Capítulo 22- A Cerimônia
"Você se importa apenas com o poder que pode arrancar delas, sem nenhuma consideração pela verdadeira vontade desse povo"
Terras do Sangue- Manto Vermelho
O Manto Vermelho, o vasto deserto que cobria metade das Terras do Sangue, era um paradoxo em si mesmo. A seca castigante impregnava o ar com a sensação de aspereza, enquanto os ventos carregavam grãos de areia vermelha que pintavam o horizonte como um eterno pôr do sol. Contudo, havia uma beleza cultural inegável no deserto. Vilarejos se erguiam com suas construções de pedra polida e tecidos vibrantes que tremulavam em bandeiras, demonstrando a criatividade resiliente de seu povo. Pequenos mercados exalavam aromas intensos de especiarias locais, enquanto canções em Vel'kir, a língua ancestral da região, ecoavam pelos acampamentos.
Recentemente, o deserto tornou-se ainda mais vivo, embora sobrecarregado. A população que outrora se espalhava entre os vilarejos agora se concentrava, formando uma massa fervilhante de vida. Gente vinda de todas as direções atravessava o calor escaldante para testemunhar um momento único: o surgimento do jovem Daelius, o Fruto Vermelho.
Longe dali, em Sekara, o centro estratégico da Revolução Vermelha, um homem tão robusto quanto temível, Elkoz, também Filho do Abismo, mas com anos que pesavam como sua sabedoria, ouvia as notícias. O líder revolucionário recebeu relatos de que um jovem de pele avermelhada, emergindo do leste do Manto Vermelho, havia completado sua primeira provação. Elkoz, envolto em uma túnica de linho tingida com o vermelho das terras, alisou o longo chifre enquanto absorvia a informação. Algo inédito estava acontecendo, e ele sabia que o deserto não produzia lendas à toa.
Naquela noite, no coração da aglomeração, Daelius encontrava-se no centro das atenções em uma tenda colossal improvisada. O couro de animais costurado com precisão formava o teto e paredes, enquanto ossos esculpidos compunham uma estrutura que quase parecia ancestral. Sob o brilho de tochas que refletiam nas pedras vermelhas espalhadas pelo chão, ele se sentava em um trono tão improvisado quanto impressionante, feito de ossos grossos, couro curtido de animais caçados e lâminas afiadas.
Ao lado de Daelius estava Ruffalo, uma figura tão imponente quanto carismática. Alto, robusto, com barba e cabelos ondulados de um marrom escuro quase avermelhado, ele vestia um manto de linho com bordados rústicos e adornos de dentes de Urzog, o predador que havia sido derrotado por Daelius em sua provação. Cicatrizes atravessavam seu rosto e seus braços, uma evidência de batalhas travadas e vencidas, enquanto sua voz ressoava como trovão quando se dirigia ao jovem. Ruffalo, outrora um tradutor do Vel'kir, agora era mais que um intérprete; era um servo devoto, disposto a proteger e louvar Daelius a qualquer custo.
A multidão assistia, em reverência silenciosa, enquanto mestres anciões da Ascendência do Sangue se apresentavam. Trajando túnicas de tons escarlates e negros, eles eram os estudantes das magias ancestrais, capazes de transformar seus próprios corpos em armas e ferramentas vivas. Um dos mestres da Ascendência do Sangue avançou, atraindo os olhares de todos na tenda. Ele era um halfling, uma figura que, à primeira vista, poderia parecer frágil, mas que emanava uma presença avassaladora. De estatura baixa, com pouco mais de um metro de altura, sua pele escura parecia ter sido talhada em obsidiana e estava marcada por cicatrizes profundas que cintilavam como rubis vivos sob a luz trêmula das tochas.
Seu rosto era severo, moldado por linhas de experiência e um par de olhos dourados que brilhavam intensamente, como se carregassem um fragmento do próprio sol. Os cabelos curtos e prateados contrastavam com uma túnica escarlate, adornada com bordados intrincados que retratavam símbolos de sangue e vida. Ele movia-se com uma precisão quase sobrenatural, cada passo calculado, como parte de um ritual maior.
