2 - Luzes neon
"Deseja regular a temperatura da água?", a voz robótica feminina falou através do painel do banheiro.
— Quero um banho mais frio.
Sob a ordem de Lira, a água resfriou.
— Mais frio.
O jato gelado caiu sobre suas costas e cabelos, mas ela não se importou. A mente fervia demais.
Não se demorou no banho; assim que a água desligou automaticamente, Lira parou em frente ao espelho enquanto se secava. A letra K se destacava em sua clavícula. Era uma marca feita com o laser emitido pelo espelho, entretanto, a impressão que tinha era de que havia sido cravada na pele com o fogo e o metal dos tempos antigos.
Ela vestiu o roupão e andou até o quarto. A ampla janela na parede lateral mostrava que o anoitecer, aos poucos, depositava seus ramos sobre as luzes artificiais da Capital.
Como um chamado inevitável, a adaga de cristal cintilou, capturando seu olhar. Lira a apanhou, a respiração decaindo para um compasso mais lento. Por conta da confusão daqueles últimos dois dias, ainda não havia devolvido a adaga para Aram.
"Clamo aos deuses que me emprestem suas graças, e me transformem em um instrumento contra as sombras".
Outra vez, a mesma sensação dissonante a invadiu; quente, pulsante.
Uma batida na porta a arrancou do silêncio analítico. Lira guardou a adaga em um invólucro embutido na parede e abriu a porta, deparando-se com o sorriso animado de Sara.
— Vim até aqui dar um "oi" e saber como foi a cerimônia Kapwa super reservada e secreta. Além disso, acho que vamos nos ver com menos frequência, não é? Você vai mudar para o outro prédio.
— Foi normal. Nada demais. A general Celine e o general Vicente cuidaram de tudo. Ninguém desconfiou do que aconteceu de verdade.
Sara a olhou de cima a baixo, se jogando sobre o colchão.
— Vai sair?
— Com o Aram. Não esperávamos entrar para a Elite Kapwa, ainda mais desse jeito abrupto. Precisamos conversar para ver o que faremos.
— Para resolver como vão ficar as coisas entre vocês, agora que não podem se relacionar com mais ninguém?
— Não está acontecendo nada entre nós.
Mas o olhar de Sara era desmembrador. Lira deu de ombros.
— Foi só um beijo.
Meu primeiro e único beijo, pelo jeito.
Contudo, não era aquilo que rodopiava em seus pensamentos, que escalava pelos liames do sono, embora a lembrança da boca dele na sua a atravessasse como se estivesse sob a chuva de fogo do Igneus Imber.
— Ei, Lira, por que você tem tantas cicatrizes? — Sara estreitou os olhos, analisando uma parte da pele dela que não estava coberta pelo roupão. — Está exagerando nos treinos?
Lira engoliu em seco, ajeitando o roupão. Era inevitável se lembrar da Colheita dos Escravos, dos sentinelas, dos chicotes, dos chutes. Cada uma daquelas marcas era como um pulsar abrasador, uma rememoração dos seus propósitos, do motivo de estar onde estava.
— É, mais ou menos.
Sem que esperasse, Sara se levantou da cama e a abraçou. O gesto pegou Lira de surpresa, arrancando uma exclamação baixa da sua garganta.
— Sara...
— Achei que você estivesse precisando de um abraço.
Algo latejou no peito dela, angustiante, dolorido, e ao mesmo tempo, reconfortante.
— Obrigada — sussurrou.
Assim que Sara recuou, mantendo um sorriso gentil nos lábios, Lira andou até o armário de roupas, apanhando uma camiseta branca e uma calça da mesma cor. O esboço de um sorriso ansiava manchar seus lábios.
— Ei! — Sara piscou, espalmando as duas mãos no rosto. — Você vai sair usando o uniforme da SIO?
— Sim. Algum problema?
— Nem pensar, Lira! — O piercing cintilou nos lábios dela. — Só porque você não pode mais beijar nenhuma boca ou arrancar a roupa de alguém, não significa que não pode se arrumar. Venha. Eu te ajudo.
******************
Sua cabeça fervilhava em um milhão de pensamentos impacientes.
Recostado à moto da SIO, Aram balançava a perna esquerda, cruzando e descruzando os braços, passando os dedos pelos cabelos, tocando o colar octógono, esfregando a letra K marcada na clavícula.
Tinha noção de que estava ferrado. Só não sabia calcular o que era pior; ter roubado o colar e a missão de Altair, ser um infiltrado na SIO, ter matado o general Amat, ter resgatado Eloane após ela ter sido sentenciada à morte, ter se tornado parte, contra sua vontade, da Elite Kapwa, ou ter tido sua verdadeira identidade Héscol descoberta por Lira.
