02| Preocupações
O JANTAR naquela casa era mais cedo do que Caehlyn imaginava, o sol sequer havia se posto e eles já estavam sentados à mesa, comendo. Somente naquele momento ela conheceu o resto das pessoas que vivia consigo e descobriu até mesmo que tinha uma irmã mais velha chamada Elora, ela se parecia incrivelmente com aquele que seria seu pai, os cabelos de ambos eram de um castanho escuro, contrastando com os olhos dourados. E ao que parecia, seus cabelos loiros ela havia herdado de sua mãe.
Apenas uma única coisa se fazia diferente nela e ninguém naquela casa sabia explicar. Os olhos vermelhos. Aparentemente, eles haviam concluído que era uma característica de nascença.
Um prato com algum tipo de sopa foi posto à sua frente por um dos servos, ao sentir o cheiro seu estômago instantaneamente roncou, mal esperou para pegar a colher e levá-la até o caldo. Nem mesmo percebeu sua mãe levando a mão até a mesma colher a fim de ajudá-la.
— Temos uma mocinha independente aqui. – Comentou Vívia, com um sorriso.
— Eu consigo comer sozinha.
— Claro que consegue. Minha menininha está crescendo.
Do outro lado da mesa, Elora soltou uma gargalhada e provocou:
— Não consegue não, antes de ontem ela sujou toda a roupa e ainda ficou babando.
Antes que pudesse sequer raciocinar, a boca de Caehlyn se mexeu sozinha, em um impulso, como se sentisse gravemente atacada e sentisse a necessidade de se defender.
— Eu não babei! – Gritou, parecendo mais infantil do que desejava.
— Babou sim. Babona.
— Paraaaaaa.
Internamente, Caehlyn se condenava por aquela atitude tão impulsiva, mas naquele momento havia perdido completamente sua racionalidade, e ao que parecia aquele corpo em que se encontrava a afetava mais do que gostaria de admitir. Talvez aquilo justificasse a falta de suas habilidades, um corpo tão jovem e imaturo não suportaria tanta mana.
— Elora, por favor, não provoque sua irmã. – Repreendeu Vívia.
Observando o ambiente ao redor, Calon deixou uma risada contida escapar, demonstrando que seu bom humor não fora afetado por aquela pequena intriga.
— Treze anos e ainda age como uma criança provocando sua irmã.
— Ora, papai, semana que vem já não estarei mais aqui. Não poderei provocar a Airyn estando na Academia de Arendor. – Se defendeu Elora.
— E prefere que a lembrança que ela tenha de você seja suas provocações?
— E o que mais se faz entre irmãs?
Caehlyn apenas observava aquela família estranha. A dinâmica da relação entre eles era completamente diferente do que ela já havia vivido tantas vezes. Nunca tinha visto tanta união e compreensão entre os membros de uma mesma família, e ao mesmo tempo em que aquilo a deixava desconfortável, sentia-se estranhamente cativada. Embora suas experiências da vida passada não a deixassem relaxar e aproveitar o momento completamente.
Foi somente quanto terminaram o jantar que ela percebeu que suas habilidades com talheres também haviam regredido consideravelmente, sua roupa e parte da mesa estavam melecados pela sopa e acreditava que boa parte de seu rosto também. Precisava urgentemente se acostumar àquele corpo para não passar por mais situações vexatórias como aquela.
Seus pensamentos foram interrompidos quando Vívia tomou um guardanapo e limpou seu rosto, tentando consolá-la de alguma forma.
— Bom, pelo menos a bagunça foi menor do que antes de ontem, não é mesmo?
Do outro lado da mesa, Elora se esforçava para conter a risada enquanto seu pai e repreendia com o olhar.
— Acho que alguém vai precisar de mais um banho. – Comentou Calon.
— Bem pensado, querido, essa sujeira toda não sairá somente com o guardanapo. Pedirei para prepararem um banho.
— O quê? – Bradou Caehlyn, alarmada – Não, não preciso de banho.
— Como não? Olha só essas roupas e esse rosto.
— Então tomo banho sozinha.
Abrindo um sorriso e pegando a filha no colo antes que ela escapasse, Vívia se levantou e começou a caminhar para o andar superior da casa, enquanto dizia com certa diversão:
— Você está toda independente hoje, mocinha. O que a fez querer fazer tudo sozinha assim?
— Já sou madura o bastante. – Respondeu ela, se debatendo para se soltar – Posso tomar banho sozinha.