As mãos do mago, magras e cheias de veias proeminentes, ergueram-se no ar. Seus dedos se dobraram e se contorceram como se ele puxasse fios invisíveis, a plateia observava em reverência absoluta. O silêncio que se seguiu era pesado, quebrado apenas pelo leve ranger do couro do trono de Daelius enquanto ele inclinava-se para ver melhor.
No centro da tenda, o feroz Urzog abatido começou a se mexer. Primeiro, um tremor quase imperceptível, e então os membros da criatura começaram a se mover com uma fluidez que desafiava a lógica. Os olhos mortos se abriram, um brilho espectral vermelho emergindo deles, e a multidão ofegou em uníssono.
O halfling orquestrava o espetáculo com a graça de um maestro. Seus movimentos eram lentos e deliberados, mas cheios de poder, como se cada gesto controlasse uma marionete invisível. O Urzog, agora completamente erguido, movia-se de maneira hipnótica, suas garras desenhando padrões no ar enquanto a carcaça seguia a vontade do mestre.
Alguns na multidão começaram a aplaudir instintivamente, gritos de admiração ecoando pela tenda. Um homem caiu de joelhos, murmurando palavras de veneração ao mestre, enquanto crianças se escondiam atrás dos pais, fascinadas e temerosas.
Finalmente, o halfling fez um gesto brusco com as mãos, e o Urzog caiu ao chão com um estrondo abafado. Ele se virou para Daelius, o brilho de suas cicatrizes ainda mais intenso agora, e inclinou-se ligeiramente, como se saudasse um igual.
— A Ascendência do Sangue carrega um potencial que poucos compreendem, fruto vermelho!
A voz do mestre era grave, mas com um timbre melódico, como uma canção antiga. Suas palavras reverberaram em Daelius, que sentiu o peso do momento. Enquanto a plateia ainda recuperava o fôlego, o halfling se ergueu e, com passos calmos, retirou-se para a lateral, deixando uma aura de respeito e mistério em seu rastro.
O coração de Daelius acelerou. Ele sabia que essa magia só era possível porque ele, Elara e Kalista haviam desencadeado algo maior, um poder adormecido que agora transformava o mundo ao redor deles. E, enquanto o Mestre retornava ao seu lugar, Daelius percebeu que sua jornada ainda estava apenas começando.
A cerimônia se prolongava, uma mesa improvisada foi colocada diante do trono de Daelius, feita de tábuas irregulares cobertas com um tecido marrom rústico. Sobre ela, bandejas repletas de frutas suculentas, pedaços de carne assada e pães robustos foram cuidadosamente organizadas, ao lado de jarros de vinho e taças de bronze. Servos se moviam com agilidade, ajustando a disposição dos pratos para que tudo estivesse ao alcance do fruto vermelho, enquanto o banquete tornava-se o centro das atenções dentro da tenda.
O manto vermelho intenso que o cobria parecia ecoar a cor do próprio deserto ao redor, enquanto suas vestes brancas, limpas como a neve, criavam um contraste quase divino com a pele avermelhada e os chifres curvados que emanavam uma aura ancestral. Ao seu lado, Ruffalo, robusto e descontraído, continuava a observar a movimentação fervente. Ele mastigava ruidosamente, ocasionalmente rindo com a multidão que se reunia fora da tenda, enquanto olhava para Daelius com uma expressão de sincero orgulho.
No entanto, Daelius parecia alheio à celebração ao redor. Ele comia em silêncio, com os olhos fixos em um ponto distante, como se refletisse sobre algo mais profundo do que o banquete diante de si. Os murmúrios da multidão lá fora ecoavam como uma tempestade abafada, crescendo à medida que mais pessoas se juntavam para vislumbrar o fruto vermelho, agora elevado a um símbolo quase divino.
Foi então que um som distinto chamou a atenção de Daelius, o sutil farfalhar de asas. Ele ergueu o olhar para a entrada da tenda, onde duas figuras familiares surgiram contra a luz quente do deserto. Elara foi a primeira a ser notada, alta e elegante como sempre. Ela usava um vestido prateado, adornado com detalhes negros que lembravam constelações, uma escolha que refletia sua sobriedade e força interior. Seus cabelos pretos estavam presos em um coque impecável, realçando o tom de sua pele. Kalista, em contraste, parecia um sopro de caos colorido. Suas roupas eram uma mistura de tecidos fluidos e leves, com tons vibrantes de azul e verde que contrastavam com as sombras ao redor.