Aram bufou. Talvez o pior fosse uma combinação de tudo aquilo acontecendo ao mesmo tempo.
E Lira...
Merda; será que ela o entregaria mais cedo ou mais tarde para os generais? Lira havia deixado muito claro que repudiava o que ele estava fazendo. Como alguém nascido no território Héscol, sabia que deveria silenciá-la do mesmo jeito que o general Amat havia sido silenciado. Mas Aram esperava — e não queria de modo algum — chegar naquele ponto. Preferia cortar a própria mão ou passar o resto da vida escutando Eloy Matsumura divagar sobre suas leituras chatas.
Bom, talvez entrassem em um acordo naquela noite. Mas... Para quem sempre tinha uma resposta ácida na ponta da língua, pela primeira vez, ele não conseguia encontrar um bom argumento para dissuadi-la.
Sua atenção se desviou ao escutar passadas ritmadas. Aram virou o rosto, e teve quase a impressão de que seu queixo caiu um pouquinho quando seu olhar colidiu com os olhos firmes de Lira.
Ela estava usando uma blusa preta trespassada com tiras metalizadas, que se harmonizavam com os detalhes da calça de couro e das botas de cano alto. A boca era uma linha fina, tingida de vermelho escarlate, e ele se pegou imaginando se teria o mesmo gosto do fogo inocente que já havia experimentado uma vez. Os cabelos escuros e soltos, normalmente lisos, caíam em ondas graciosas pelos ombros dela, causando um formigamento desesperador nos dedos de Aram.
Olhou de relance para o pedaço do céu que vislumbrava dali; se os deuses realmente existiam, eles eram muito cruéis.
Assim que Lira se aproximou, os passos dela reduzindo enquanto o coração dele acelerava, ele piscou.
— Você está...
— Está exagerado, não está? Foi a Sara.
— Você está perfeita.
Ela prendeu a respiração. E mesmo sob as poucas luzes da garagem, do zumbido dos drones, Aram a escutou hesitar em surpresa. O rubor nas bochechas dela avivou, como um convite para baixar a tensão chata entre eles, e Aram deixou um sorriso malicioso cruzar o seu rosto:
— Você está corando, Lira? — provocou. — Fique tranquila. Não vou te morder, a não ser que você peça. Mas não sei se mordidas ainda são permitidas na nossa nova condição.
— Pelos deuses, você não muda!... — ela protestou, mas estava completamente vermelha. O que era muito divertido para Aram. Lira quase nunca corava ou se envergonhava, e algo nele achava adorável vê-la correr os dedos pelos cabelos, balançando a cabeça com reprovação e irritação. — Vamos logo. Só temos a noite de hoje de folga, e precisamos conversar.
Ele riu, sentindo o clima um pouco mais leve, como se os acontecimentos dos últimos dois dias jamais houvessem acontecido. Subiu na moto, gesticulando para ela sentar na garupa. E quando Lira passou os braços em volta da sua cintura, a pele morna dos braços dela atravessando o tecido da sua camiseta, Aram disfarçou a vontade súbita de engolir em seco.
Ignorou a ardência do sangue e acelerou, disparando para fora dos limites da Global Octupus.
Podia sentir a respiração dela em sua nuca, feito uma tortura doce, viciante, que ele aceitaria se submeter pelo resto da vida.
A constatação daquele pensamento o pegou desprevenido.
A moto avançou pelas ruas iluminadas e movimentadas. Aram optou por não acionar o sistema de voo, para que o percurso se prolongasse por toda a essência da concretude metálica e barulhenta da Capital.
Reduziu a velocidade assim que o GPS apontou que estavam chegando ao destino escolhido. Ele escutou a exclamação baixa e surpresa de Lira ao admirar o formato do restaurante; uma pirâmide feita de metal e fibra de carbono, decorada de luzes neons que acompanhavam as arestas.
— Você nos trouxe até aqui para comermos?
— Não consigo tomar boas decisões de barriga vazia.
O olhar enviesado que ela lhe deu enquanto descia da moto parecia enunciar que ele nunca tomava boas decisões.
Aram desligou a moto e, juntos, atravessaram a entrada do local.
O restaurante dispunha de vários níveis semelhantes a mezaninos, que subiam de forma piramidal da parte térrea até o último andar, com um imenso elevador no seu centro. Os olhos de Aram varreram o espaço lotado. As mesas eram projeções holográficas materializadas, que podiam ser colocadas em qualquer lugar, feito um jogo de blocos.
— Que lugar incrível — Lira murmurou ao seu lado, e o olhar fascinado que cintilava no rosto dela fez uma onda de satisfação atravessá-lo. Quando escolheu aquele restaurante, tinha quase certeza de que ela iria apreciar o espaço. — Nunca vi nada parecido.
— Vamos pegar uma mesa em um dos níveis superiores.