— Boa tentativa, mas você ainda não consegue se limpar devidamente sozinha. Lembra que tentamos na semana passada?
Não, Caehlyn não se lembrava. Na verdade, não se lembrava de nada de antes do despertar.
— Então quando vou poder tomar banho sozinha?
— Deixe-me ver... talvez quando completar seus seis anos.
— E quando isso vai acontecer?
Mais uma vez Vívia riu, se divertindo com a estranha pressa que sua filha tinha naquele dia, no entanto, em seu interior nutria certa preocupação pela mudança de humor daquela criança.
— Daqui a dois anos.
"Eu tenho quatro anos? Só pode ser mentira!"
— Isso vai demorar muito! – Resmungou Caehlyn, contrariada.
— Vai perceber que não demora nada, quando perceber dois anos já terão se passado.
Assim que Vívia chegou ao quarto e colocou a filha no chão, Caehlyn saiu em disparada, percorrendo todo o corredor, tentando evitar ao máximo que sua mãe a pegasse novamente. Ela só não esperava ser interpelada no meio do caminho por uma serva, que de maneira hábil a agarrou e pegou no colo, caminhando com ela de volta para o quarto, enquanto a menina se debatia, tentando se soltar.
— Me solte. Me solte agora!
— A jovem lady como sempre escapando do banho. – Comentou a moça, com bom humor.
— Eu já mandei me soltar!
"Quanta humilhação", pensou Caehlyn dez minutos depois enquanto estava dentro de uma banheira, tendo água derramada sobre seus cabelos. Ela não tinha nem mesmo o direito de se limpar sozinha, embora admitisse que era bom ter alguém fazendo aquilo por ela, estar sem roupas na frente de outras pessoas lhe deixava extremamente constrangida. Não tentou se libertar das mãos de sua mãe novamente, sabia que querendo ou não a apanhariam, então, derrotada, deixou que Vívia a limpasse. Sem que percebesse, seu corpo relaxou e um sono indescritível se apoderou de Caehlyn, a única conclusão que chegou para se sentir daquela forma, era que provavelmente seu corpo novamente não suportava tanto. Era comum que uma criança dormisse tão cedo, e Caehlyn não seria capaz de lutar contra aquela natureza.
Bocejando, fechou os olhos, apreciando o carinho de sua mãe sobre sua cabeça e sentindo-se levar para um mundo tranquilo e silencioso. Só voltou a si quando sentiu uma brisa gélida tocar seu corpo, indicando que havia sido tirada da banheira.
— Tem alguém como sono. – Balbuciou sua mãe, enquanto penteava seus cabelos, usando magia para secá-los.
Caehlyn não respondeu, apenas bocejou novamente e se recostou mais em Vívia, e quando percebeu estava deitada em sua cama, as velas haviam sido apagadas, deixando o quarto ser iluminado apenas pela luz da lua que transpassava timidamente as janelas. Ao lado da cama, Vívia cantava baixinho uma canção, acomodando as cobertas sobre a filha.
Apesar de se sentir cansada, Caehlyn não queria dormir, não naquele momento. Ainda precisava refletir sobre muitas coisas e ansiava por ficar finalmente sozinha. Fechando os olhos, fingiu dormir profundamente, enquanto sua mãe ainda cantarolava, acariciando seus cabelos.
— Ela dormiu? – Soou a voz de Calon, adentrando o quarto.
— Sim, finalmente. Acredito que todo aquele mal humor de antes era sono. Dormiu em um instante.
A risada de Calon soou baixa pelo ambiente pouco iluminado, enquanto ele se sentava sobre a cama e deixava um beijo sobre a cabeça da pequena.
— Ela é bem geniosa quando quer.
Alguns segundos de silêncio foram feitos depois que Vívia parou de cantar, estabelecendo certa tensão no quarto.
— Estou preocupada, Calon. – Disse ela, finalmente.
— Com o quê?
— Será que ela realmente se recuperou de ontem? E se essa mudança de comportamento dela estiver relacionado ao incidente?
— Querida, ela só está cansada. Aquele artifício drenou boa parte da mana dela, é natural que Airyn esteja diferente, mas ela logo voltará a ser como antes, só precisa de um tempo para descansar. Você verá.
— Eu só quero protegê-la. Ela é tão pequena!
— E eu não sei disso? – Respondeu Calon, com bom humor, deixando um beijo na testa da esposa – Agora vamos, deixe-a descansar.