A fada deu alguns passos à frente, mas logo abriu suas asas iridescentes, que captavam a luz da tenda como um prisma, espalhando cores ao redor. Com um sorriso travesso que iluminava seu rosto, ela se lançou ao ar, voando com graça para os braços de Daelius. Ele não teve tempo de reagir antes que Kalista aterrissasse em seu colo, apertando-o em um abraço caloroso.
— Pimenta! — exclamou ela, com a alegria em sua voz carregada de uma leve irreverência. — Eu sabia que você sobreviveria àquela provação ridícula!
O jovem Filho do Abismo, pego de surpresa, deixou escapar uma risada curta, que pareceu aliviar a tensão em seus ombros. Ele envolveu a fada com um braço firme, enquanto ela ria, apertando-o mais forte.
— Kalista, eu não sei o que é mais perigoso, os Urzogs ou você me esmagando — brincou Daelius, mas sua expressão suavizou-se em genuíno alívio.
Elara aproximou-se lentamente, suas botas levantavam leves nuvens de poeira carmesim ao pisar no chão arenoso da tenda. Seus olhos observavam a cena com uma mistura de alívio e desaprovação contida. Apesar de seu tom mais reservado, havia um pequeno sorriso em seus lábios.
— Parabéns, Daelius — disse com sinceridade.
Ele acenou com a cabeça, meio desconcertado pelo elogio.
— Obrigado — respondeu, antes de se recostar na cadeira e suspirar.
Enquanto o comprimento se desenrolava, as vozes ao redor de Daelius, Elara e Kalista eram ofuscadas pelo crescente fervor da cerimônia do Manto Vermelho. O campo onde estavam, iluminado por tochas tremeluzentes, era o cenário de um espetáculo vibrante. Ao fundo, uma grande fogueira central queimava com intensidade, dançando com as chamas que iluminavam o rosto de cada pessoa presente. O povo, unido na celebração, cantava com fervor os cânticos tradicionais de Vel'kir, uma melodia ancestral que reverberava pelo ar quente da noite, como um hino de resistência e esperança.
Mulheres e homens dançavam em círculos ao redor da fogueira, com os passos coordenados ao som de tambores rítmicos, enquanto os gritos e risos se mesclavam com o eco das canções. O som das flautas e tamborins preenchia a atmosfera, criando uma sensação de êxtase coletivo. As chamas das tochas estendiam longas sombras que se moviam com o ritmo das danças, como se o próprio terreno estivesse vivo, pulsando com a energia de uma revolução prestes a alcançar seu auge.
Ruffalo aproveitou o momento e limpou as mãos na túnica, chamando a atenção dos três.
— Já que estão todos aqui, é melhor conversarmos sobre o que vem a seguir — começou. — Agora que Daelius provou seu valor, precisamos nos mover. O próximo passo é Sekara, o coração do Manto Vermelho. É onde Elkoz, o líder da revolução, e os maiores guerreiros estão. E, francamente, vocês não imaginam a quantidade de andarilhos e curiosos que estão vindo aqui para acompanhar os próximos passos de Daelius!
Elara franziu a testa.
— E o que ele terá que fazer?
Ruffalo sorriu de canto.
— Algo digno de um herói. Ele agora é digno de montar um Dhacôdra.
Daelius ergueu uma sobrancelha.
— Um o quê?
Ruffalo recostou-se, satisfeito em ter despertado curiosidade.
— Um Dhacôdra. Uma criatura feroz, de porte colossal, com garras que rasgam rochas e um grito capaz de quebrar a moral de qualquer exército. Há poucos que podem domá-los, e menos ainda que sobrevivem ao desafio.
Quando Ruffalo concluiu com seu discurso sobre o Dhacôdra, a atmosfera parecia mudar. Os dançarinos diminuíram os passos, as risadas se tornaram mais baixas, e os olhares começaram a se voltar para os três ao centro, como se o ar se carregasse de uma ansiedade coletiva. O anúncio do Dhacôdra não só trouxe o medo do desconhecido, mas também a necessidade desesperada de renovação da esperança.
