra você.
Foi a vez de Jaqueline soltar uma gargalhada escandalosa. Ela cruzou as pernas e tomou mais um gole do seu suco.
— Precisa ter uns dez neurônios a menos pra aturar esse daí — comentou, dando uma piscadinha.
— E tu acha que só maluco te convida pra sair porquê?
Jaqueline abriu a boca, incrédula.
— Pelo menos eu pego alguém, diferente desses dois ai.
— E de novo o assunto se voltou contra mim — Rafaela revirou os olhos.
Vinicius colocou a mão no coração e jogou a cabeça para trás.
— Ai, essa doeu.
A loira deu uma risada e encarou Vinícius, com os olhos cerrado. Depois, ela encarou Rafaela, antes de voltar para o garoto mais uma vez.
— Que foi, maluca? — ele quis saber, vendo a expressão de dúvida surgir no rosto da melhor amiga.
— Eu só estava pensando... Tipo, vocês podiam namorar, né? — Ela apontou para os dois.
— Jaqueline, o que tem nesse suco, droga? — Rafaela questionou, dando uma risada.
— Só pode — foi Nícolas quem respondeu — Os dois são quase irmãos, eca! — ele disse, chamando atenção de Vinícius, que franziu os olhos em sua direção.— E não dá pra misturar as coisas entre a gente, lembra? Pode acabar com a nossa amizade.
— Concordo plenamente — disse Rafaela.
— Chatos. — Jaqueline revirou os olhos — Que pena que vocês não gostaram da ideia, vida que segue. — Ela deu de ombros — Enquanto vocês ficam aí, sem saber o que é felicidade de verdade, eu vou curtir muito meu date com o Lucas hoje.
Rafaela revirou os olhos pelo que parecia ser a milésima vez naquele dia, ao lembrar o que a esperava naquela noite.
Toda aquela palhaçada começou quando elas ainda estavam no quarto ano e Jaqueline conheceu Marcelinho. A loira não conseguiu resistir ao seu cabelo loiro enroladinho e os dois viveram uma paixão arrebatadora, que durou dois dias e cinco horas. Foi seu primeiro amor e, consequentemente, seu primeiro beijo. O problema era que, ao invés de se contentar, Jaqueline se tornou insaciável.
Quer dizer, não havia problema nenhum em beijar outros garotos, o problema era levar sua melhor amiga a esses encontros todas as vezes.
Tia Mari, a mãe de Jaqueline, não deixava a filha sair sozinha, a não ser que Rafaela estivesse presente. Então, enquanto ela achava que a filha estava comendo pizza com a melhor amiga, vendo filme com a melhor amiga, passeando na praia com a melhor amiga batendo palmas para o sol com a melhor amiga, ela estava, na verdade, comendo pizza com o Ricardo, vendo filme com o Joaquim, passeando na praia com o Rafael e batendo palmas para o sol com o Leonardo. Enquanto Rafaela aumentava a sua coleção de velas e planejava um incêndio a qualquer momento.
— Você vai assim? — Jaqueline perguntou, analisando-me de cima a baixo quando ela entrou no seu quarto.
Rafaela analisou a si mesma e concluiu que, sim, iria de moletom e calça jeans. Não estava tentando impressionar ninguém, afinal.
— Eu posso, pelo menos, usar uma roupa confortável para segurar a vela de hoje? — perguntou, colocando as mãos nos bolsos.
Ela deu de ombros e a segurou pela mão assim que uma buzina soou, correndo pela escada e, praticamente, a arrastando por ela.
Lucas usava uma blusa preta e uma calça que, levando em conta toda a sua cueca à mostra, não faria diferença se não a usasse. O garoto sorriu e Jaqueline correu para envolvê-lo com seus braços, enquanto ele abraçou o seu pescoço — já que era muito mais alto, fazendo Rafaela parecer ainda menor.
Durante todo o caminho, ela precisou aguentar as cantadas baratas e risadinhas exageradas, mesmo com a tentativa de abafar o som com os fones de ouvido. Urgh, pensou, realmente não servia para aquilo. Mas, apesar da sensação de quase morte constante, com uma coisa ela precisava concordar: o peixe à milanesa era maravilhoso.
— E você, Rafa? Não quis trazer seu namorado? — ouviu Lucas perguntar depois de algumas horas. Ali, a garota teve certeza que seus momentos de paz apreciando uma de suas comidas favoritas havia acabado.
Antes que pudesse responder, Jaqueline tomou a frente:
— Ela não tem namorado, é uma mulher moderna — ironizou, dando uma piscadinha para mim. Rafaela mordeu o lábio inferior e abaixou a cabeça. Não queria arrumar confusão, por isso decidiu que iria deixar aquela passar.
— Ah, Entendo — ele assentiu — Lésbica, né?
— Hum... Não — respondeu, a voz trêmula, revelando que a irritação começava a surgir. — E, mesmo se fosse, vê algum problema nisso?
Lucas imediatamente negou com a cabeça.
— Claro que não — falou, colocando o braço sobre o ombro da minha amiga. — Mas eu ficaria enciumado em te ver perto demais do meu docinho.
Jaque sorriu boba, ao mesmo tempo que a mais baixa fez uma careta.
— Não sei se você sabe — Rafaela começou, ajeitando a postura — mas ser lésbica não significa dar em cima de todas as mulheres que existem — explicou e um sorriso amarelo surgiu nos lábios.
— Lá vem a defensora dos fracos e oprimidos — Jaqueline suspirou — Amiga, hoje não, tá?
Rafaela sentiu o sangue ferver. Não podia acreditar que sua melhor amiga havia acabado de bancar a esnobe para cima dela. Ela, que ia a milhões de encontros, mesmo que odiasse cada momento, e que encobria todos os seus namoros. Ela, que poderia estar maratonando seus filmes favoritos na Netflix, mas que estava ali, a ajudando a ter um encontro com um cara insuportável.
— Você é uma mal-agradecida — Cuspiu as palavras, o rosto ficando vermelho. Levantou-se da mesa com força, fazendo um barulho alto.
— Aonde você vai? — Com a voz mais baixa, a loira perguntou. Toda a sua pose havia sumido, dando lugar a um semblante preocupado.
— Vou embora.
Os passos pesados faziam barulho no piso do restaurante à beira-mar. Ao abrir a porta com força, sentiu o choque do vento gelado atravessar seu corpo, fazendo Rafaela abraçar a si mesmo como reflexo. Respirou fundo e atravessou a rua, parando de frente para o mar. Sentou-se em um dos bancos de madeira que ficava posicionado entre duas árvores grandes e soltou um suspiro pesado. Não tinha certeza o que havia a deixado mais irritada. Se era com aquele babaca falando merda, ou a sua melhor amiga que agiu de forma ridícula para agradar um homem sem noção.
Passou as mãos pelo rosto e jogou as costas sobre o encosto do banco, soltando um grunhido agoniado. Encarando a imensidão azul escuro, ela sentiu o celular tremer no bolso. Sem vontade e torcendo para que não fosse Jaqueline, ela desbloqueou o telefone, clicando na nova mensagem que havia recebido.
[20h35]
Número Desconhecido: Adoro desafios ;)
Rafaela franziu a testa, confusa.
[20h35]
Rafaela: Acho que você errou o número.
[20h36]
Número Desconhecido: Tenho certeza que não, marrenta.
[20h36]
Rafaela: Quem é?
[20h37]
Número Desconhecido: O cara que vai te fazer mudar de ideia.
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