Novamente ajeitando as cobertas, Vívia se levantou de onde estava e deixou um último beijo sobre a testa da filha, sussurrando um boa noite antes de sair e fechar a porta atrás de si.
Assim que se viu sozinha, Caehlyn abriu os olhos, mas não se atreveu a se mexer. Permaneceu parada por mais alguns minutos, encarando o teto do quarto e tentando entender o motivo daqueles elfos serem tão amorosos. Incomodada se levantou e caminhou até a janela, encarando o céu limpo, exibindo uma lua duas vezes maior do que o comum.
— Algo a incomoda, majestade? – Soou a voz Ioná, surgindo atrás de si.
Caehlyn não respondeu de imediato, tampouco fez questão de se virar, continuou encarando a noite, ali Ioná entendeu que ela não queria qualquer interação e esperou até que sua rainha quisesse finalmente lhe responder. Um minuto inteiro de silêncio foi feito até a voz de Caehlyn ecoar:
— O que é preocupação, Ioná?
Aquela pergunta pegou a niáfilin desprevenida, Caehlyn sem sombra de dúvidas sabia o que era preocupação, no entanto, duvidava muito que ela estivesse se referindo a uma preocupação trivial.
— Acredito que o que queira saber, majestade... é que preocupação é quando algo ou alguma situação perturba a paz de seu espírito. Não a deixa viver e às vezes sequer respirar direito até que tudo tenha se resolvido. É o mesmo tipo de preocupação que os Farsatra têm com a senhora.
— Não acredito que manterão essa preocupação por muito tempo.
— Por que acha isso?
— Eles ainda não sabem quem eu sou. Pensam que sou apenas a filha caçula deles. Quando de fato souberem que eu sou Caehlyn Blackdagger esse amor todo vai acabar.
Sabendo porque sua rainha tinha a estrita convicção daquilo, Ioná se calou por alguns segundos, incerta de rebater aquele argumento. No entanto, pelo que ela já havia observado dos Farsatra, eles pareciam diferentes dos outros, eram boas pessoas e uma excelente família para Caehlyn.
— Eles parecem ser boas pessoas, majestade. Jamais cometeriam alguma crueldade com a senhora.
— Seis vezes. – Foi tudo o que Caehlyn respondeu.
— O que disse?
— Seis vezes. Foram as vezes que minha família me abandonou e me entregou para a morte ao descobrirem quem eu realmente era. Em todas as vidas, a história sempre se repetiu, não importava o quanto me esforçasse e me importasse com eles. A única família que verdadeiramente me amou foi a primeira, a família de onde vim. E somente eles poderiam me amar mesmo sendo quem eu sou, o resto até deseja me matar assim que descobrem sobre mim. Espera mesmo que eu acredite que dessa vez será diferente?
— Talvez... nessa oitava vez seja diferente. Só precisa dar uma chance a eles.
Caehlyn se calou, exalando uma respiração pesada e abaixando a cabeça por alguns segundos antes de encarar Ioná por cima do ombro e mudar de assunto.
— Não te mandei voltar para o reino? O que ainda faz aqui?
— Amon e Lumia estão cuidando de tudo, enquanto estou fora. Na verdade, voltei apenas para lhe dar um recado. Alguns soldados do reino de Western estão reduzindo sua distância de nossas fronteiras.
— Reduzindo a distância? – Questionou Caehlyn, se virando.
— Sim. Todos os dias eles avançam um pouco na esperança de não serem notados, mas os patrulheiros têm os monitorado por algumas semanas e nos alertaram. Questionei o rei acerca disso, mas ele alegou não saber de nada e disse que repreenderia seus soldados, no entanto, hoje eles foram vistos avançando novamente.
— Os patrulheiros atacaram?
— Não, senhora. Como ainda não estão tão próximos não quiseram causar confusão.
— Ótimo. Não quero que ataquem primeiro, mas se os soldados continuarem a avançar vocês têm permissão para matá-los. E sumam com os corpos.
— Sim, senhora.
— Agora vá, eu preciso dormir.
Caehlyn se empoleirou na cama novamente e se cobriu até os ombros se afundando nas cobertas. Respondeu vagamente à despedida de Ioná e deixou o silêncio tomar conta de si novamente, meditando o que sua conselheira havia dito sobre aquela família. Ioná sempre fora muito sábia e parecia ler bem as pessoas, mas somente aquilo não dava a Caehlyn a segurança de confiar nos Farsatra, principalmente porque todas as vezes em que confiou, acabou sendo morta.
Não, definitivamente ela não confiaria.
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