Subiram no elevador em silêncio. Uma batida eletrônica vibrava pelo interior, reverberando por todo o restaurante. Desceram no terceiro nível e elegeram uma mesa próxima à parede; em momento algum, passou despercebido aos olhos de Aram os olhares que Lira recebia dos outros, algo que o fez sentir uma onda ainda mais inesperada de irritação.
Puxou o ar, correndo os dedos pelos cabelos; precisava se controlar e manter o foco no seu principal objetivo.
Lira e Aram sentaram-se de frente um para o outro. Os garçons, pequenas inteligências artificiais flutuantes, anotaram seus pedidos. Entreolharam-se assim que ficaram sozinhos; os dedos de Aram tamborilavam sobre o tampo holográfico.
— Aram, você conversou com sua irmã depois do resgate? — Lira perguntou, quebrando o gelo.
— Sim. Eloane está bem naquela hospedaria. Ninguém a localizou.
— E o cubo misterioso que ela roubou da sua família?
Seu peito subiu e desceu, arranhando as lacunas incômodas da mente, volvendo para a conversa que tivera no trem com Eloane.
"É um cubo pequeno, de mármore branco. Há a marca de uma cobra engolindo o próprio rabo em uma de suas faces. Não sei como, mas este cubo parou nas mãos da nossa família. É um objeto que carrega uma energia poderosa, mística, desconhecida. De alguma forma, nosso pai e nossos irmãos conseguiram fazer este cubo funcionar, e o usaram para criar o exército".
O roubo daquele cubo havia sido motivo suficiente para sua família condenar Eloane à morte. Aram não fazia ideia do paradeiro do objeto, muito menos que tipo de energia seu pai usara para criar o exército Héscol; um exército que ele só descobrira que existia dois dias atrás.
— Não consegui arrancar mais nenhuma informação dela.
— E aquele exército? — ela prosseguiu com as perguntas. A forma como movia os lábios era quase hipnótica para os olhos dele.
— Já te falei que não faço ideia do que seja.
— Sua família vai usá-los para invadir a Capital?
— Somente se as barreiras magnéticas forem derrubadas.
— Se você cumprir aquela missão.
— Exatamente.
Eles se calaram quando seus pratos chegaram; duas proteínas artificiais e dois mix de vitaminas saborizadas.
Lira não retomou as perguntas, analisando os alimentos, as íris sombreadas embaixo das luzes neon. O jeito que ela sempre olhava para a comida, com um misto de angústia e agradecimento, fazia Aram se perguntar se ela já havia passado fome. Mas não era possível. Lira era uma agente da SIO, passara nos exames, tinha uma tutora, possuía um colar octógono; características de quem nascera em uma boa região de Sycore.
Incomodado, ele baixou o olhar, observando a mesa holográfica. Havia um sistema touch embutido. Experimentou alguns comandos; a parede ao lado deles ficou translúcida, exibindo uma vista ostentosa das luzes e dos edifícios altos da Capital.
— É uma vista linda, não é? — Lira murmurou, virando o rosto.
Escutá-la falar tão baixo, como se uma sombra a estivesse engolindo e não houvesse mais nada que pudesse fazer, agitou um ímpeto poderoso de sentimentos em Aram, impedindo-o de se segurar; passou a mão por cima da mesa, segurando a dela.
— O que foi, Lira?
Ela o fitou, recolhendo a mão. A quebra do calor entre suas peles provocou uma sensação de vazio profundo nele.
— Tudo aconteceu muito rápido, Aram. A sentença da sua irmã, a morte de Amat, o ataque da serpente de fumaça, a ligação Kapwa entre nós, o exorcismo do Eloy...
— Você tirou a cobra que entrou no Eloy. — E tocou o próprio queixo; um riso mole na boca. — Nunca achei que diria isso na vida.
— Aram!
— Desculpa. Pode continuar.
— E no meio de tudo isso, descobri a verdade sobre você. — Lira tocou a proteína artificial com o garfo; ela parecia escolher cada palavra com cuidado. — E como eu te disse, não me importo com quem você é ou com o lugar onde cresceu. São suas escolhas e atitudes que mostram seu verdadeiro eu. Só que não concordo com esta missão que sua família te deu.
Aram arqueou as sobrancelhas.
— Vai me entregar então?
— Pensei muito nisso. Tenho algumas condições. Se você obedecer as regras da elite, e não machucar Eloy e Yumi, guardarei seu segredo. Afinal, se você for expulso, como compartilhamos uma identidade agora, eu também serei expulsa. E preciso permanecer e crescer na Global Octupus.
— Por que você quer tanto trabalhar para essa gente?
— Meus motivos são apenas meus. — Não passou despercebido por ele o lampejo de hesitação nas íris escuras. — Não concordo com os planos opressivos da sua família, mas não vou te entregar por...