Os três se entreolharam, congelados. A descrição trouxe memórias vivas da criatura que os havia atacado dias atrás, matando muitos da caravana de Coral Vakrana.
Daelius, espantado com a intensidade das palavras, afrouxou os dedos sem perceber, e a taça escorregou de sua mão, caindo na areia vermelha. O vinho se espalhou lentamente, tingindo o solo com uma mancha escarlate que parecia sangue derramado.
— Vocês estão bem? — perguntou Ruffalo, arqueando as sobrancelhas.
Kalista, enquanto ainda tentava processar as palavras de Ruffalo, sentiu o peso do destino esmagá-la. Ela se afastou um pouco de Daelius, com a respiração trêmula, ouvindo o tumulto da celebração ao longe, como se o mundo continuasse a girar enquanto ela se via em uma encruzilhada. A festa continuava, mas seu coração pesava com a certeza de que, ao se aproximarem de Sekara, uma nova fase começaria.
— Nós... ouvimos. É só que... estamos tentando processar! — respondeu Kalista, após coçar os olhos por um instante.
Ruffalo continuou sem perceber o desconforto.
— Ótimo. Porque temos um problema, um dos montadores de Dhacôdra desapareceu. Era um dos melhores, escolhido por Elkoz para liderar a revolução. Ninguém o vê há dias. Isso trouxe desconfiança para o povo do quanto o Manto Vermelho realmente pode os proteger. Sendo assim... Daelius precisa acender essa chama de esperança que se apagou!
O silêncio que se seguiu foi denso. Daelius, Elara e Kalista sabiam a verdade. Eles o haviam matado durante o ataque.
— Enfim, Sekara é onde tudo converge. É a maior cidade e o núcleo da revolução. Lá, Daelius tentará domar um Dhacôdra, um símbolo de força suprema.
O nome Sekara acendeu outro alarme entre os três. Era o destino final ordenado por Coral Vakrana. Lá, eles deveriam realizar a magia do grito e eliminar toda a liderança da revolução. O coração de Daelius disparou, e ele percebeu que os outros estavam igualmente tensos.
— Vocês estão ouvindo? — Ruffalo perguntou novamente, estranhando o silêncio.
Elara finalmente respondeu, com a voz firme.
— Sim, entendemos. Estamos ansiosos, mas precisamos conversar a sós por um momento.
Ruffalo bufou, meio divertido.
— E quando não precisam? — disse com um sorriso irônico.
Kalista sugeriu que saíssem, e os três deixaram a tenda, atravessando a multidão que se curvava e reverenciava Daelius. O peso dos olhares era insuportável. Finalmente, encontraram um local mais afastado, onde ninguém poderia ouvir.
Elara foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Isso está indo longe demais. Temos um dever. Não podemos nos deixar levar por... isso. — Elara cruzou os braços, com sua postura rígida.
Daelius, ainda com o manto vermelho sobre os ombros, riu com desdém enquanto olhava para as estrelas do deserto que começavam a despontar. Ele mastigou as últimas palavras dela como se fossem absurdas.
— Isso? — ele gesticulou ao redor, referindo-se à reverência que havia acabado de receber. — Eles acreditam em mim, Elara. Pela primeira vez na vida, eu sou mais do que um lixo. Sou mais do que um marginal de pele avermelhada. Você tem noção do que é isso?
— Não importa o que eles acreditam. — Elara deu um passo à frente, com os olhos queimando de desentendimento. — A missão é clara. Coral nos contratou para isso, e nós aceitamos. Se não fizermos o que ela pediu, você sabe muito bem o que ela fará. Ela tem muito poder Daelius, ela é a porra da Imperatriz que comanda todas essas terras, você tem noção do que é isso?
— Coral Vakrana. — Daelius cuspiu o nome como se fosse veneno. — Ah, sim, porque ela é tão benevolente, não é? Me enfiar um acordo goela abaixo, ameaçar minha vida, a de vocês. — Ele apontou para Kalista, que se mantinha entre os dois, visivelmente desconfortável. — E você quer que eu continue sendo o cachorrinho dela? Não. Nunca mais.