— Por causa disso. — Aram puxou a gola da jaqueta de couro, exibindo a letra K. — Você está presa a mim, e eu a você.
Ela não respondeu, mas ele não precisava de uma resposta. Se aquilo iria manter sua identidade a salvo, não reclamaria.
— Tudo bem. Lira. Vou me comportar na Elite Kapwa, e manterei minhas mãos longe da família Matsumura.
Até eu descobrir uma forma de desfazer esta conexão que o Espelho criou entre nós, ele complementou em pensamento, mantendo o semblante ilegível. E poder seguir com a missão. Não darei ao meu pai e Altair o gosto de me verem falhando.
— E quanto ao general Amat... — As palavras deslizaram pela boca de Lira, e ela olhou para os lados, se certificando de que ninguém estava ouvindo aquilo.
— Vamos esquecê-lo, Lira. É o melhor para a nossa segurança. Não há nada que possamos fazer para mudar o que aconteceu.
Ela anuiu, concordando a contragosto.
— E se alguém suspeitar de algo?
— Não sei. Espero que isso não aconteça. Por ora, agora que entramos em um acordo, podemos aproveitar o jantar. O que acha?
*******************
Eles retornaram tarde da noite para o complexo formado pelos oito prédios imponentes da Global Octupus.
Aram estacionou a moto e estendeu a mão, ajudando Lira a descer. Uma parte dele estava mais aliviada por saber que, por pelo menos um tempo, seu segredo estaria a salvo com ela. Talvez ele até conseguisse convencê-la dos pontos de vista da sua família. Teria que tentar.
— Ora, ora. Aproveitando a noite da Capital, companheiros?
Lira e Aram olharam para o lado. Killian, um dos agentes mais veteranos da SIO, apoiava-se contra a parede da garagem. Bufou. De todos os membros idiotas da Global Octupus, o pupilo do general Amat era uma das pessoas que Aram mais detestava. Até mais do que Eloy. Perto de Killian, Eloy se transformava em uma companhia minimamente agradável.
— Estava com saudades, Killian? Ficou me esperando? — A língua de Aram estalou. — Desse jeito, você vai se apaixonar por mim. E agora nem posso mais corresponder aos seus sentimentos.
Killian o encarou com um olhar gelado e ácido.
— Alguém precisa trabalhar, Aram. Acabei de chegar também. Fui averiguar um chamado. A SIO localizou a nave do general Amat, caída em local distante das cidades-satélites, o que confirma nossa suspeita de que ele não estava aqui na Global Octupus durante o ataque.
Aram quase tateou a hesitação de Lira. Merda, merda, merda. Limpou a garganta e cruzou os braços, chamando a atenção de Killian para ele.
— É mesmo? E o general?
— Ainda não descobrimos seu paradeiro, mas vamos localizá-lo.
— Boa sorte, Killian. Se não se importa, Lira e eu precisamos descansar agora. — E apoiou uma das mãos na costa de Lira, sinalizando para seguirem para fora da garagem. — Sabe como é. Temos que estar em boa forma para a seleta Elite Kapwa, a qual você não faz parte.
Com um aceno despretensioso para o agente, Aram avançou para fora da garagem; quase fez Lira tropeçar enquanto a guiava para longe dali.
— Aram!...
— Apenas continua andando. Não olhe para trás.
Seus corpos foram ricocheteados pelo ar noturno. Aram ergueu o rosto, irritado; o sangue bombeava nos ouvidos. Ao olhar para o céu, tudo o que enxergou foi a estrela Salissy cintilando por entre as cores esfumaçadas, como se estivesse envolvida por um cortinado de neon e segredos.
Capítulo 2 para vocês ♥
*
Para quem gosta de fantasia urbana com bastante ação, romance e mistério, deixo aqui o convite para conhecer "Delta", meu livro que está em andamento aqui no meu perfil do Wattpad ♥
Sinopse
"Há a inversão. Há a propagação. Há a inversão da propagação".
Helen Helderheid está em fuga há anos. Considerada uma traidora, a ex-guardiã percorre o mundo sem um destino fixo. Mas uma dívida com o passado a faz retornar ao Brasil, e cair no radar do único caçador que ela não quer reencontrar.
Lúcio Svetloba é um exímio caçador que ainda paga pelos erros de uma guardiã foragida. Assim, quando uma nova ordem de execução chega até suas mãos, ele se vê diante de um impasse. A sentença é clara, e a chance da vingança se abre junto a um jogo de atrações e mistérios.
Em meio a uma caçada sem fim, marcada pelos espectros de um mundo sombrio e secreto, os caminhos de Helen e Lúcio cruzam com os enigmas que rondam uma adolescente em perigo, despertando sussurros de um antigo e obscuro presságio.
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