— E o que você vai fazer? Se ajoelhar diante de um bando de fanáticos e se tornar o próximo messias deles? — Elara rebateu, com o tom cortante. — Isso não é sobre você, Daelius. Isso é maior do que todos nós!
— Não venha com esse papo de grandeza, Elara! — Daelius gritou, diante a raiva se infiltrando em cada palavra. — Não tente me ensinar lições de sacrifício quando tudo o que você quer é se salvar. Você sempre quis o trono, não é? Sempre foi sobre você.
— Isso não é verdade. — A voz dela vacilou por um momento, mas ela se manteve firme. — Você sabe que eu só quero proteger vocês. É a única razão pela qual estou aqui.
— Proteger a gente? — Daelius avançou, diminuindo a distância entre eles. — Não seja hipócrita. Você nos arrastou para isso porque precisa de ferramentas. É isso que somos para você. Ferramentas para o seu grande retorno como rainha megera!
Kalista, até então quieta, finalmente interveio, com a voz cheia de tensão.
— Daelius, já chega. Não há necessidade disso!
Mas ele a ignorou. A raiva que o consumia não podia mais ser contida.
— E quanto ao seu irmão, Elara? — disparou Daelius, com sua voz carregada de um desprezo cortante, enquanto seus olhos ardentes se fixavam nela, desafiando qualquer defesa. — Foi por ele que você abandonou seu reino? Que levou um rapaz doente às terras inimigas, arriscando a vida dele em uma fuga absurda? — Ele se inclinou para frente, com sua expressão cada vez mais feroz. — Ou talvez fosse apenas para escapar da responsabilidade, fugir do trono que tanto despreza. E o que dizer da sua mãe? Você a matou também, não foi? Tudo para alcançar esse desejo egoísta de liberdade!
Ele se ergueu, gesticulando de forma acusatória.
— E agora você decide que quer ser rainha? Agora, convenientemente, a desgraçada está disposta a lutar por nós? — Sua voz reverberou pelo deserto. — O que significa isso, Elara? Que o seu irmão nunca importou de verdade? Que ele foi só uma desculpa conveniente para suas escolhas covardes? É isso que você é, não é? Uma filha da puta egoísta que só vê valor em si mesma! Desde quando você quer ajudar a gente? Desde quando alguém além de você realmente importa?
A bofetada veio rápida e forte, com toda a força acumulada da dor de Elara. O som seco ecoou na noite silenciosa, um trovão que cortou o silêncio do deserto. Daelius cambaleou para trás, com sua mão instintivamente indo ao rosto marcado pelo impacto. Seus olhos, arregalados de surpresa, encontraram os dela, mas em seu olhar havia algo mais: mágoa.
— Você não sabe nada sobre o que eu carrego! — gritou Elara, com sua voz trêmula, mas carregada de uma dor que ela não conseguia mais conter. — Nada sobre o que perdi, sobre o que me tiraram! Eu nunca quis isso! Nunca quis ser rainha, e vocês dois sabem disso! Mas estou aqui agora, tentando sobreviver e manter todos nós vivos, enquanto você joga tudo fora, se embriagando com a adoração dessas pessoas como se isso fosse suficiente!
Daelius a encarou, com sua respiração pesada, e algo em seu olhar se tornou mais sombrio.
— Você acha que entende o que é sobreviver, Elara? — disse Daelius, sua voz grave. — Eu cresci na fome, na humilhação, sendo tratado como um demônio, forçado a matar minha família para continuar existindo. Você, uma herdeira cercada de respeito e mordomias, jamais entenderia. Mas agora, pela primeira vez, eu não estou só sobrevivendo. Estou vivendo, e não vou abandonar isso!
Elara respirou fundo, com seus olhos brilhando de lágrimas contidas.
— E o que você vai fazer com isso? — ela perguntou, com a voz carregada de uma frustração crescente. — Vai usar isso como desculpa para se afundar ainda mais na sua própria ambição? Porque o que vejo não é mais uma revolução, mas o nascimento de algo ainda mais egoísta. Essas terras não te pertencem! Você se importa apenas com o poder que pode arrancar delas, sem nenhuma consideração pela verdadeira vontade desse povo. Você quer ser um deus, Daelius? Porque o que vejo aqui não é outra coisa senão a ascensão de um novo tirano!
— E o que você é? — Daelius gritou de volta, a barreira de sua paciência finalmente cedendo. — Você se esconde atrás desse fardo de "eu não escolhi isso" para justificar tudo. Mas sabe o que eu acho? Que você gosta de ser a mártir. Você gosta de usar sua culpa como arma para nos manter ao seu lado.
Elara recuou, como se tivesse sido atingida por suas palavras, mas não cedeu.
— Você não sabe o que está dizendo. Eu não queria isso, Daelius. Nunca quis. E sabe de uma coisa? Talvez você esteja certo. Talvez eu tenha usado essa culpa para nos manter juntos. Mas pelo menos eu tentei! E você... você está disposto a destruir tudo por um punhado de glória que nunca vai te preencher.
— Pelo menos, eles me respeitam! — Daelius gritou, sua voz ecoando pela escuridão. — Algo que você nunca fez, Elara. Você olha para mim e ainda me vê como um homem quebrado, como o garoto que precisava de vocês para sobreviver.
Kalista, que assistia tudo em silêncio até então, finalmente interveio, colocando-se entre os dois.
— Parem! — gritou ela, sua voz aguda ressoando como um comando. — Chega! Vocês estão se matando com palavras, e para quê? Isso não muda o que precisamos fazer. Não muda que estamos todos presos nessa loucura juntos!
Daelius e Elara ficaram imóveis, suas respirações pesadas. O silêncio voltou a cair, mas era um silêncio carregado de tensão.
— Nós não somos mais "juntos", Kalista. — Daelius sussurrou, com sua voz rouca. — Talvez nunca tenhamos sido.
Elara deu um passo para trás, seu rosto uma máscara de dor que ela se recusava a deixar transparecer.
— Então vá, Daelius, — disse Elara, com sua voz tremendo, mas carregada de uma determinação fria. — Se é essa sua escolha, vá! Foi bom conhecer quem você era ,antes de pisar nestas terras, antes de se perder nisso tudo. Mas eu não posso parar, não agora. Vou fazer o que é certo, mesmo que isso nos torne inimigos. — Com um último olhar firme, ela virou as costas, afastando-se na areia, como se cada passo a afastasse não só fisicamente, mas emocionalmente também.
Kalista olhou para Daelius, com as lágrimas escorrendo livremente por seu rosto, enquanto tentava enxugá-las com as mãos trêmulas. Com um gesto delicado, ela segurou o rosto dele, com os dedos amarelados frios tocando sua pele quente, como um último vestígio de afeto.
— Nunca senti algo assim, — começou ela, com a voz embargada pela emoção. — Uma conexão tão real, tão profunda, como senti com vocês dois. — Ela fez uma pausa, um sorriso melancólico aparecendo entre os soluços. — E sabe de uma coisa? Eu não me arrependo de não ter te matado lá na Batalha de Valak. Mas... — seus olhos se estreitaram, e ela tentou sorrir novamente, falhando. — Me arrependo de ter confiado que meu amigo Pimenta não fosse ser tão... amargo.
Kalista inclinou a cabeça, pressionando levemente a mão no rosto dele, antes de soltá-lo.
— Adeus, Pimenta. Espero que seja feliz! — Com isso, ela virou-se e correu para seguir Elara, deixando Daelius sozinho com suas próprias escolhas e os cacos das relações que ele acabara de estilhaçar.
Daelius permaneceu onde estava, o manto vermelho caiu dos ombros e foi levado pelo vento. O peso da noite, do confronto e das escolhas ainda por vir parecia esmagá-lo. Quando finalmente se virou para retornar ao acampamento, não sentia mais o mesmo brilho que horas antes o havia envolvido.
Naquele instante, sob as estrelas impassíveis do deserto, algo se rompeu entre eles. E Daelius sabia que, mesmo que as palavras fossem esquecidas, as feridas permaneceriam para sempre.
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